“Wagner – Um gênio impulsionador da Raça Humana”
Todos os gênios são impulsionadores da Raça Humana. Quer
disso tenham consciência ou não e, também, quer sejam apenas
introspectivos (passivos) ou se tornem ativos, neste caso
partilhando com o coletivo a objetividade do seu gênio, eles
são, de fato, os corcéis de ouro que correm velozes pelos céus e
puxam o pesado carro da humanidade. Levam-na a horizontes
inexplorados, estimulam a sua sensibilidade e novos motivos de
interesse – são, pois, os irmãos mais velhos desta nossa Espécie
que, segundo aparenta, atravessa ainda a adolescência.
É certo (e hoje reconhecido pelas novas ciências afeitas ao
campo da Psicologia) que o ‘Inconsciente Coletivo’ registra,
colige e depois disponibiliza (qual banco de dados) todos os
avanços – mentais e psicológicos – operados por todas e cada
uma das suas unidades constituintes (as individualidades).
No curso da História, crescemos na interpretação de uma
vastíssima gama de códigos singulares emanantes na Natureza
(esclarecemos que, para nós, é uma premissa que ‘Natureza’ tem
sempre a acepção de ‘Inteligência Universal’ ou, por outras
palavras, a ‘Divindade Manifestada’). A humanidade sempre
contou com grandes precursores nos mais diversos domínios.
Designadamente no que respeita às Artes, homens e mulheres
verdadeiramente dotados captam significados expressos na
forma de ondas tenuíssimas e etéreas, ocultas para a maioria de
nós; cabe-lhes, então, a tarefa de plasmar (ou densificar) a
beleza e a estética – ou seja, a intrínseca essência desses
significados – fazendo-as corresponder em padrões ou em modos
(mais) acessíveis para nós, para o nosso plano de apreensão. E
eis, pois, as ‘obras primas’ – os mais excelsos motores de
inspiração ao serviço do mundo, capazes de ajudar a elevar as
consciências a patamares superiores de sensibilidade. Os
intérpretes que as materializam são expoentes na pintura, na
escultura, na arquitetura, na poesia, na música e, até, na
engenharia, nas matemáticas, na astronomia, na medicina… –
ramos considerados ‘das Ciências’ que, porém, não se podem
dissociar da Arte. Talvez seja mesmo verdade que a Arte é a
mãe de todas as Ciências!….
O verdadeiro artista esculpe, a pulso, as pedras palpitantes dos
Céus – diáfanas mas ofuscantes, mudas mas exuberantes. Elas
falam somente aos que venceram as mais duras provas.
Alcandorando-se em certezas de realidade onde apenas se
aparenta o vazio, eles sobem e conquistam arduamente cada
átimo de talha suada pela substância divina.
Ser artista implica saber experimentar intensamente a dor. Para
muitos, o toque da Glória é feito das lágrimas de um deus sem
nome. Na verdade, a Natureza está em permanente dor de parto.
Está em contínuo ato de criação. É a comunhão vívida com ela,
é a identificação com a sua dor gritante que faz de um homem
um verdadeiro criador e um visionário (no sentido superior). Um
tal homem é capaz de gerir, de guiar ou de influenciar os
destinos dos outros homens, conduzindo-os para lugares, no
tempo e no espaço, de mais luz, de maior júbilo, de mais e de
maior plenitude.
O Infinito é uma promessa
Hoje tentaremos penetrar – um pouco – no universo
Wagneriano. Não é que um tal expoente humano tenha sido o
autor de algum universo; mas foi, sim, um visitante, de gênio,
num recanto do Universo que a todos nos era desconhecido. Ele
teve a aptidão e o mérito – a sensitividade – de se poder elevar a
alturas insondáveis de beleza e de esplendor, porquanto soube e
pôde descer (interiorizar-se) e penetrar as profundidades mais
recônditas do Ser. É, com efeito, necessário uma invulgar e
intensa capacidade de concentração e subtilidade
(aparentemente, antônimos), a ponto de nos tornarmos ínfimos –
tão ínfimos que podemos esgueirar-nos e passar pela estreita
porta que se abre ao Infinito. E só lá se encontra a Luz sonora e
musical, os sons e as cores de cambiantes pródigos e
ininterruptos – enfim, os contadores de segredos inaudíveis mas
pujantes de sentido, de luz e de cor…
Richard Wagner era um sofredor. Necessariamente, como todos
os gênios, um sofredor atacado por múltiplas espécies de
monstros, guardiões do desconhecido.
