Austin Osman Spare, pintor e desenhista de grande habilidade e originalidade, realizou pesquisas na esfera do ocultismo que permaneceram até agora quase desconhecidas pelo mundo em geral. Quando de sua morte em 1956, no entanto, foi descoberta uma grande quantidade de material que lança muitas luzes sobre a filosofia psicomágica que ele expressou amplamente por meio de sua arte.

Apresentei os pontos principais dessa filosofia em um livro que está quase concluído,[2] mas aqui coloco algumas de suas características essenciais, exceto a grande quantidade de citações retiradas dos materiais não publicados que Spare me deixou como legado no momento de sua morte.

Quando se referia a si mesmo em relação à sua filosofia mágica, Spare costumava nomear a si próprio pelo conceito que chamou de Zos, e é esse nome que usaremos para nos referir a ele ao longo deste ensaio.

 

Ele explicou esse conceito em O livro do prazer (1913) da seguinte maneira: “O corpo considerado como um todo eu chamo de Zos”; era o destilador que ele usava para trabalhar a alquimia de sua arte, assim como seu modo não menos individualizado de magia. O símbolo complementar a esse conceito de Zos ele chamava de Kia, ou “eu” atmosférico, que usa Zos como seu campo especial de atividade. O culto de Zos e Kia é o culto da interação de forças dinâmicas simbolizadas posteriormente, de modo antropomórfico, pela mão e pelo olho. Estes, em completa coordenação, permitem ao artista-magista convocar imagens ocultas que estão latentes no depósito da subconsciência cósmica. O toque que tudo sente e a visão que tudo vê são os instrumentos daquele id primordial, ou desejo, que Zos busca o tempo todo reificar nas vestes de carne.

A teoria básica de Zos é que todo sonho ou desejo, toda vontade ou crença, qualquer coisa, na verdade, que a pessoa nutra em seu ser mais íntimo pode ser suscitada na carne como uma verdade viva por um método particular de evocação mágica. A isso ele deu o nome de “ressurgimento atávico”; trata-se de um método de realização do querer que envolve a interação entre vontade, desejo e crença.

Em primeiro lugar, a vontade deve ser forte o suficiente para sondar as profundezas da memória cósmica e latente até que um atavismo necessário seja localizado. Em segundo lugar, o desejo de reificação deve ser forte o suficiente para revestir a imagem da vontade em uma forma atraente o suficiente para inspirar o nexo.

Em terceiro lugar, deve-se liberar uma quantidade de crença ou fé para a atividade nas profundezas latentes, de modo que os primeiros sinais profundos e nostálgicos de consciência causem uma série violenta de impactos que criem um choque de identidade. O êxtase resultante encarna o desejo latente num poder e numa realidade patentes.

Esse é o objetivo de quase todas as formas de magia, mas aqui há uma diferença na simplicidade do método empregado, pois não requer nenhum equipamento cerimonial nem participação de um grupo de adeptos. O desejo específico para o qual se projeta qualquer operação mágica deve ser visualizado subconscientemente, enquanto a mente consciente se abstrai do processo. Quando qualquer conceito se introduz na mente, propaga-se em contato com ela e sempre permanece parte de uma ideia que, pelo fato de seu significado ser críptico e, por isso, enigmático para a consciência comum, fecunda o subconsciente. Ao observar o que ocorre com esse resíduo conceitual, Zos foi capaz de construir um sistema de sigilos que facilitou a entrada do desejo total nos reinos subliminares, que lá vai buscar seu próprio nível e germinar secreta e discretamente.

Qualquer desejo pode receber uma forma simbólica, mas, nesse caso, a forma não deve manter nenhuma aproximação pictórica com o desejo particular em questão. Por meios mágicos, o símbolo pode então ser implantado no subconsciente, para lá aguardar a extrusão final como fato reificado após ter contornado o censor consciente e atraído todos os elementos necessários do mundo externo. Entretanto, é da maior importância que a mente consciente nada possa conceber de tal símbolo.

Três métodos de despertar estratos de memória subconsciente foram desenvolvidos por Zos: o sistema de sigilos, o alfabeto do desejo e o uso de símbolos sencientes. Exemplos dos três métodos podem ser vistos na ilustração do autor reproduzida a seguir. Vejamos uma breve explicação do funcionamento desses métodos.

O uso de sigilos: expresse seu desejo em uma frase curta; escreva a frase e anote todas as letras individuais que a compõem, omitindo quaisquer letras repetidas. Quando a frase for reduzida à menor quantidade de letras, una-as graficamente em um glifo composto que não sugira a natureza do desejo. Em seguida — e isso é de grande importância — esqueça o desejo e absorva o sigilo no subconsciente.

