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por: Jan Gerahard Toonder

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A singular escola espiritual que chegou ao Ocidente há cerca de um século, através de Georges lvanovitch Gurdjieff, só pode ser compreendida quando se leva em conta o incurável dualismo que permeia a história da cultura ocidental: de um lado o instinto emocional, do outro lado o intelecto. Nas nossas ações, devemos ser guiados pelo “bom senso” ou pelas emoções?

A própria história pode ser classificada em épocas principalmente emocionais ou intelectuais. E podemos também ver este dualismo como uma dúvida entre as eternas perguntas do “por quê” e do “como”.
 

Georges lvanovitch Gurdjieff

As religiões surgem quando estamos emocionalmente insatisfeitos com a vida, quando sentimos que tudo que fazemos e sofremos é inútil, quando precisamos de uma resposta à pergunta “por que vivemos?” Esta é uma pergunta emocional. Muito mais intelectual é perguntar “como devemos viver, ou como podemos ou iremos viver?”

Após o longo ciclo histórico da Idade Média, quando predominava a pergunta “por quê?” e o grande desenvolvimento e supremacia da religião, aconteceu a grande revolução representada pela Renascença. O intelecto emergiu dos subterrâneos da emoção, olhou ao redor, e prontamente resolveu a questão do “como”. Como deve ser nossa vida? Fácil, agradável, saudável, segura e próspera. A grande aventura da descoberta e conquista do mundo desconhecido começou então, e ocupou a atenção do intelecto durante séculos.
 

O dualismo permanece

O intelecto dominou as emoções, aceitando apenas as que serviam a seus fins, como a fé no progresso, a fé na razão pura, a fé na superioridade de certa nação, certa raça, certa crença. Todo este processo de transformação foi sentido como uma libertação. Mas não o era: depois de ser escravo da emoção, o homem tornou se escravo da razão. E o resultado é a nossa civilização contemporânea, onde cada novo passo do progresso torna o mundo mais inóspito, e a vida mais vazia.

Em meio a toda nossa abundância de bens de consumo, somos infelizes, e sentimos que para provar um pouco de felicidade devemos novamente propor a questão do “por quê”.

Já no final do século passado, espíritos mais iluminados perceberam que a então nascente civilização tecnológica caminharia inexoravelmente para um beco sem saída. Já se faziam sentir os primeiros sintomas do vazio, hoje imperante. E tentou se preencher tal vazio com uma série de correntes espirituais que retomaram a busca em direção ao “por quê”: espiritismo, teosofia, rosacruzes e o sufismo, apenas para citar algumas.
 

As mais importantes dentre essas correntes estão ligadas a religiões orientais, que, desta forma, penetraram no Ocidente de forma mais ou menos popular. Isso aconteceu, nas últimas décadas, com o zen e com o budismo.

Devemos considerar que a absorção pelo Ocidente das religiões orientais constitui uma reação ao domínio unilateral do intelecto, o qual, por sua vez, iniciara o seu caminho com uma reação à tirania das emoções.

Mas nós somos ocidentais, ativos e curiosos, que aprendemos a usar o intelecto, mesmo se somos infelizes. Pode ser que o uso do intelecto possa causar danos, mas isto não significa que o intelecto, em si mesmo, seja danoso. Sentimos que as emoções podem trazer algumas vantagens; mas combatemos as emoções descontroladas por temor de que elas nos conduzam fora do caminho. Por isso é que olhamos com suspeita para as correntes dogmáticas baseadas na emoção. Em outras palavras, não conseguimos superar nosso dualismo interior. Essas novas doutrinas de inspiração oriental, mesmo não sendo anti-intelectuais, têm como ponto de partida a emoção. E   o que já é danoso   muitas delas nos são apresentadas de uma maneira hiperemocional. Falam sempre sobre grandezas não demonstráveis, como “vibrações mais finas”, “iniciados”, escrevendo tudo isso em letras maiúsculas. Tudo isso exerce atração e fascínio negativo em pessoas inseguras e emotivas, tipos que começam a derramar lágrimas quando alguém aponta para o céu e profere palavras solenes.
 

