A MORTE COMO TRANSIÇÃO
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Por: Márcia Maranhão Limongi
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Acostumado a ver a morte sob um prisma negativo, o homem ocidental se sente perdido diante da própria mortalidade. 
Segundo a tanatologia – ramo do conhecimento que estuda a temática – encarar o fato como uma transformação inevitável é  fundamental para se viver o presente com intensidade.

     “Assim como viver, morrer é um exercício diário.

Na chama da vida está a chama da morte.
A escolha é só minha:
Posso cultivar a dor de morrer a cada instante, ou
O prazer de renascer no momento seguinte.
…a tristeza de sentir as coisas terminando
Ou a alegria de ver começar algo de novo.”
(Cais, Geraldo Eustáquio de Souza – psicólogo)

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A “MORTE MORREU !!!”

imageSNOMorte – palavra temida, esquecida, rejeitada, símbolo de mau agouro, final de tudo. Na civilização ocidental, tudo é feito para encobrir a morte: a proibição de tocar no assunto socialmente; o culto à juventude e ao dinamismo; a rejeição da velhice; o afastamento das pessoas moribundas das casas; o cuidado dos hospitais em esconder os que morrem nos necrotérios; a rotina de maquiagem e flores nos enterros; as cerimônias rápidas; e, lá no fundo, uma breve sensação de “ainda não foi a minha vez”. A palavra “morte” nem sequer é mencionada nos comerciais de venda de jazigos, já notou ? A morte não é vendável, não é viável nesta sociedade capitalista nem valorizada por ela – afinal, a perspectiva do fato tira um antigo adepto do mundo do consumo, um ser produtivo do mundo dos negócios.

No entanto, em muitas sociedades, sobretudo orientais, o significado da morte é totalmente o oposto: o fato marca a coroação da vida, a libertação de um estágio de sofrimentos e infortúnios, o acordar para a realidade maior.

Ela é encarada com calma, naturalidade e alegria, às vezes até festejada, como na antiga China. Para essas culturas, o final da existência física não parece tão devastador quanto para nós.

Às vésperas do terceiro milênio, mesmo fazendo tudo o que pode para prolongar a vida através de novas drogas, tecnologias, aparelhos e procedimentos, a ciência moderna não conseguiu  vencer ou decifrar o enigma da morte. O resultado dessa equação não solucionada é fuga, ansiedade, angústia e muita preocupação. 

A TANATOLOGIAUM PONTO DE ENCONTRO DA VIDA COM A MORTE

No caminho estreito onde só as religiões tinham condições de oferecer algum conforto, porém, surgiu a tanatologia, o estudo da morte. Na verdade, um estudo tão antigo quanto a humanidade, mas trazido à tona e tendo seus conhecimentos aplicados em prática terapêutica pela psiquiatra suíça naturalizada norte-americana Elisabeth Kübler-Ross, que desenvolveu um trabalho inédito sobre o tema na década de 60.  Ela organizou seminários onde pacientes terminais, médicos, enfermeiras, capelães e estudantes falavam de seus problemas, dos hospitais, tratamentos recebidos e do que sentiam nos estágios finais da vida. As conclusões permitiram uma assistência mais humana e adequada diante da morte, além de maior compreensão de como uma pessoa age e pensa diante dessa perspectiva. Incomodando muita gente e quebrando um rígido silêncio, lentamente a tanatologia vem se sofisticando e atingindo níveis de pesquisa cada vez mais profundos. São famosos, por exemplo, os estudos norte-americanos a respeito das visões de pacientes que voltaram da morte e o desenvolvimento de técnicas e teorias que derivam da física quântica, da psicologia transpessoal e da filosofia oriental, focalizando-se sempre o aspecto de como lidar com a morte e o morrer, bem como sua transcendência.

No Brasil, a tanatologia também caminha com bons resultados. A Dra. Gislaine Maria D’Assumpção, psicóloga transpessoal, presidente da Associação Brasileira de Tanatologia (Belo Horizonte) e diretora do Centro de Orientação sobre o Sofrimento e a Morte, vem há 15 anos divulgando o tema por todo o País, através de seminários e cursos de formação em tanatologia. 

Professora da Unipaz em Brasília e autora dos livros Pingo de Luz e De Volta à Casa do Pai (Editora Vozes), uma orientação sobre a vida e morte para crianças. Gislaine mostra-se incansável no trabalho com pacientes terminais ou portadores de doenças graves, com pessoas que perderam entes queridos e até na prevenção de suicídio.
 

A Tanatologia tem como finalidade trabalhar o medo da morte, ao mesmo tempo preparando melhor as pessoas para a vida. Afinal, vida e morte são faces de uma mesma moeda e, inevitavelmente, quando você trabalha com uma, trabalha com a outra.  Da mesma maneira, quem teme a morte também tem medo da vida. Somente na reflexão da própria morte encontraremos um sentido para a existência  e  aprenderemos como contribuir para enriquece-la, no trabalho, nos relacionamentos, nos nossos objetivos e ideais.