E é isso que explica a ocorrência paradoxal e frequente da
combinação de um espírito de genialidade com facetas tortuosas,
por vezes (inclusive) bem sombrias. O temperamento de Wagner
era imprevisível; o seu sentido de ética, perturbador; o seu
ímpeto para a contemplação do Belo, inexcedível; depois – e
face a essa contemplação que a alma humana não pode
empreender sem (por vezes) crestar – era um arrebatador arauto,
um impulsionador para a Conquista e para a Epopéia humanas.
É certo que, amiúde, os grandes e heróicos inovadores
confundem as coisas, a significação grandiosa e amplíssima dos
arquétipos que visionam, e reduzem o mito da heroicidade a um
vulgar e mesquinho ‘cantão’ humano. É a senha dos
nacionalismos: a perversão – infantil – dos Ideais. Num outro
Plano (longínquo) de existência, os Ideais são entidades
viventes; mas só os conseguimos pressentir e lobrigar refletidos
e distorcidos em múltiplos espelhos. Por isso, o perpétuo e
digníssimo Ideal de aperfeiçoamento de tudo o que é vivente no
Universo, freqüentemente (no Reino Humano), é transposto e
delimitado nas estreitas esquadrias de uma herança temporal e
cultural de um povo – de uma mera fração da humanidade e
não, como deveria acontecer, da Espécie-Humana-Como-Um-Todo.
Apesar disso, o que a Wagner foi dado contemplar, não está
ainda ao alcance da maioria de nós e, certamente, muito mérito
ombreava para tais Portas se lhe abrirem. Ele espelhou e
projetou o sonho da Grandeza e Enobrecimento humanos na
saga de um Povo ou de uma Raça – os tectônicos. Pela imensa e
transbordante beleza e carga simbólica de um todo maior, é
nosso mister (de todos, herdeiros da sua obra) desejar que o(s)
mito(s) que exaltou e enalteceu nas suas extraordinárias
composições se converta(m) num símbolo de Universalidade. E
aí, sim, residirá perenemente a sua força, o seu valor e, em
última análise, o seu superior e transcendente propósito, de que
ele foi intérprete, quiçá sem o compreender. A sua obra é e será
uma fonte inesgotável de inspiração para o que de mais belo,
mais verdadeiro, mais sábio e mais justo a humanidade tem por
missão assumir e incorporar.
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O processo de criar
A música é aquela, entre as Artes, que mais abrangente e
atuantemente comunica com as massas, mesmo as mais
heterogêneas. Não é necessário cultura ou erudição para se ser
tocado pela música. Até os animais – e até as próprias plantas –
parecem influenciar-se positivamente com a sua manifestação.
Poucos são os depoimentos dos grandes, dos autênticos mestres
nos domínios das Artes, no que respeita ao processo da sua
“inspiração criadora”. Quanto a Wagner, contamos com alguma
(preciosa mas esparsa) matéria, oriunda muito particularmente
dos testemunhos da sua segunda esposa, Cósima, coligidos numa
espécie de diário 2 entre os anos de 1869 e 1883. Houve de
decorrer um século para que este trabalho inestimável fosse
reabilitado e reestruturado em 5 volumes, pelas edições
canadenses Gallimard.