Para a maioria das escolas esotéricas, o modo de vida justo se identifica com uma forma de vida pura: meditações, obras caridosas, uma fé inesgotável, uma paciência sem limites. Em resumo, um posicionamento essencialmente passivo, baseado na esperança e na expectativa. Contra isso se levanta (mais ainda no homem ocidental) aquela terceira força que denominamos instinto, mas que poderia ser melhor chamada de força de vontade, vontade de agir, de transformar. Desejamos realizar imediatamente algo de concreto, para atingir nosso objetivo.

Passado o entusiasmo inicial, manifesta se geralmente no homem ocidental uma dupla aversão às correntes esotéricas: a primeira, contra a sua apresentação hiper-emocional, e a segunda, contra a sua atitude não ativa de vida.

Podemos dizer que tal conflito apresentou se pela primeira vez nos anos de desilusão que vieram logo após a Primeira Guerra Mundial, quando constatou se a falência da confiança depositada no progresso promovido pelo intelecto, e a frustração das esperanças acesas no plano emocional.
 

Ouspensky

Naqueles anos escuros, Gurdjieff e seu aluno Ouspensky nos deram uma doutrina diferente de todas as outras, na qual não se pretendia nem o predomínio da emoção, nem do intelecto. Gurdjieff e Ouspensky procuraram, com a ajuda do instinto, chegar a uma síntese de ambos. Conseguiram criar um sistema que promete pouco, mas exige muito; a sua doutrina não tem um nome particularmente belo, chama se simplesmente “O Trabalho”. Singularmente, no centro desse “Trabalho”, formula se a pergunta do “como”.

Como Blavatsky, uma vida misteriosa

Quem lançou as bases de “O Trabalho”  foi Georges Ivanovich Gurdjieff, um homem dotado de personalidade bizarra, nascido provavelmente em 1866, na Geórgia, Cáucaso. Sua família era de origem grega e armênia, e parece que Joseph Stálin foi seu companheiro no seminário de Alexandropol. Mas sabe se pouquíssimo sobre a primeira parte de sua vida.

Aos 24 anos iniciou uma pesquisa na Ásia, onde praticamente permaneceu desaparecido por 25 anos. Sua vida recorda a de Helena Blavatsky, iniciadora da teosofia, que também permaneceu quase um quarto de século no Oriente para concluir estudos e pesquisas.
 

Blavatsky

Mas enquanto Blavatsky deu uma interpretação emotiva da sabedoria que testemunhou junto a seus mestres, devotos, e as várias seitas orientais, Gurdjieff preferiu proceder a uma longa série de anotações em seu diário, intitulado Encontros com Homens Notáveis. Ele fala raramente da sabedoria que teve oportunidade de constatar durante suas viagens. Gurdjieff comportou se com seus leitores da mesma maneira que se comportava com seus discípulos: excitava a sua curiosidade, mas nunca a satisfazia além de uma dose mínima.

Em 1915, já com quase 50 anos, ele se estabeleceu em Moscou. Era um homem de corpo sólido, cabeça grande, grandes bigodes e crânio calvo. Era dotado de uma personalidade magnética, e alguns o consideravam um desagradável hipnotizador, enquanto outros foram completamente vencidos pela sua fora de atração.
 

Dentro de si, ele já havia amadurecido a sua complicada doutrina. O único ponto onde suas idéias não estavam muito claras era quanto ao modo de difundilas. Temos a impressão que, se de um lado ele desejava ardentemente levar seu sistema ao conhecimento, do público, por outro lado considerava o projeto quase irrealizável. De todos os meios que poderiam lhe servir para a difusão, escolheu o mais fantástico que se possa imaginar: fundou uma escola de dança.

O objetivo eras estimular o espirito de indagação dos alunos, submetendo os a uma severa disciplina baseada em movimentos carregados de simbolismo.

A revolução fez com que Gurdjieff e seu grupo abandonassem Moscou, obrigando os a se refugiarem no sul do pais e, logo em seguida, na Turquia.
 

