As dúvidas e os questionamentos do livro básico da mitologia judaico cristã.

por: Moab José José de Araújo e Sousa

imageVHA1. Introdução

A Bíblia tem sido, ao longo dos tempos, objeto da minha curiosidade. Desde a infância, quando aos domingos pela manhã meu pai reunia todos em volta da mesa para o culto familiar. Durante anos, lemos e estudamos a Bíblia – do Velho ao Novo Testamento -, de Gêneses ao Apocalipse. Hoje, a maioria dos pesquisadores dão preferência aos títulos: Primeiro Testamento e Segundo Testamento, para evitar entender-se que os judeus seguem o que é “velho”, e os cristãos, o que é “novo”.

No meu entendimento de criança, ficava encantado com algumas narrativas, embevecido com os ensinamentos contidos noutras e, ao mesmo tempo, confuso diante de determinadas passagens. Como líamos e comentávamos tanto o Primeiro, como o Segundo Testamento, não podia deixar de fazer algumas comparações. Para mim, era gritante a diferença entre o deus de Moisés, e o deus apresentado por Jesus. Enquanto o primeiro era um deus irado e não rara vezes violento, o segundo, um deus extremamente amoroso, justo e bom. O deus de Moisés, o Senhor, o deus de Jesus, o Pai. 

Assim, as dúvidas, os questionamentos, povoavam a minha cabeça… Mesmo porque, ouvia dizer que a Bíblia era a “palavra de Deus” e não podia ser questionada. Percebia, entretanto, um fato muito interessante: as pessoas da minha convivência, em sua maioria, aceitavam a Bíblia como sendo a palavra de Deus muito mais por temor, do que propriamente por crença. Muito mais por medo da “ira de Deus”, “da punição”, do que por acreditar no seu “Amor incondicional”. Mas, a definição de João Evangelista vibrava em minha mente, e no meu coração: “Deus é Amor”. 

Anos mais tarde, aprendi com Carlos Torres Pastorino, autor de “Minutos de Sabedoria”, em sua obra magistral “A Sabedoria do Evangelho – Volume I” (Editora Sabedoria), que existem alguns requisitos básicos para se ler e interpretar as escrituras: 
1) isenção de preconceitos; 
2) mente livre, não subordinada a dogmas;
3) inteligência humilde, para entender realmente o que está escrito 
    e não querer impor ao escrito o que se tem em mente; 
4) raciocínio perquiridor e sagaz; 
5) cultura ampla e poliforma, mas, sobretudo; 
6) coração desprendido (puro) e unido a Deus. 

Consciente de não possuir nenhum desses atributos, diante das escrituras me sinto apenas um “curioso” bem intencionado. Quem deseja ir mais além, não pode temer o desconhecido. Precisa desafiar limites, correr riscos, vencer o medo… transcender! 

No dizer de Leonardo Boff (Tempo de Transcedência – Ed. Sextante – 2002), “Por isso, nós, seres humanos, temos uma existência condenada – condenada a abrir caminhos, sempre novos e surpreendentes”.  
 

2. A Bíblia – os primeiros tempos

A história da Bíblia remonta há aproximadamente 4 mil anos, época em que os judeus eram um povo nômade ocupante da região onde hoje é a palestina, não tendo ainda um livro sagrado que orientasse suas práticas espirituais. De pai para filho, as histórias contendo um fundo moral, eram assim, oralmente repassadas. Esse costume fez surgir os cânticos religiosos que, sempre repetidos, ajudavam na memorização das histórias, formando, podemos assim dizer, o “embrião” da Bíblia, fortalecendo e preservando a cultura, tradições e crenças desse povo. Dezenas de séculos passaram até serem, essas memórias, devidamente resgistradas na cerâmica, depois no pergaminho, e mais tarde no papiro, sendo incontáveis vezes, escritas e re-escritas. Outras dezenas de séculos, como é de se imaginar, foram ainda necessários, até a Bíblia chegar à estrutura que conhecemos na atualidade: O Tanách, a Bíblia Judaica – 24 livros; a Bíblia católica – 73 livros, e a Bíblia protestante – 66 (Revista das Religiões – Edição 12 – agosto de 2004 – Editora Abril). É impossível que tais registros, orais e depois escritos, passando por tantas gerações, se mantivessem intactos, não sofrendo alterações. Tal como a experiência do “correio de voz”, quando colocamos algumas pessoas, uma ao lado da outra, dá-se uma “mensagem” à primeira da fila pedindo que esta seja repassada a seguinte, e assim por diante… Dificilmente a mensagem chega à última pessoa da fila sem sofrer alterações no seu conteúdo original, em parte ou no todo. 

