A sua chegada ao Brasil revolucionou sua imagem milenar.

diaboloEle, em tudo fiel, moral e fisicamente, à versão consagrada na cristandade, chegou ao Brasil em 1500.  Com seus chifres, seu rabo, sua corcova, seus pés de bicho, suas asas de morcego, sua cor, seu fedor de enxofre, sua morrinha de cão, seu bodum de nego fulastra, seu pitiú de maloqueiro, sua cantiga de estoraque. Com aquela capa preta, mal escondendo um sexo impossível e aquele forcado de três pontas com que azucrina as almas danadas. Voa pesadamente e, ao caminhar, saltita ou espicha os passos como o urubú. Garras em lugar de unhas, couro em lugar de pele, duras ferpas de porco em lugar de cabelo.

Hipócrita, mentiroso, traiçoeiro, labioso, corrupto, maligno, trapaceiro, mestre de todos os vícios, sabedor de tesouros enterrados e de mil disfarces para enganar até os santos. Gosta de fandangos e toca viola. Apossa-se dos vivos e, às vezes, de certos animais de sua preferência como os porcos e os cães pretos. Adora os lugares baldios, as casas abandonadas, as grotas, as estradas de pouco trânsito e os lugares sagrados que foram profanados. Companheiro constante dos bêbados, das prostitutas, dos ladrões, faz ponto, quando em atividade, nos botequins, nos bordéis e nas cadeias ou, então, ronda pelos lugares onde se cometem crimes e se executaram criminosos e feiticeiros. Tudo isso para uma coisa que hoje nos parece inglória: perder o homem…

Mas, no Brasil, a imagem inserida há de passar por sérias vicissitudes, não por culpa da instituição a que ele há tempo se integrara, mas por artes do novo meio. A primeira constatação, sem imediata aceitação do fato, foi que aqui se encontrou em franca atividade e com aceitação universal numa das suas versões mais primitivas e ingênuas. Aquele ‘ele’ primordial, despersonalizado, manifestando-se fragmentadamente em Juruparis, Caaporas, Jurupis e nos vagos nhãs e anhangas. 

Decepcionante! Ora, onde já se viu diabo sem alguma briguinha com Deus, sem titulo de promotor de pecado original e outras complicações em torno do sexo? Que diabo de diabos são esses caras que protegem plantas e animais e que podem inclusive ajudar a gente?

Um diabo adaptado

Foi assim que no Brasil ele sofreu a sua primeira transformação que, aliás, não se efetuou sem dores e dissabores. Lembremo-nos: a Inquisição andou atenta aos deslizes da santidade, às cerimônias do catimbó, porém não o suficiente para manter a integridade d’ele. 

Aconteceu o que deveria acontecer. Ele, apanhado num processo de integração, conforme os senhores sociólogos, consentiu, adaptou-se e socializou-se: anhãjetê, um diabo a mais, apenas um tanto reforçado, não chega a demônio e não se dissolve num porá (espírito).

Consta que, em fins do século 16, com a implantação da cultura canavieira houve necessidade de mão de obra. Buscou-se o índio. Inadaptável! Ou fugia pro mato ou morria de querência (consulte-se Antonil). Na verdade, queremos crer, eles não precisavam de açúcar em tais condições.   

Vai daí que da África trouxeram os pretos, pretos de muitas nações e de culturas várias, mas todos eles com suas crenças e nas suas crenças um rol pregresso de imagens d’ele, desde as mais vagas e imprecisas como os calungas até as ‘bem’ configuradas em aspecto, atributos e áreas definidas de ação. Orixás e, ao lado deles, uma entidade primordial, livre, amoral, poderosa, senhora das aberturas, das passagens, das mudanças. Os Exus. E Elegba. E Elegbara. Podem ter certas tinturas restritivas, mas não houve influência árabe que conseguisse transformá-los em Eblis ou em Chaitons (diabos) definitivos. Vieram ao Brasil, assim como vieram as legiões do povo de Ganga e Omolum com sua gente e outras entidades, que aos olhos do ocidental são malignas mas que na visão do grupo cultural que as formulou são apenas naturais.

Pois bem, a chegada de Exu ao Brasil convulsionou mais ainda o diabo que, a muito custo, ia se ajustando a uma fórmula indígena. Mais outra crise e outro ajustamento e ele volta a se configurar com forma aproximada do homem, mas perde sua destinação de maldito e inimigo implacável do gênero humano.  