Datam da época da sua redação os acontecimentos mais
determinantes que, por fim, viriam a viabilizar o êxito da obra de
Wagner, bem como a sua promoção e divulgação ao mundo
artístico vigente e a sua projeção ao futuro: uma, o súbito e
inesperado devotamento do monarca Luís II, ao tempo um
jovem de dezenove anos que, tomado de verdadeiro êxtase e
admiração pela sua obra, lhe rendeu todos os tributos e
honrarias, e pôs à disposição todos os meios de proteção
financeira e artística. Por outro lado, o apoio incondicional,
afetivo e psicológico, que lhe votou Cósima e que durou até ao
final dos seus dias. Cósima era filha do grande compositor Liszt
que, também ele, fora um fiel amigo e cultor do gênio de Wagner
(tristemente, não encontrando neste o reconhecimento e a
retribuição da lealdade que seriam devidos). Era também a
esposa de Hans von Bülow, excelente pianista e chefe de
orquestra, protegido de Liszt e, enfim, discípulo e outro
admirador incondicional de Wagner e que manteve a sua
hombridade e atitude benévola para com ele, mesmo após o
doloroso desenlace com Cósima.
O período mais significante e frutuoso da vida de Wagner
decorreu ao lado da segunda esposa – o seu ar vital e o amor
tardio mas plenamente vivido – numa esplendorosa mansão em
Triebschen, nas margens do lago de Lucerna.
O seu berço e a sua evolução
Em Maio de 1813 nascia Wagner em Leipzig, cidade alemã com
raízes históricas curiosa e repetidamente associadas à Arte. Na
mais tenra infância manifestava um caráter já perfeitamente
direcionado e uma curiosidade vigorosa mas seletiva. Muito
cedo se começou a interessar pela tragédia grega, pela mitologia
e pela filosofia e, com treze anos apenas, traduziu os doze
primeiros cantos da “Odisseia”. Lia Shakespeare e conhecia de
cor a ópera “Der Freischütz”, de Weber (a quem dedicou
genuíno afeto e rendeu vívida homenagem até ao final dos seus
dias). Na mesma idade, crescentemente empolgado pelos legados
de Sófocles, Schiller e Göethe, arroja-se na sua primeira criação:
um drama no qual os quarenta e dois personagens sofrem uma
morte trágica, o que, para dar seqüência à obra, obrigou o
pequeno sonhador a fazê-los reaparecer como fantasmas. Logo
depois, concebe um outro drama, em verso, “Leubal e
Adelaide”.
Aos quinze anos, é levado pela primeira vez ao Gewandhaus,
onde ouve as sinfonias de Beethoven. Absolutamente rendido,
decide-se de imediato pelo empreendimento da composição:
inicia-se com uma sonata, um quatuor e uma ária, e segue com o
plano de uma ópera e esboça uma pastoral (esta, inspirada num
trecho de Göethe e na Sinfonia Pastoral de Beethoven).
Datam de 1832 as sete composições para o “Fausto” de Göethe,
não tendo Wagner completado ainda vinte anos. Logo após,
escreve o poema e o primeiro número da música para uma
ópera, intitulada “As Bodas”.
De certa maneira, a idade dos vinte anos é um marco para o
jovem Richard. Com a sua precocidade e o já incontroverso
valor, com uma natureza arrebatada mas extremamente
envolvente, cativou a Direção do Teatro de Würzburg e
tornou-se ensaiador-chefe dos solistas e dos coros. Naquela
cidade escreveu a sua primeira ópera romântica, denominada
“As Fadas”, e, no ano seguinte, uma outra, “A Proibição de
Amar”, ópera que a censura de então fez mudar o nome, ficando
“A Noviça de Palermo”.
A música fertilizada pela poesia:
uma tônica determinante na sua obra
Nessa época, assiste a uma extraordinária interpretação da
cantora Schröeder-Devrient, em “Fidélio”, com quem teve a
oportunidade de privar de perto: foi ela quem lhe transmitiu
noções indeléveis e fundamentais sobre a mística da conjunção
entre a Poesia e a Música, e que o iniciou na mais íntima e subtil
auscultação da sensibilidade artística de Beethoven. Todo o
potencial artístico de Wagner acordou, então, da sua latência…
Ainda nesse ano, é estreada a sua “Sinfonia em dó maior”.
O próximo passo é a outorga do cargo de regente da Orquestra
do Teatro de Magdeburgo. É então que conhece a atriz Minna
Planer, de quem se enamora, com ela vindo a casar em 1836.