3. Indícios e evidências das alterações

Vamos recorrer mais uma vez a Pastorino, na obra anteriormente citada, para falarmos sobre as alterações ocorridas na Bíblia, ou melhor, nos livros que formam a Bíblia. Essas alterações devem ter acontecido (e aconteceram), quando consideramos as seguintes ocorrências: “Harmonização – tentativas que faziam os copistas para “harmonizar” um texto de um livro com o de outro, acrescentando ou tirando palavras; Interpolação – quando um leitor anotava, na entrelinha ou na margem, um comentário seu, e o copista, julgando-o um “esquecimento” do copista anterior, introduzia esse comentário como parte do texto”. Além disso, os chamados “copistas” ou “escribas” eram bons desenhistas de letras, mas nem sempre dominavam o conhecimento da língua. Não existiam sinais gráficos que separassem as orações, as palavras eram copiadas uma após as outras seguidamente, economizando o papiro, material de custo elevado, gerando contudo, algumas confusões. A título de esclarecimento, Carlos Torres Pastorino era diplomado em filosofia e teologia pelo Colégio Internacional S. A. M. Zacaria, em Roma. Diplomado também em Português e Geografia, falava espanhol, francês, italiano, inglês, latim e grego.

O que Pastorino escreveu na década de 60, está em perfeita sintonia com o texto da “Revista das Religiões” – ano de 2004, já citada, quando diz: “Os relatos mais remotos sobreviveram ao tempo por cópias de outras cópias”, e mais adiante, “ao comparar antigas cópias manuscritas, é possível encontrar muitas anotações e mesmo interpretações sobre os originais”.  

4. A construção da Bíblia

Como vimos, a Bíblia foi escrita durante séculos, sendo produto de muitas mãos. Aos poucos, essas narrativas a princípio independentes, foram reunidas e ordenadas, mas sem a preocupação com a ordem cronológica. “Muitos escritos são obras de diversas mãos, produzidos em várias fases e precariamente enleados”, acrescenta Johan Konings, biblista e autor do livro “A Palavra se fez livro” (Edições Loyola – 2002), conforme citação da “Revista das Religiões”.

Originalmente, do “Tanách” – a bíblia Judaica -, constava apenas o pentatêuco, também conhecido como o “Torá”, ou seja: Gêneses, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Com o acréscimo de outros livros, o Tenách passou a ter um total de 24.  A versão da Bíblia, do hebraico para o grego, segundo a tradição, ocorreu mais ou menos no século 3 a.C., no reinado de Ptolomeu Filadelfo, denominada de “Septuaginta”, também conhecida como “Bíblia dos Setenta”. As explicações para o nome, são várias. A tradução teria sido feita por 72 sábios judeus, em 72 dias e, 70, eram as principais línguas faladas no mundo, excetuando-se as consideradas variantes, híbridas ou dialetos dessas setenta.

Sendo assim, quando se fala na tradução da Bíblia do hebraico para o grego, é bom considerar-se o que diz o professor de hebraico, Avraham Avdan Bem-Avraham Corrêa, no prefácio do livro “Analisando as Traduções Bíblicas” (Editora Idéia – 4ª. Edição – 2002), de autoria de Celestino Severino da Silva, estudioso do hebraico e da Bíblia: “Na realidade, ao se traduzir o Tanách para o grego e depois para o latim, e depois ainda às línguas ocidentais, originando a Bíblia que o Ocidente conhece, conceitos semíticos incompreensíveis para gregos e romanos (hindo-europeus) ou até opostos às concepções helênicas, foram adaptados a conceitos heleno-latinos, nem sempre exatos, para que as sociedades neo-cristãs pudessem entendê-las, embora com o sacrifício do sentido original”. 

Quase quatro séculos depois, lá pelos idos dos anos 80 a 100 a.C., na palestina, em Jâmnia, foram definidos pelos judeus alí reunidos, os livros que formariam o “Velho Testamento”, em número de 39 (que arrumados de forma diferente, formam os 24 livros do Torá), considerando os seguintes aspectos: eram os mais antigos produzidos na palestina; estavam escritos em hebraico; e tinham orientação favorável a Israel. 

Sobre a escolha dos livros que comporiam a Bíblia, lemos na “Revista das Religiões”(já citada), o seguinte: “A escolha dos livros da Bíblia – considerados sagrados e divinamente inspirados – ocorreu em 393 no Concílio de Hipona, na África do Norte”(o grifo é nosso). Mas, apenas no Concílio de Trento, em 1546,  foram definidos os 73 livros da Bíblia, sendo: 39 do cânone hebraico; os 7 deuteronômicos; e os 27 do Novo Testamento. Estava assim, constituída a Bíblia Católica, já que a Bíblia protestante, conta apenas 66 livros.