Pois bem, esse foi o segundo golpe sofrido pelo demônio no seu processo de inserimento à cultura popular brasileira. Tendo perdido seu caráter de irredutível maldade, transformando-se em elemento controlável para o bem ou para o mal, subornável inclusive com determinadas ofertas, pode ser respeitado e cultuado como também ser objeto de chacota. Aconteceu que ele se nivelou ao popular . . . Tendo se reencontrado em Exu Tiriri, Exu Arranca Toco, Exu Marabó, Exu Canta Galo, Exu Sete Encruzilhadas, Exu Tranca Rua etc. etc., ele será tratado como todos eles, ora com respeito ora com displicência.
Terá mil nomes: ele, aquele lá, o outro, o sombra, o da esquerda, o tal, o só, o capiroto, diabo, diacho, demo, capeta, coisaruim, cusarruim, corcoveado, demônio, diá, guampudo, guaramputo, dito frango, malinho, pé de pato, mentiroso, sujo, tinhoso, cascudo, rabudo, chifrudo, danado, maldito, “seo” compadre, pai das cobras, cupinzeiro, manquitola, o manco, quatro dedos, chico silva, zé cotô, estributado, mucuta, patudo, encourado, Romão, Pedro Romão, cranco…  

Amarrar o diabo

E será domado, preso e amarrado com rezas e simpatias. Com pinga e fumo faz e desfaz malefícios, encarrega-se de empresas várias desde botar alguém em “camisa de madeira” ou apressar um casamento. 

Pode cair em armadilhas; alguém toma um barbante e vai lhe dando três nós, dizendo:  “Assim como eu dou um nó neste barbante eu amarro também o rabo do diabo e não solto enquanto ele não fizer o que eu desejo”.   

E as rezas recitadas às avessas para lhe agradar e o fazer “trabalhar”. 

Além disso ele pode ser cultuado como uma espécie de “deus” propiciador de boas colheitas; dá-se ao dismo (evidentemente corruptela de uma palavra de significado esquecido), num dos cantos da lavoura, um pouco de cada coisa que se colhe. O que aconteceu com dízimo se repete agora com Belzebu, uma espécie de Exu que se apresenta sob a forma de um lindo boi (consulte-se a respeito a criada de Vera Veiga).  

Na literatura de cordel, o diabo vive às voltas com demandas e pelejas das quais sai, invariavelmente, perdedor, a não ser que a outra parte seja um herege, ou adversário político do chefe amigo do cantador ou um desses criminosos já julgados pela opinião popular e, às vezes, pela justiça comum. Digo às vezes porque nem sempre opinião popular e justiça comum se sintonizam . . .   Assim, o diabo pode vencer um protestante, um maçom ou um espírita, mas perder para Lampião ou Antônio Conselheiro.  

Na literatura popular

Na literatura oral ele pode se apresentar como carrasco, como juiz ou como vingador, consagrando assim a sua parte como individuação da sanção social. 

No entanto, é nessa mesma literatura que podemos aquilatar a que grau de pungente descrédito o demo caiu:

“Certa feita, lá pras bandas de Três Coração, o diabo ouviu dizer que ia ter baile na fazenda do ‘seo’ Negrinho. Como ocê sabe, o diabo é violero e dançadô de baile, pois num vê que ele se arvoroçô e, mais do que depressa, disse: `Vô, arruma meus trem, uai, e vô!’ Dito e feito, afinou a viola, botou um pala bem comprido para escondê-os cambito e os casco e desembestou, chispando fogo, pelo estradão. Chegado lá, a função já tinha começado, o diabo já foi se enfiando no meio do povo e, pra chama atenção, arranco um ponteo que era uma lindeza de se escutá. O povo foi se achegando.  

