A Mente Interior

image93N

Apesar dos ousados e verticais mergulhos nos subterrâneos do psiquismo humano, pouco se apurou a respeito do mecanismo que rege a criatividade e faz de um homem um ser mais original do que os outros. Já está constatado, entretanto, que a força da imaginação não depende exclusivamente do emprego de técnicas mais apuradas nesta ou naquela atividade. Os maiores criadores da história desenvolveram técnicas próprias e originais, sem mestres, quase que somente na base da intuição. Como tudo isso brota no interior dos cérebros?Apesar dos recentes estudos no campo da criatividade, existe ainda um considerável mistério sobre o que leva uma pessoa a encontrar uma interpretação expressiva e original para seu trabalho, seja ele em termos artísticos ou não.

Sabe-se, por exemplo, que um homem que tenha um trabalho original dentro do seu campo não é necessariamente o possuidor da técnica mais desenvolvida nesse mesmo campo: Tchaikovsky queixou-se sempre da sua falta de habilidade técnica e foi levado a um trabalho contínuo e tenaz para chegar ao nível dos colegas do seu tempo e realizar formalmente as suas inspirações.
 

Tchaikovsky

Mas existem casos onde o impulso criativo é tão grande que chega a ser um fardo para os que o têm.

Caso típico, é o de Mozart, que afirmava não precisar praticamente usar a consciência para criar: suas músicas surgiam numa espécie de transe, num estado “tão delicioso que não consigo descrever”, relatou ele. “Toda essa produção toma lugar num sonho vivo cheio de prazer. Mas não ouço, em minha imaginação, as partes sucessivas da música, e sim como um todo. E o que é produzido dessa forma, dificilmente chego a esquecer. Esse é, talvez, o melhor dom que preciso agradecer ao Divino Criador.”
 

Mozart

Ao constatar que a habilidade técnica da pessoa criativa não precisa necessariamente estar uniforme com a busca de uma expressão original, Freud buscou a resposta para o enigma criativo na psicopatologia do homem criativo. Sugeriu, então, que o trabalho de um artista era a sublimação de um indivíduo esquizóide quando diante do seu insucesso ao tentar obter fama, poder, bens e o interesse por parte das mulheres. Mas, se isso for assim, por que nem todos os esquizofrênicos sublimam através de uma expressão artística?

Posteriormente; alguns psicólogos estudaram a criatividade a partir da teoria de Freud – mas descobriram que a vida da maioria dos artistas não demonstra nenhuma inclinação particular que tentasse satisfazer a qualquer uma das inclinações propostas por ele. Para cada libertino, por exemplo, existe um artista extremamente bem-comportado e bem-casado, e, seguramente, se riqueza, poder e fama fossem forças realmente motivadoras, profissões ligadas à política, ao jornalismo ou à tecnologia seriam uma escolha bem mais recompensadora do que a arte ou a criação pura.
 


Freud

É claro que a fama tem seu peso no trabalho, embora certamente não seja ela que leva o alquimista até seu porão e o artista a viver recluso, à espera de uma recompensa futura e incerta especialmente porque, hoje em dia, a fama é encontrada mais facilmente pelo extrovertido apresentador da tela de TV do que, pelo discreto artista ou cientista.

Existem também exemplos onde o impulso criativo não é admitido como um dom bem-vindo: Tolstoi foi um que tentou escapar às exigências da criação, deixando de escrever e vivendo como um vagabundo – apesar de todo o seu talento e de sua fama já aceita.
 


Tolstoi

Um processo para desenvolver talentos

Em casos como esse, vem à memória o tema medieval da possessão por alguma força exterior: amigos de Tolstoi contam que, muitas vezes, ele parava de ouvi-los e parecia atender a alguma coisa interna, que conversava apenas com ele.

Pode-se dizer que os costumes sociais são irrelevantes para a pessoa criativa. De fato, essas regras sociais podem ser empecilhos decisivos se forem levadas em conta. Muitas histórias sobre a infância de homens de gênio mostram essa perda de confiança, desde cedo, nas visões estabelecidas e nos padrões de pensamento comum. Por essa razão, homens como Newton e Einstein foram considerados por seus professores como terrivelmente lentos para aprender – maus alunos, em suma.
 