Seria uma união desolada, cujos primeiros tempos, vividos na
maior precariedade, se revelam uma desilusão. Minna, muito
jovem, cede à corte de um rico negociante e abandona o lar,
levando consigo Natália, a filha do casal. A crise parece
reversível e ambos se empenham na reconciliação; mas a
instabilidade manter-se-á, o bom entendimento e a vida em
comum não sendo duráveis, principalmente devido aos
sucessivos motivos de suspeita da volubilidade de Minna e aos
conseqüentes e exacerbados ciúmes de Richard.
Porém, no trabalho, Wagner prossegue incansável, lutador e
cheio de energia. Lê “Rienzi”, de Lord Lytton, e toma-se de
entusiasmo, voando em sonhos de execução para este novo
drama em que mergulha, inspirado. Consuma dois dos atos de
“Rienzi” e projeta abalançar-se para Paris e Londres. Nesta
fase, é de novo visitado por Minna, de quem se apieda –
perdoando-lhe as infidelidades –, e decidem-se a avançar para a
sonhada aventura pela Europa. Sem alicerces nem recursos
financeiros seguros, no auge da sua juventude algo
inconseqüente, partem para Londres, embarcando num veleiro.
E quis o fado que uma enorme tempestade desviasse o navio
mais para norte arrostando-o e fazendo-o ancorar nas costas
norueguesas. Nos dias dessa atribulação, ouviu Wagner, dos
marinheiros, uma lenda nórdica, cantada, que constituirá a
semente do que mais tarde será “O Navio Fantasma”.
Segue-se um período de grande aridez e muitas privações, no
qual Richard e Minna chegam a conhecer a fome. “Rienzi” está
ultimado; no entanto, todas as portas se fecham e a descrença ou
a indiferença são uma constante. No Inverno de 1839/1840, a
duras penas, Wagner termina uma grande Abertura de Concerto
sobre “Fausto”, que apenas 15 anos mais tarde virá a público.
Sem grande alento nem esperanças de ali encontrarem melhores
dias, regressam à Alemanha em 1842. Um volte-face parece
agora acenar: em Dresden, “Rienzi” é montado e levado à cena,
obtendo um extraordinário sucesso. Igualmente em Dresden,
seguiu-se “O Navio Fantasma”, quase com idêntico sucesso. O
casamento com Minna, esse, prossegue fictício, ambos alargando
as distâncias que os separam.
Em 1845, Wagner dá as últimas pinceladas em “Tannhäuser” 3,
cujo projeto fora esboçado, anos antes, em Paris. Contudo, e
para sua grande surpresa, esta não cativa o gosto do público, que
aplaudira as suas outras duas realizações. As pessoas não
estavam preparadas pela aquela linguagem musical inovadora e
exótica. Inabalável e fiel a si próprio, decide prosseguir com a
linha que traçara e, pacientemente, educar o auditório. Trabalha
agora, com afinco, em “Lohengrin”, começado algum tempo
antes, praticamente em simultâneo com a “Tannhäuser”. Mas
esta voltará a receber a incompreensão e a resistência do público
e da crítica. Aos olhos e aos ouvidos destes, Wagner surge como
um pedante, um alucinado prestidigitador, um político
revolucionário e perigoso ou, ainda, um traidor das mais nobres e
conceituadas tradições. Para acicatar ainda mais a animosidade
da opinião que se generalizava, e no meio da agitação política de
então, na qual a Alemanha havia grassado, Wagner tornara-se
ainda mais notadamente um ativista político acalorado e
incômodo.
É atacado por todos os lados, a sua vida privada sendo exposta
“a nu e a cru” em parangonas difamatórias que empolavam e,
por vezes, inventavam “os seus vícios”, “as suas dívidas”, “as
suas extravagâncias”, “os seus luxos”. Assim, foi forçado a
empreender a fuga, escolhendo a Suíça como refúgio.
Nos anos que se seguiram, contou com o apoio de um abastado
casal de sobrenome Laussot. Com efeito, o Sr. Laussot
propusera-se atribuir-lhe uma pensão que lhe permitiria
prosseguir, sem maiores aflições, a entrega à sua arte
incomparável. Depressa, contudo, Wagner se envolveu
amorosamente com a senhora Laussot, relação essa (e o tão
necessitado abono) que teve os seus dias contados, ao ser
descoberta pelo seu mecenas.