 

OS MEDOS QUE NOS AFASTAM DA IDEIA DA MORTE

Vivemos, na verdade, várias mortes em vida, muitas transformações nos acompanham desde a infância até a vida adulta. Dessa forma, salienta a psicóloga, os principais obstáculos a serem vencidos são o medo e a ansiedade, frutos de uma visão distorcida do mundo, que nos impede de perceber a morte como um fenômeno natural e como o destino de uma criatura vivente. Mas o ser humano tem várias razões para tanto medo: o instinto de conservação; o desejo inconsciente de ser eterno; a frustração da sua busca de respostas para a morte, o que o deixa impotente, reprimindo a sua necessidade de compreensão; a imprevisibilidade do morrer e a impossibilidade de controle da situação; a idéia de não ter futuro ou continuidade; a iminência constante de destruição com a ameaça de guerras, bombas nucleares, etc.

Por outro lado, morrer hoje em dia ainda é um ato triste e solitário nas UTIs dos hospitais, onde o atendimento é despersonalizado, o paciente perde o direito de opinar e torna-se um corpo a ser tratado; o agonizante perde o status e a experiência da morte é destituída de conteúdo, tornando-se um fato banal e relegado a segundo plano. Muitos médicos e profissionais de saúde já estão atentos para esse estado de coisas.
Outro fator importante para o medo, é o a pego às pessoas, aos bens materiais, a tudo que dominamos e obtivemos na nossa jornada e que, sorrateiramente, a morte vai nos tirar. Por isso, na medida em que o desapego é trabalhado, a pessoa fica preparada não só para o momento da morte, mas para tudo na vida. Na luta para dominar o medo, a tendência é mascará-lo, perder a curiosidade, desafiar constantemente a morte para testar a invulnerabilidade do corpo, endurecer internamente, tornar-se violento. 
 

Atualmente, os estudiosos discutem até que ponto a retirada da morte da realidade cotidiana contribuiu para a “doença social”, a agressividade e a violência do homem. Afinal, se a morte não é importante, 
a vida também pode não ser.

O SENTIDO DA VIDA

O homem perdeu o contato com a idéia da própria mortalidade, possuindo apenas o sentido das mortes alheias. Assim, o sentimento que prevalece é o de perda, em detrimento da consciência de sua própria finitude e o que fazer com ela. Por causa disso, o ser humano perde-se também em relação ao que fazer com a vida. 

A questão da morte salienta o sentido da vida e favorece o aparecimento de perguntas como “De onde eu vim ? O que estou fazendo aqui ?” A nossa cultura não é voltada para dentro, para a análise; tudo nos puxa para fora de nós. Como o indivíduo não questiona o sentido da sua vida, a idéia da morte provavelmente torna-se apavorante para ele, não havendo uma preparação adequada para o momento da grande passagem, da sua transformação maior. É como, por exemplo, quando alguém programa uma viagem de estudos para Londres, diz Gislaine: ele já sai com um objetivo, mas ao chegar lá fica deslumbrado com a cidade, quer passear, fazer compras, ir a um barzinho. O tempo vai passando e a pessoa esquece que foi fazer um curso, perde o endereço da escola, o seu visto acaba e ela tem de voltar. Como vai se sentir ? É o que acontece com a nossa vida – o tempo vai passando, chega a hora de ir embora e você se pergunta: “o que vim fazer aqui ? E agora ?” E o medo toma conta. Na verdade, quem trabalha bem a idéia da morte vive intensamente. Se hipoteticamente você imaginasse que amanhã seria seu último dia no planeta, ele não teria um significado, uma profundidade maior? 
Cada coisa que você fizesse, cada amigo que encontrasse, cada flor que visse, cada coisa que comesse seriam diferentes. O aqui e o agora são todo o tempo, toda a existência, onde passado, presente e futuro se fundem num só continuum de tempo e espaço. 
 

Como disse Ken Wilber, 
“viver no presente acima do tempo é não ter futuro, e não ter futuro é aceitar a morte – mas isso o homem não faz. Não aceita a morte e, portanto, também não vive no agora; e não vivendo no agora, não vive de maneira alguma”. 
Nessa perspectiva, podemos notar como é importante a qualidade de vida, não o tempo para viver. Uma vida que deixa de ser vivida plenamente faz com que o medo da morte aumente. Existe a necessidade de nos prepararmos para aceitar a nossa condição de seres mortais: essa é a essência do bem-viver.

O TRABALHO E AS RESPOSTAS DA TANATOLOGIA

A base do trabalho de Gislaine Maria D’Assumpção na tanatologia é a psicologia transpessoal, o mais novo ramo da psicologia, que surgiu depois das descobertas da física moderna. Segundo ela, a física quântica abriu uma porta imensa para compreendermos todos os fenômenos paranormais e o que é a morte. Dessa forma, pode-se trabalhar dentro de um consultório com um conceito que antes era domínio só das religiões, o que não era suficiente, pois não se trata aqui de doutrinação, mas de uma maneira mais objetiva de usarmos as ferramentas para compreender isso.
O objetivo do estudo da psicologia transpessoal é a consciência, que está fora do tempo e do espaço, é holística e eterna – somos parte do todo e ao mesmo tempo somos a parte e o todo. A física quântica diz que o universo é uma complicada teia de eventos interligados e que não podem ser separados do todo, mas tem que ser estudados integrados no todo e de acordo com as suas inter-relações com ele. Gislaine costuma dizer que Jesus foi o primeiro físico moderno:Ele disse, por exemplo, que “somos ramos de uma mesma parreira” e a teoria do holograma diz o mesmo; “na casa do meu Pai existem muitas moradas” e a física de hoje fala de muitas dimensões. Tais conceitos ajudam a compreender também o pós-morte.