Newton

Talvez exista nesse ponto uma parte do segredo da criação: temos o hábito de perceber as coisas apenas da forma estabelecida – e é esta a maior barreira para a originalidade. Don Juan sempre fala da necessidade de aprender a ver “de forma a estender nosso conceito de realidade”.

Assim, à pessoa criativa é sempre necessário ter um conhecimento mais amplo da realidade. Com isso, pode-se dizer que o hábito e o impulso são pólos opostos na evolução do pensamento.

Exemplo disso é a passagem do Tratado de Pinturas, de Leonardo da Vinci: “Olhe para certos muros manchados de umidade ou para pedras de cores irregulares. Se você usar algumas lembranças, poderá ver nelas paisagens adornadas com montanhas, ruínas, rochas, florestas, grandes planícies, colinas e vales em grande variedade. Olhe novamente e verá batalhas e estranhas figuras numa ação violenta, expressões de faces, roupas e uma infinidade de coisas. Em cada parede será a mesma coisa que no som dos sinos, em cujas batidas pode-se encontrar a palavra que se imaginar.”
 


Leonardo da Vinci

O gênio, então, estaria no topo de uma escala de originalidade gradualmente aumentada, na qual cada um de nós tem seu lugar. A partir daí, o que se deve é aumentar o potencial criativo da média dos indivíduos, que têm pouco impulso criativo ou possuem um nível muito abaixo do comum aos gênios.

Muitos pesquisadores concordam que o pensamento criativo é um produto da mente inconsciente. Raramente a inspiração é o resultado direto da mente consciente; de preferência ela ocorre quando menos se espera, no momento em que a mente consciente não está ocupada com o problema de criar.

Assim, as obstruções produzidas pelo hábito e pelo condicionamento que bloqueiam o caminho entre o inconsciente e o consciente são menos atuantes quando o consciente está relaxado. Isso explica os exemplos relativamente frequentes de inspiração que surgem quando a pessoa está caindo no sono. É nesse momento que as ondas alfa surgem no eletroencefalograma.
 

Sem dúvida, seria de grande vantagem se cada um de nós pudesse ter a habilidade de produzir esse estado criativo quando quisesse: seria comparável ao estado de “esforço sem esforço” que o zen objetiva e que tem uma forte influência sobre a poesia, a pintura e o teatro japoneses.

Existem vários exemplos mostrando que, no ponto em que a inspiração está para surgir, as pessoas sentem uma necessidade de fugir da consciência chamada normal. Nesse momento, evitam as racionalizações ao máximo e criam todo um ritual que deve ser seguido sempre que a inspiração se aproxima: alguns, por exemplo, costumam sentar-se e simplesmente fixar o espaço ou fazer constantes e longos devaneios, como que à espera de alguma coisa. Num exame mais profundo, parece que a maioria dessas escapadas podem ser vistas como uma tentativa do inconsciente de fugir da prisão imposta pela consciência – uma tentativa que muitos artistas fizeram através das drogas.

Da mesma forma, pessoas com um impulso criativo fraco imaginaram formas para ocupar a mente consciente com os sentidos durante um processo de criação: essas formas decorrem de ações comuns como a de fumar cigarros seguidamente; beber xícaras e xícaras de café ou ter o cheiro de uma maçã ao lado da mesa de desenho.
 

 

Originalidade exige uma percepção não-comum

Para o físico alemão Helmholtz – primeiro homem a medir a velocidade dos impulsos nervosos, inventor do oftalmoscópio e criador do princípio de conservação da energia – “…as idéias felizes chegam inesperadamente, sem esforço, cimo numa inspiração. Por mais que tente recordar, essas idéias jamais me vieram à mente quando estava fatigado ou quando estou em minha mesa de trabalho. Elas vêm especialmente quando subo vagarosamente pelos bosques das colinas, num dia de sol.”
 


Helmholtz

Helmholtz recomendava um método para desencadear o processo criativo: o primeiro estágio envolvia a investigação e a pesquisa de tudo que estivesse ligado ao problema, um estágio que chamou de preparação; o segundo seria a incubação, e envolvia o esclarecimento do problema no consciente. A partir daí o inconsciente produziria o terceiro estágio ou inspiração.

Walles, em seu livro The Art of Thought, propõe um estágio final, que seria o da verificação. Segundo ele, essa parte final precisa ser introduzida, para testar a validade da inspiração.