O exílio durou cerca de doze anos e, nessa fase da sua vida, o
músico conheceu a instabilidade amorosa, contando-se muitos os
casos das suas relações ocasionais ou outras menos fortuitas.
Pode dizer-se que esse não foi um tempo de que se pudesse
orgulhar. Completamente desequilibrado emocionalmente –
perante as muitas dificuldades e a incompreensão generalizada
sobre a sua peculiar natureza e as suas idiossincrasias –,
deixou-se afundar e tomar por uma espécie de arrogância
fleumática e de azedume por tudo e com todos. Nesse período
obscuro, armava-se com dardos de ironia, que cultivava ao
extremo.
Nestas deambulações, estabelece relações com um outro casal
possuidor de considerável fortuna, que lhe abre generosamente
as suas bolsas. São eles Otto e Matilde Wesendonk. A sua
admiração e afeição por Wagner eram completas e, para
promover a comodidade necessária ao prosseguimento do seu
talentoso trabalho, não olharam a meios. Inclusive, adquiriram
um chalé num terreno contíguo ao da sua própria propriedade,
para que nele residisse Wagner. E o inevitável uma vez mais
aconteceu: desta feita, o amor por Matilde não era uma simples
atração banal, como tantas outras que lhe precederam. Matilde
parece ter sido, com efeito, o grande, grande amor da sua
existência – malogradamente, destinado a uma vida fugaz. O
desenlace e a dor propagada aos três protagonistas desta triste
história foram ruinosos, demolidores.
Uma visão mística e grandiosa do mundo
“O Ouro do Reno”, “A Valquíria” e os dois primeiros atos de
“Siegfried” 4 vêm a ser concebidos sensivelmente na mesma
época de “Tristão e Isolda” e “Os Mestres Cantores”. Agora, em
1869, ele encontra-se no estreito e alucinante passadiço que
separa a composição do 2º e do 3º atos de “Siegfried”. Uma
enorme e fervilhante tensão dele se apodera.. “O Anel dos
Nibelungos” 5 (3º dos atos) e todo o “Crepúsculo dos Deuses”
estão em fase iminente de criação.
Nesta etapa de grande elevação e arroubo, e de enorme pujança
criativa, Wagner extraía a seiva do mito cada vez com maior e
mais lúcida consciência, fazendo-a corresponder em acordes –
ora maviosos ora vibrantes e empolgantes –, que incitam e
transportavam as gentes ao Fogo da Procura… E o maior dos
símbolos, na sua obra vivificado, é sem dúvida o símbolo do
Graal – espécie de leitmotiv das esferas subjetivas (ou
esotéricas), que congrega todo o Mistério da existência humana
e, bem-assim, da sua gloriosa finalidade. O convite para a
“Demanda do Graal” é a mensagem empolgante que a todos nos
lega.
Com efeito, percutindo através de todas as memórias de todos os
antepassados – memórias imperecíveis que em nós vivem
latentes, aí encontrando continuidade –, a Música Celestial 6 (de
que apenas muito poucos puderam trazer e materializar alguns
fragmentos) é o motor subliminar e invisível que nos transmite o
incentivo para a Conquista e para o Progresso espirituais. Como
dissemos no início deste apontamento, Wagner foi,
indubitavelmente, um desses privilegiados artífices-anunciadores
que ajudam a acordar em nós essas memórias adormecidas,
fazendo palpitar as nossas almas.