Para quem acha que a morte deve ser triste e avassaladora, a tanatologia desvenda a luz no fim do túnel: a morte é apenas uma passagem, uma mudança de nível de consciência. O budismo tibetano trabalha com níveis de consciência e está bem mais adiantado nesse processo. A psicologia transpessoal utiliza muito esse conhecimento, bem como o do Livro Tibetano dos Mortos. 

Gislaine gravou uma fita que auxilia a pessoa a vivenciar o processo de morte. Sua proposta é imaginar que ela teve uma morte clínica e retornou à vida, teve uma segunda chance. O que faria então ? A idéia é que, visualizando uma construção positiva da vida, ela caminhará para o equilíbrio e a ampliação da consciência, pois “somos o que pensamos” – palavras de Buda que a física assina embaixo. É importante o indivíduo construir uma vida repleta de significado próprio, caminhando, cada vez mais, para uma realidade perfeita e cósmica. Em suma, não desperdiçá-la nem adiar a chance de viver. Seja como for, o amanhã é sempre incerto. 
A experiência tem mostrado que o estudo da consciência ajuda a trazer tranquilidade perante a morte. Os pacientes costumam perguntar a Gislaine o que vão sentir no momento de morrer e a tanatóloga costuma propor um treino – assim, a pessoa não é pega desprevenida, tem uma idéia do que pode ser o processo, é liberada para falar no assunto e não se sente tão só; outra pergunta comum é sobre o que acontece depois – ela expõe relatos de pessoas que tiveram morte clínica e foram até certo ponto antes de retornar e fora do corpo se sentiram bem e tiveram a oportunidade de ver as suas vidas como num filme e reavaliar o seu sentido. Esses relatos de visões de pós-morte coincidem com outras experiências místicas e com os ensinamentos espirituais, que afirmam que a morte não existe como um fim, mas é uma transição.

O uso da Tanatologia nos meios hospitalares é fundamental para trabalhar a parte emocional do paciente terminal no sentido de lidar com seus medos e depressão, possibilitando a eles a oportunidade de participar da morte como participaram da vida. Alguns chegam a melhorar depois de entrar em contato com a temática.

Kübler-Ross descobriu que os estágios finais de alguém que sofre de uma doença terminal caracterizam-se por cinco fases emocionais intensas: a negação da doença (“Deve ter sido um erro”), buscando-se outras opiniões e qualquer um que possa desmentir isso; a raiva(“Por que eu ? É muito injusto.”), havendo revolta contra tudo e todos; a barganha ou negociação (“Se conseguir sair dessa, prometo…”); a interiorização (“Preciso tomar providências.”), quando se tenta resolver tudo o que está em aberto; a aceitação, que está longe de ser uma atitude passiva, já que a pessoa compreendeu seu estado , avaliou sua existência e sabe que chegou ao final. Todas essas fases devem ser respeitadas e acompanhadas de perto por profissionais e familiares. Se a pessoa realmente morrer, será com dignidade, bem assistida e, com certeza, estará mais serena. O trabalho com a equipe hospitalar (médicos, enfermeiros, atendentes) é de igual importância, pois, se estes não estiverem tranquilos em relação à própria morte, dificilmente o estarão diante da morte do outro.  Ficarão estressados e emocionalmente abatidos, o que não facilitará em nada o seu trabalho nem a situação do moribundo.

Para os que perderam entes queridos, a tanatologia tem sido de grande auxílio, pois faz com que lidem de maneira positiva com esse sofrimento intenso, liberem a dor e reconstruam a vida. No atendimento a pessoas com doenças graves, ela contribui para que os pacientes se tornem conscientes de que são os agentes responsáveis pela cura, cooperem com o tratamento médico e modifiquem hábitos, trabalhando em função da saúde e não da doença.

Em algumas partes do mundo já existem hospedarias prontas para atender pessoas às quais a medicina nada mais tem a oferecer – é o chamado “atendimento paliativo”. Porém, para humanizar a morte em uma sociedade, não basta fundar clínicas especializadas e implantar serviços de tanatologia em hospitais.

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Por: Márcia Maranhão Limongi 
Psicóloga atuante nas áreas:
Clínica – Diretora do Instituto Parágono;
Escolar – Consultora, ministra cursos para professores, 
diretores e mantenedores em sindicatos, escolas e universidades;
Industrial – consultora de Treinamento e Desenvolvimento para Chefias e Executivos;
Consultoria em psicologia para editoras, com mais de 300 artigos publicados em várias revistas.Para eventuais contatos com a autora:
mmlimongi@terra.com.br

Artigo já publicado na Revista “Planeta”
Edição 291

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