Adquirir um pouco de alma

Em 1922 encontramos Gurdjieff na Franca, vivendo no palácio do Prieuré, em Fontainebleau Avon. Ele teve, ali, a oportunidade de aplicar de forma prática os conhecimentos absorvidos e amadurecidos durante suas longas viagens dos anos precedentes. Alguns dos mais importantes intelectuais e artistas da época foram atraídos pelo trabalho, permanecendo variados períodos no palácio de Prieuré. Entre esses estava a escritora Katherine Mansfield, que ali morreu de tuberculose.
 


Katherine Mansfield

É impossível, num pequeno artigo, fazer uma análise consistente de uma doutrina à qual foram dedicados numerosos volumes. Por isso, trataremos aqui de ressaltar apenas alguns aspectos fundamentais. Como já dissemos, a pergunta inerente ao “como” constitui o ponto de partida. Não são tecidas considerações sobre uma força su¬perior ou sobre os objetivos da vida. Tudo isso, se é que terá lugar, acontecerá num momento sucessivo, pois o homem, antes de poder subir ao céu e compreender as forças superiores, deve trabalhar sobre si mesmo. Ele não é perfeito; ao contrário, é tão imperfeito que não sabe sequer o que seja uma força superior. Ele não é nem mesmo um homem, isto é, um homem verdadeiro como poderia sê lo. Em lugar de ocupar-se de sua alma e de sua santidade. é melhor que o homem   através do trabalho duro   preocupe se em adquirir um pouco de alma.
 

Palácio do Prieuré, em Fontainebleau Avon

O homem, como o conhecemos, é em geral uma máquina que funciona automaticamente. Falamos á vontade do eu, mas na realidade não temos apenas um eu, e sim diversos: dependendo das circunstancias, ocorre o domínio de um eu, ou de um outro.

Um homem que se comporta de maneira servil com seu patrão sente se com um eu diferente daquele que demonstra quando discute com a esposa, de quando se diverte com os amigos, lê um livro difícil ou assiste a uma partida de futebol. Para cada situação o homem tem um pedaço de personalidade, uma outra expressão do rosto e até uma outra voz, sem fa¬lar nos outros tipos de pensamentos e de sentimentos. A única coisa que liga todos esses eus diferentes é o fato de que estão dentro da mesma pele. Mas qual é o eu verdadeiro?
 

Um dos primeiros passos na “Escola do Trabalho” consiste em considerar objetivamente todos esses eus: o aluno não deve tentar influir sobre eles, mas deve simplesmente observá los atentamente, para aprender como eles, agem. Devemos aprender que nós, como as máquinas, temos diversos motores, ou melhor, temos diversos centros de força. Temos assim um centro emocional, um intelectual, um instintivo e um centro motor (ou de movimento). Todos esses centros, unidos ao centro sexual, trabalham caoticamente, sem obedecer a uma ordem. Arrastam um ao outro, superam se, dominam se. obstaculizam se, e por isso dão nos essa imagem de muitos eus.
 

Para fugir da prisão, a ajuda do mestre

O observador objetivo vê isso claramente na confusão continua entre mente e coração: impulsos emocionais são transformados em palavras, as palavras são racionalizadas e depois apresentadas como considerações mentais, enquanto os processos mentais são coloridos e distorcidos pelas emoções. O chamado “centro instintivo” participa ativamente da confusão, porque ele é o camaleão que imita e se adapta ao meio, registrando como pensamentos e emoções próprias o que aquele ambiente espera dele. Enquanto o “euzinho” (o eu que ocupa o palco naquele momento) esta convencido de que é o único e verdadeiro eu, com emoções e pensamentos verdadeiros.

Quando diversos centros são obrigados a funcionar em harmonia, existe a possibilidade de que diversos eus se fundam, dando inicio a um processo de formação de um homem verdadeiro, cada vez mais consciente e senhor dos próprios atos, das próprias emoções, pensamentos e vida sexual.
 

O sistema de Gurdjieff contém um método que, quando desenvolvido com eficiência, permite a harmonização dos centros de força. A partir de certos exercícios intensos de auto observação, o aluno descobre que tais hipóteses estão certas, quer dizer, que ele realmente vive como uma máquina, automaticamente, vítima dos condicionamentos externos e da luta pelo poder entre os seus muitos eus internos. Esta descoberta o humilha, mas também o liberta de suas pretensões. E ele está maduro para o próximo passo. Ficou mais consciente de si mesmo, de sua maneira insatisfatória de viver; sabe que é prisioneiro de si mesmo e do mundo que o cerca. 
 