Existem várias teorias sobre a mecânica da inspiração. Uma delas é a de Arthur Koestler, demostrada em The Act of Creation. Resumidamente, Koestler afirma que cada idéia é parte do que chama de “matriz de pensamento” do interior do inconsciente. Essa matriz contém a idéia central somada a todas as conotações, associações e possibilidades daquela idéia, que foi construída pela história social, cultural e pela experiência pessoal do indivíduo.
 

Arthur Koestler

Quando considera um determinado problema, esse indivíduo passa através de todas as possibilidades até a matriz do pensamento. Se exaure todas essas possibilidades sem encontrar uma solução, precisa entender que a resposta faz parte de uma outra matriz de pensamento que não associara ao problema até, então. O momento em que faz essa ligação – ou a encontra com uma matriz a princípio não relativa ao tema é o ponto que Koestler chama de bissociação ou inspiração.

Essa teoria  inclui ainda a idéia de que cada bissociação toma lugar quando ambas as matrizes de pensamento estão maduras para serem bissociadas. Em outra palavras: se Newton não tivesse visto a maçã cair e a ligasse à gravidade, outro cientista o teria feito na mesma época. Isso nos leva à ocorrência relativamente comum de descobertas simultâneas: Darwin e Wallace, por exemplo, desenvolveram a teoria da seleção natural ao mesmo tempo e independentemente um do outro.
 

Darwin

Deforma semelhante, se uma descoberta está à frente do seu tempo e o público está despreparado para aceitá-la, muitas vezes ela desaparece e só volta anos ou mesmo séculos depois, quando uma nova mente criativa a retoma e desenvolve num tempo em que a maioria dos homens pode então entendê-la.
 

 

Os sete buracos da cabeça

Arthur Koestler: “A descoberta da penicilina se deve a uma sucessão de coincidências quase ridículas. Elas começaram em 1922, quando Alexander Fleming pegou uma gripe. Uma gota do seu nariz caiu num prato do seu laboratório no Saint Mary Hospital, e o limbo nasal matou os bacilos da cultura que ali estavam. Fleming isolou o agente ativo do muco, que estava também presente nas lágrimas, e chamou-o lysozime. Esse foi o primeiro passo. Mas o lysozime não era poderoso o bastante para matar germes, e mais sete anos se passaram até que uma rajada de vento soprasse, através da janela do laboratório, um esporo de bolor penitilium notalum, que por acidente se fixou no prato de cultura do estafilococo. Mas Fleming estava esperando por isso há quinze anos”(The Act of Creationl.)
 
 

Fleming

Herbert Greenhouse: “Durante anos o inventor Elias Howe tentou, sem sucesso, aperfeiçoar a máquina de costura. Uma noite, ele sonhou que fora capturado por selvagens que o levaram até seu rei. O rei fez um ultimato: se dentro de 24 horas Howe não produzisse uma máquina que pudesse costurar, morreria trespassado por lanças. No sonho, Howe se atormentava mas não conseguia achar uma solução. O dia fatal passou e os selvagens se aproximaram, segurando suas lanças cintilantes e ameaçando-o. Lentamente, eles levantaram as lanças e Howe pôde ver as pontas descerem sobre ele. De repente, esqueceu o medo e fixou-se nas pontas da lanças: cada uma tinha buracos em forma de olho. Howe despertou imediatamente e entendeu que, para sua máquina de costura, o olho da agulha precisava ficar perto da ponta, e não em cima ou no meio. Levantou-se rapidamente da cama, correu para seu laboratório, poliu uma agulha do tamanho que precisava, fez um buraco perto da ponta e colocou-a na sua máquina” (Premortitions: A Leap finto the Future).
 

A. E. Houseman: “Enquanto caminho, sem pensar em nada em particular, simplesmente olhando as coisas à minha volta, às vezes surge no interior da minha mente, com uma repentina e incontida emoção, uma linha ou duas de um verso, às vezes uma estrofe de uma vez, acompanhada – e não precedida – de uma vaga noção do poema que estão destinadas a fazer parte. Há então uma calma, de uma hora ou mais, e, às vezes, tudo surge novamente” (The Name and Nature of Poetry).

 

filipeta

 

pm23