Wagner amadurecia mais e mais. O seu gênio criativo, tão
expressivo na concepção de óperas que fundou sobre mitos
como o “Parsifal”, o “Anel dos Nibelungos” ou o “Tannhäuser”,
marca uma etapa totalmente nova na história da Música. Uma
obra carregada de fulgor e de simbolismo, arrebatadora e
palpitante até às lágrimas, eis o seu legado vitorioso. A
personalidade de Wagner, contudo, é extremamente difícil –
evasiva e fugidia até, diríamos nós – de descrever. Tinha, como
observamos, demasiadas complexidades e algumas incômodas
fricções e incompatibilidades com o mundo externo e profano –
a capa das coisas (a seu ver) – mas era dotado de um veemente e
intenso amor pela Humanidade: de uma forma abstrata, e
incompreensível para muitos psicólogos analistas convencionais,
que decerto a negariam “por inexistente”; porém, de modo
nenhum menos autêntica; ao contrário, o que ele amava
verdadeiramente era o ser real que subjuga a todos os homens de
carne. Por isso, os Ideais… e por isso a imperiosidade, tão
genuinamente assumida e tão incrivelmente missionária, de
inflamar os corações, tendo por instrumento a sublimidade da
sua arte.
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O seu estranho caráter
Wagner crescera devorado pelos sonhos de grandeza e de beleza
que contemplava (visionava) extasiado mas que se esfumavam
cá em baixo, incongruentes, neste mundo sórdido, surdo, cego e
sulcado de fealdade.
Na juventude, o seu sentido estético desenvolvia-se a par e passo
com a sua natureza e o seu caráter ainda pouco estruturados.
Um tal sentido (quase autônomo), impunha-se-lhe com
exigências tumultuosas. Muitas são as descrições do seu
temperamento como “caprichoso”, por vezes “algo tirânico”:
contudo, para ele, na vida real, cada elemento e cada atributo
tinham o seu lugar e deviam estar presentes como peças vivas,
em seu redor. Deles, e do cenário do seu conjunto, sentia
necessidade irresistível, especialmente em determinados
momentos. A harmonia manifestava-se de muitas maneiras… e o
conforto, o bem estar, e até uma certa opulência e bizarria não
eram coisas “desprezíveis”. De fato, a descrição decorativa de
alguns dos seus “habitats” dificilmente poderia ser alvo de justos
ou adequados comentários: as suas salas-de-estar fervilhavam no
meio de rendas e de paredes forradas de tecidos faustosos,
brilhantes e com um colorido… de estarrecer quaisquer outras
sensibilidades que não a sua: escarlates, combinados com rosas
fucshia ou amarelos… Noutros recantos e alas, cetins brancos,
ricamente festonados, recobrindo os tetos, combinando com
sedas multicores nos imensos e belamente estofados cadeirões;
nas janelas, tules brancos, singularmente apanhados em
“mirabolantes” cachos…
Indubitavelmente, o mundo em que vogava era muito diferente e
estava em total desconformidade com este – muito mais
duro e opaco, e o único conhecido, sentido e palmilhado pela
maioria. Deste modo, ciente do abismo que o separava da
mediocridade vigente, da exígua sensibilidade que o rodeava,
aos olhos de muitos aparecia como demasiado exigente, seguro
de si, caprichoso e egocêntrico. Mas Richard, quase
singelamemte, considerava que a Arte que vivia em si e de que
era servidor era uma Dona – uma Dona celeste – a que ninguém
teria o direito de se escusar a servir. Por isso, se era certo que ele
não capitulava perante as suas devastadoras exigências – as
noites em claro, a entrega febril, por vezes quase mortal, a que
esta o expunha (quando lhe concedia em deixar entrever para lá
dos rendilhados e ondulantes recortes das suas “sete vestes”…
ou quando consentia em lhe deixar soerguer alguns dos místicos
véus com que se encobria…) –, então, também os seus amigos
que, através dele (sem dano e sem consumição pessoal),
beneficiavam da visão daquele divino perfume, tinham por dever
pagar algum tributo. A instabilidade adveniente de um pequeno
desconforto físico ou emocional eram suficientes para lhe
dificultar, sofridamente, a titânica tarefa da concentração
criativa. Sôfrego e impulsivo, desorganizado nos equilíbrios da
sua vida mundana mas desconcertantemente cativante, Wagner
era senhor de uma natureza magnetizadora. Deste modo, com a
naturalidade das suas irresistíveis características, permitia-se
pedir – e, por vezes, exigir, sem rodeios – empréstimos
financeiros avultados que nunca vinha a cobrir.