E aqui Ouspensky usa a imagem de uma prisão. Quem descobriu que está vivendo numa prisão só pode ter um desejo: libertar se. Escapar da prisão não é possível para todos os prisioneiros ao mesmo tempo, e tampouco é possível para cada um individualmente: deve se formar um pequeno grupo bem decidido, que precisa de meios para escapar. Devem se conseguir limas. cordas, etc., e estes meios podem ser fornecidos por alguém que já esteja fora da prisão, alguém que já conseguiu escapar e está livre. Tal fornecedor, em geral, é o mestre.
 

O próximo passo é sair da autoexperiência e chegar á autorecordação. O aluno não apenas deve observar a si mesmo, mas também fixar na memória todo o observado, inclusive o eu dominante no momento da observação. O grau de memorização de atos, emoções e pensamentos exigido do aluno é cada vez mais elevado, visando fazer com que o mesmo possa, num momento futuro, projetar integralmente as experiências do passado. 

Um dos objetivos desta técnica é despertar novamente no aluno a capacidade de observação e memorização que todos nós temos quando crianças. Sabe se que, na infância, quase todas as experiências têm o choque do novo; tudo é intensamente sentido, e nunca mais esquecido. 
 

O espetáculo ‘The Magicians”

O aluno passa cada vez mais a viver plenamente o momento presente, de forma consciente e em estado de total vigília. Cada vez mais ele deixa de ser uma “máquina” para se aproximar do “homem verdadeiro”, o “Homem N° 4”,como o chamava Ouspensky.

Os tipos humanos mais freqüentes, segundo essa escola, são três: o Homem N° 1, um tipo predominantemente físico e instintivo; o Homem N° 2, principalmente emocional; o Homem N° 3, polarizado mais no intelecto. Nenhum destes tipos é melhor que os outros: todos são máquinas especializadas, e para todos os três existe um caminho levando ao Homem N° 4, o indivíduo integrado, que conseguiu reunir e harmonizar em si mesmo todos os três aspectos.
 

Gurdjieff com seus discípulos costurando os trajes 
do espetáculo ‘The Magicians”

Homem n° 4: o tipo integrado

A “Escola do Trabalho” é uma escola dura, e seus professores, quando autênticos, não fazem nada para aliviá la. Quem precisa de ajuda psiquiátrica não se satisfará ingressando nela. Deve procurar um psiquiatra. Quem espera consolo ou palavras animadoras se decepcionará. 
 

Maurice Nicoll

Na lista interminável de perguntas feitas por discípulos, Maurice Nicoll, discípulo de Gurdjieff, escreveu vários volumes tentando respondê-las. Pedem se explicações sobre temas como o da vida após a morte, a reencarnação, a interpretação da oração do Pai Nosso, o valor do amor, etc. Mas Gurdjieff não dava importância a este tipo de perguntas, deixando claro que quem trabalha consigo mesmo fatalmente encontrará sozinho as respostas; quem não trabalhar sobre si mesmo, mesmo encontrando as respostas, não conseguirá entendê-las.

Louis Pauwels, que durante alguns anos pertenceu a um grupo orientado por discípulos de Gurdjieff   comprometendo, segundo diz, a própria saúde, queixa se, em seu livro ‘Senhor Gurdjieff’, da “absoluta falta de amor e total desprezo pela vida imperante na Escola do Trabalho. 
 

Já o médico Kenneth Walker, ao contrário, vê no sistema de Gurdjieff uma doutrina espiritual que não parte de dogmas, crenças ou hipóteses, e sim de pontos de vista mensuráveis, físicos, e até materialistas. E, por seu lado, o psicólogo Young, desiludido com o eterno cavacar no subconsciente típico dos seguidores de Freud, reconhece na doutrina de Gurdjieff uma “tentativa sublime para se chegar a uma superconsciência”.

 O certo é que mesmo Pauwels admite o fato de que ninguém que tenha conhecido ou participado de “O Trabalho” saiu dele no mesmo estado em que entrou, e que aqueles que desistiram também se enriqueceram com a experiência. 
 

 
filipeta

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