No alfabeto do desejo, cada letra representa um “pensamento sensorial”, um conceito estético localizado em um estrato de memória passada apropriado à sua forma e natureza. Esse alfabeto sutil pode ser usado para suscitar autômatos elementares e espíritos de outras esferas.

O terceiro método desenvolvido por Zos, os símbolos sencientes, diz respeito especialmente à profecia e à divinação. Por uma forma de oráculo délfico envolvendo o uso de sigilos e pela introdução de um sigilo no subconsciente, ele é capaz de pensar por nós; se o sigilo retomar uma questão sobre algum evento futuro, ele vai gerar, a partir de sua própria consciência, a verdadeira criança de suas partes simbólicas. Se um glifo for construído corretamente de modo que nenhum elemento supérfluo permaneça para gerar ramificações inúteis, ele dará origem — certamente como um símbolo geométrico — à sua própria verdade ou resposta, pois cada questão traz inerente a si sua solução.

Esses três sistemas de simbolismo não são a única contribuição de Zos ao campo da magia prática; ele também desenvolveu o conceito de postura de morte ou nova sexualidade, aquela abordagem oblíqua à realidade que ele chama de caminho precário funambulista entre os êxtases.

Ainda é muito cedo para dizer como a influência de Zos será integrada ao corpo principal do ocultismo; ela tende mais a prescindir da tradição do que a recorrer a ela, enfatizando a abordagem individual e única à realidade, de modo que apenas a mente livre de conceitos é grande o suficiente para abraçá-la. A tradição só pode ser aquela forma de crença que, sendo fixa e passada, não mais abriga possibilidades dinâmicas; não raro, Zos se refere à tradição como “o inferno do normal”, a convenção da crença vazia ou a crença cristalizada dos outros, do nosso si-mesmo passado, que só pode aprisionar e não libertar a vitalidade.

Zos localiza a apreensão da realidade na reciprocidade, rápida como um raio, que acontece no “entremeio” em que terminam o ego e o si-mesmo. O ego seria o si-mesmo dadas as circunstâncias do momento, fundindo-se perpetuamente em uma consciência secundária de um ego ilimitado, ou si-mesmo, que não é nem uma crença fixa nem um desejo voltado para qualquer outra forma de energia que é liberada quando o ego se desarticula e se dissolve. Na verdade, é o “Nem isto–Nem aquilo”, ou “eu” atmosférico, que é fluido e fixo em uma unidade de vazio livre de concepção, um estado de ipseidade inconcebido e inconcebível. Por conseguinte, o si-mesmo representa o desejo; o ego, a crença encarnada; “Não importa–Não precisa ser” (uma fórmula muito reiterada de Zos) sugere a ipseidade de que o ego é, a qualquer momento, uma reificação meramente efêmera ou um conceito limitado, desprovido da verdadeira realidade. “Não importa–Não precisa ser” significa aquilo que o ego não pode conter ou conceber.

A relação entre sujeito e objeto, entre o ego e o id, representa, na doutrina de Zos, as fases “como agora” e “como se” da expectoração do “eu” na matéria conforme refratada pela mente. O “eu” é não criativo, sem conceito e sempre livre; mas, ao se experimentar em termos de conceitos imaginários, como tempo e espaço, ele assume o duplo papel de ego e id, cuja interação constitui um “ensaio simbólico da realidade” no mundo das ideias.

É a imaginação que é suprema, pois, sem esse poder ou faculdade misteriosos, que é, em certo sentido, a mente-em-movimento-através-do-tempo-e-espaço, não pode haver ego e id, não pode haver apreensão subjetiva dos fenômenos circundantes, tampouco universo objetivo de variedade infinita.

A arte de Austin Osman Spare não é outra senão a expressão de Zos pela qual Kia ensaia seu sonho de realidade. E com que propósito? Por prazer. Enlevo talvez seja uma expressão mais apropriada, embora sugira mais um estado passivo de aquiescência à felicidade intensa do que uma alegria positiva e vibrante. Êxtase e arrebatamento são termos igualmente aplicáveis.

O magista cerimonial prepara seu palco para o ensaio da realidade com todas as armas tradicionais; mas Zos sustenta que isso é uma pantomima desnecessária, porque a apreensão de nossas realidades maiores deve ser efetivada conscientemente por meio da vivência das simulações simbólicas do ego “como se” fossem reais, não como um ensaio simulado, mas como uma evocação espontânea dentro do círculo mágico da imediatez — agora. Isso se se assemelha, mas não se equipara, à doutrina do zen-budismo. Enquanto o processo zen provoca na mente uma inatividade para que a energia cósmica individualizada possa fluir livremente para dentro do oceano da consciência absoluta, no culto Zos Kia é o corpo que se torna afetivo aos impulsos da onda cósmica, de modo que, “ao se tornar todo sensação”, realiza todas as coisas como carne e na carne.