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Ecos do paraíso dos deuses…
Algures, Cósima anotou no seu diário: “Richard diz-me que no
momento de criar, a dificuldade não lhe vem da escassez das
idéias mas, sim, da necessidade de se conter, de se limitar:
demasiadas coisas, em simultâneo, lhe acorrem ao espírito. O
nervosismo e a inquietude advêm do fato de as dever
selecionar e ordenar”.
É curiosa e plena de significado esta confidência. Na verdade, o
espírito “criador” contempla e assiste a uma realidade “a um só
tempo” – tão vasta e abrangente, que não é possível expô-la e
delimitá-la seqüencialmente (pelo menos, sem a desvirtuar ou
corromper). No mundo temporal, somos compelidos a comunicar
de “forma linear”, o que constitui uma distorção da realidade (ou
seja, a comunicação linear e seqüencial não pode expressar o
que transcende esta nossa dimensão meramente
“tridimensional”, este nosso “espaço comprimido”…). Ainda
assim, o reflexo possível do que Wagner contempla nas Alturas e
que, a duras penas, converte numa obra humana, é
suficientemente cheio, belo e impatante para tomar de êxtase as
nossas ainda rudes e roufenhas fibras nervosas.
Escrevia Wagner: “… ei-la, a minha atmosfera está prestes a
materializar-se. (…) Trabalho de maneira perfeitamente febril…
passo por algo semelhante a estertores; todo o meu corpo se
convulsiona…” E, noutra ocasião: “eu nada posso criar na
tranqüilidade”. Particularmente, durante a fase da composição
do segundo a todo “Crepúsculo dos Deuses”, Wagner e Cósima
corriam uma espantosa sucessão de noites sem pegar no sono.
De fato, é possível imaginar que uma tal música não lhes
poderia dar tréguas e que um estado constante de exaltação era
o seu próprio alimento e algo semelhante ao “sonambolismo” se
substituía ao descanso. É, sem dúvida, uma realidade que em
todo o ato de criação se faz necessária uma intensa e
continuada tensão… Confidenciava ele, ainda: “o que eu posso
achar de singular na minha arte, por exemplo, é que considero
cada detalhe como um todo e que eu não determino que isto ou
aquilo se vai seguir, ou que é necessário fazer assim ou de outro
modo, introduzir tal ou qual modulação… Eu penso
simplesmente: ‘… o resto se encontrará a si próprio’. Se assim
não fora, eu estaria perdido. E, entretanto, eu sei que obedeço ao
traçado de um plano ‘inconsciente’…”
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A imortalização do talento
e da originalidade de Wagner
Em 1872, Richard e Cósima mudam-se para Bayreuth, onde, em
estrita homenagem cultural a Wagner, se projecta a construção
megalômana do Teatro Festspielhaus. Com a sua edificação e
com o seu esplendor, sonharam, em conjunto, durante longos
anos, Wagner e o seu protetor soberano, Luís II. O Teatro das
Festas – o templo da arte alemã – foi, efetivamente, construído
para eternizar a glória do mestre. Em 13 de Agosto de 1876
abriu as suas suntuosas portas para a representação, em
estréia, de “Anel dos Nibelungos”. Na Terra, foi um
acontecimento de magia…
A sua sustentação econômica, contudo, implicava uma
exorbitância longe da viabilidade executiva das mais bem
intencionadas e recheadas bolsas. Apesar da congregação de
subscritores e da sempre fiel generosidade do rei, o faustoso
teatro teve de suspender as suas atividades. Wagner pôde
unicamente vê-lo funcionar duas vezes: na inauguração, com a
Tetralogia, e seis anos depois, com a representação de “Parsifal”
– obra-prima cuja excepcional, exultante concepção o tinha
absorvido por completo nesse interregno. O herói, Parsifal, é o
protótipo de eleição divina, que, mercê das suas virtudes
conquistadas, adquire o direito (reservado a todos os homens
puros e, como ele, sublimados) à visão e obtenção do Graal,
ocultado e interdito aos profanos no tabernáculo de Montsalvat.
A partitura de orquestra é soberba. “Parsifal” é o pináculo da
sua Arte!!!
Isabel Nunes Governo
Vice-Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural
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