Temos, assim, três bíblias: O Tanách, ou a Bíblia Judaica (o nosso Velho Testamento) com 24 livros; a Bíblia Protestante ou evangélica, com 66 livros; e, a Bíblia Católica com 73 livros. Por que a diferença no número de livros de uma bíblia para outra? O que continham os livros, por que, e por quem foram excluídos? São perguntas que precisam de respostas. Diz frei Jacir de Freitas, exegeta do Instituto Santo Tomás de Aquino: “Cerca de 52 livros do Primeiro Testamento e 60 do Novo ficaram de fora, além de milhares de papiros e pequenos fragmentos, escritos no século 2 a.C. ao 8 d.C.” e, arremata, “São verdadeiras preciosidades. Trata-se de uma outra Bíblia, uma Bíblia apócrifa” (Revista das Religiões – já citada – o grifo é nosso).  

5. Conclusão

Para  se fazer uma análise criteriosa sobre a Bíblia, alguns aspectos precisam ser considerados. Peço licença, então, para transcrever alguns trechos, com citações de vários estudiosos do assunto (Revista das Religiões – já citada):

“A Bíblia é uma seleção de escritos do grupo que conseguiu impor sua visão de Deus”. 
(André Chevitravesse – historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.)

“Até chegar na Bíblia tal qual ela é hoje houve brigas de grupos, de ideologias, por motivos doutrinários e sociopolíticos”. 
(Luigi Schiavo – cientista da religião – Universidade Católica de Goiás)

“Mas o critério de inspiração passou pelo raciocínio humano, porque grupos de pessoas decidiram quais eram os livros que deveriam entrar”. 
(Pastor Daniel Godoy – professor do Instituto Teológico de São Paulo)

Deus não escreveu e nem escreve livros. Quando necessário inspirou, inspira, ou inspirará os homens a escrevê-los. No entanto, o conteúdo dos mesmos dependerá sempre da pureza espiritual de quem escreve, bem como de suas condições morais e éticas, a fim de que preconceitos, dogmatismos e interesses outros, não desvirtuem o sentido e a beleza da mensagem. 

Leonardo Boff (Fundamentalismo – Editora Sextante – 2002), aprofunda-se no estudo do fundamentalismo que, de maneira equivocada e preconceituosa, é creditado apenas às religiões islâmicas. Porém, o encontramos também enraizado no cristianismo sob diversas formas. Diz Boff: “Parte-se do princípio de que a história e as palavras não ficam congeladas no passado. Elas mudam de sentido ou ganham novas ressonâncias com a mudança dos contextos históricos. Por isso precisam ser interpretadas para que seja resgatado o sentido original. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus, é obra de Satanás. A Bíblia não precisa ser interpretada, ela é apalavra de Deus, e o Espírito Santo ilumina as pessoas para compreenderem os textos. Por razões semelhantes, eles se opõem aos avanços contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a Bíblia” (o grifo é nosso). 

imageVKAÉ o perigo que corremos quando perdemos o equilíbrio, o bom senso, a direção, e aportamos no fanatismo e este nos conduz ao fundamentalismo religioso. Esse mesmo fundamentalismo que deu origem a tantas páginas lamentáveis da nossa história religiosa, tais como a inquisição, as cruzadas, a guerra entre católicos e protestantes na Irlanda, os conflitos do Oriente Médio, etc. Finalizando, vale apenas observar as palavras do padre Shigeyuki, do Centro Bíblico Verbo: “A ambiguidade no uso da Bíblia aparece constantemente no nosso dia-a-dia. Conforme a interpretação, pode-se transformá-la em instrumento de vida e de libertação, ou de morte e opressão” (o grifo é nosso). 

Certa feita, em um artigo, assim escrevi: “Afinal, dizem (a Bíblia) é “a palavra de Deus”. Mas – é bom não esquecer – escrita e reescrita pelos homens, em várias épocas, segundo seus próprios interesses”. E hoje, acrescentaria: segundo as suas possibilidades. Lembrando ainda, em tempo, a máxima de São Jerônimo (o grifo é nosso): “A verdade não pode existir em coisas que divergem”.

Saudações e paz para todos!
Moab José José de Araújo e Sousa
Lar “Pouso da Esperança”
São Luiz/Maranhão – julho de 2004.
moab@elo.com.br

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