O termo carne denota, nesse contexto, a percepção totalmente consciente do “eu” atmosférico — o princípio do “Nem isto–Nem aquilo”, agora, no corpo presente que tudo permeia. Encontramos uma forma tradicionalmente simbólica desse conceito no budismo tibetano na imagem de yab-yum, que é uma representação de Kia ensaiando seu contato enlevador com Zos ou “corpo considerado como um todo”. Kia está presente em todos os lugares, mas é por meio da carne que se busca a imediatez de sua realização, enquanto no zen ela é apreendida pela mente. O objeto é o mesmo nos dois métodos, mas os meios parecem variar. Na verdade, não há diferença no órgão da consciência, seja considerado como corpo ou como mente.

Um símbolo, em certo sentido místico, é idêntico ao que ele simboliza. O verdadeiro símbolo deve ser um veículo perfeito para a soma total de energia que lhe dá forma; portanto, ele é igual ao que simboliza porque sua energia se torna infinita quando a crença nele é vital. A crença, para ser eficaz, deve ser vital, dinâmica; deve funcionar subconscientemente, até mesmo no limite de sua negação na consciência. Quando vitalizada por ser absorvida nas profundezas subliminares, ela ignora o ego, é suprimida pelo censor e, portanto, esquecida; desse modo, o desejo é despertado, e isso esgota o conteúdo consciente da crença. A abstração, desse modo, torna-se o meio de sua apoteose.

Zos transparece por meio de ambiguidades que não formulam conscientemente o objeto de desejo, mas criam sua presença por evocações sutis; ele é sempre oblíquo, nunca direto, pois reconhecer abertamente a crença permite ao ego conceber a partir da forma simbólica dessa crença, representando-a, assim, falsamente. Há certa semelhança de técnica nesse processo com a do poeta Mallarmé, cujo método de evocação sugestiva desperta sensações e significados bem estranhos às palavras pelas quais são aparentemente comunicados.

Dois outros fatores importantes são a crença livre e a exaustão. Qualquer símbolo é uma limitação da crença, ou energia, por sua própria forma e natureza particulares. A fim de liberar a energia da crença, sua forma ou símbolo deve ser destruído para que a quantidade de crença que expressou se torne livre para se fundir com o potencial de crença de quem acredita, que é, em última instância, infinito. Quando se atinge isso, a crença se torna livre e vasta o suficiente para conter a própria realidade.

Um método de libertar a crença é por meio de uma intensa decepção, particularmente pela perda da fé em um amigo, uma religião, ou pela destruição de algum ideal. Quando se experimenta a decepção fundamental, os símbolos que expressam uma cota de crença são destruídos. Em alguns casos, o indivíduo não consegue sobreviver à desilusão. Mas, nessas ocasiões, se o momento é aproveitado e vivenciado conscientemente por si só, o vácuo atrai para si o conteúdo inteiro da crença inerente à pessoa no momento da decepção.

Em uma escala menor, embora ainda com grande efeito mágico, os momentos de vazio que sucedem a qualquer tipo de choque ou exaustão emocionais podem ser utilizados da mesma forma. É preferível, claro, exaurir a psique por meios prazerosos, embora — como declarou Buda — a tristeza seja um dos maiores fatores que provocam a introversão das faculdades mentais à sua origem e, portanto, ao real. Na medida em que a mente pensa, imagina ou concebe, existem símbolos; e, na medida em que os símbolos perduram, as concepções procedem deles. A liberdade da forma e de suas limitações ocorre somente quando Kia permanece sozinho e quando Zos percebe a extensão de si mesmo; pois, quando “o corpo como um todo” percebe plenamente sua extensão — que é infinita e eterna —, ele se torna um com Kia, ou “eu” atmosférico.

Dois outros fatores fundamentais que exprimem o sistema de Spare em termos de magia primal, como se fosse um novo obeah ou uma nova ciência de atavismos ressurgentes, são obsessão e êxtase. O subconsciente, impregnado com qualquer glifo dado, deve ser energizado obsessivamente por êxtases contínuos, sob o pressuposto de que a profundidade primordial ressoa em antigas nostalgias que revivem suas crenças originais. O alfabeto do desejo, com cada letra representando um princípio vital, é sobretudo adaptado para explorar correntes profundas de êxtase e, quando o florescimento total da ideia obsessiva é efetuado, a explosão de enlevo é em si a realização de Zos.