O diabo virô dono da festa, mais vai que o burro fica véio mais não perde a barba, pois o diabo se inxeriu de orgúio e garrô a dá uns pinotes de cá pra lá e daí, minha gente, num é que foi aparecendo o rabo, os cascos, os cambito? A gadeia dele desmancho e os corno aparecero. Aí, os muleque, e ocê sabe que minino é pió que o cusarruim, quando viro essa coisa, garraram uns chuço de pau e uns tição de fogo e cairo em cima dele vê marimbondo caçununga e, catuca daqui e catuca dali, uma corrução de fedô denxofre, e o diacho perdeu a viola, perdeu a capa, perdeu a prosa e disparou que ninguém viu.
Tava ele de cocre em riba dum cupim passano cuspe na quebradura e mascano carrapatera pra mor dos miudo pisado e vinha vino um home num pangaré sumitico e o home disse:
  Bas noite, compadre, descansadinho?
  Qual o que! Tô doente, compadre. Será que o compadre podia me dá garupa?
  Pois se ajeite. Nóis vai na festa do ‘seo’ Negrinho. Num se avexe e vá muntano.
  Beco, berrô o demo, vai lá não, compadre, qu’está ansim de mulecada!”  

Uma conversa com o diabo

Mas o terceiro, o derradeiro ataque, porém, não o último, à integridade, à identidade e à personalidade específica de Satanás, aconteceu a partir de fins do século 19. Até então ele conservara, pouco importando a sua amalgamação índio africana, aspecto, tarefas e qualidades numa mesmice que parecia ser permanente e eterna. 

O século 19 produziu, no Ocidente, para os rumos da ciência, o evolucionismo. Simultaneamente, os afeiçoados às ciências ocultas aplicaram o novo esquema à esfera espiritual:  os espíritos se aperfeiçoam, evoluem, vão passando de situações grosseiras às de plena iluminação e de pleno desenvolvimento. Foi aí que ele sofreu, nas esferas populares que praticam o espiritismo, o tremendo choque que o reduziu à condição de simples espírito obsessor, endurecido e ignorante, susceptível de, diante de doutrinamento, ser lançado na corrente dos que podem se redimir. Ele pode estar encarnado ou desencarnado e, encarnado, praticando tudo aquilo que antes se atribuía ao velho diabo. Se desencarnado, integra-se à legião dos Exus, e dos espíritos embrutecidos.  

Finalmente aconteceu que ele foi apanhado pelas mesas do espiritismo dito baixo e, então pôde-se assistir a coisas bem elucidativas como esta (trabalho assistido em São Miguel Paulista em casa da mocinha X, médium e em vias de ser babá, 1954):

E:   Ui, aiii, ai, tão me amarrando, ai! Me soltem!
M:   Diga seu nome, diga!
E:   Não digo meu nome pra gente à toa! 
M:   Pois então, toma!
E:   Ai, não me batam seus . . .
M:   Joana d’Arc que te dê uma espadada. São Jorge que te dê uma cutucada. São Sebastião que te dê uma flechada! Que seja amarrado e atado de pé e mão! Toma!
E:   Uaaaiii! Ai que num guento!
M:   Então, em nome de Deus, diga seu nome!
E:   Eu é Exu.
M:   Só isso? Que Exu? 
E:   Eu é Exu Barbosa. 
M:   Que veio fazer aqui? 
E:   Eu num vim, fui agarrado e carregaram eu pr’aqui.
M:   Você se arrepende das coisas que fez? 
E:   Sim, eu peço perdão a Deus.
M:   Então vá s’imbora, acompanhe esses espírito bão que vão levar você a Santo Agostinho. Quando estiver de escora pague sua dívida trazendo outros Exus pra desenvolvimento . . .

Aí está uma simples amostra, mas por ela se percebe de que maneira tem se processado a “evolução” dos Exus e, por conseguinte, do diabo no Brasil. Já foi demônio cristão, voltou à condição de entidade animista fetichista, se recompõe, porém, modificado, segundo alguns modelos africanos e acabou se nivelando ao comum dos espíritos atrasados ao impacto das doutrinas espíritas.  

Exu Veludo

Trabalho de doutoramento

Nesta derradeira fase, apresentam-se eles nas tendas de umbanda e de quimbanda ou nas mesas “baixas” como Exu Barbosa, Exu João de tal, Exu José da Silva etc. São espíritos desencarnados de pessoas que em vida praticaram tudo quanto havia de ruim. Mortas, passam a integrar as legiões dos Exus, do Povo de Ganga, de João Caveira. Uma vez apanhados num “trabalho” de doutrinamento, amaciados à custa de bordoadas, cutucadas, recriminações e esclarecimentos, eles, os Exus recuperados, passam à condição de “escoras”, isto é, de espíritos auxiliares, principalmente, na captura dos Exus ainda em estado de ignorância, acontecendo que, às vezes, sem querer, eles arrebanham um daqueles Exus tradicionais, dos africanos.

Os escoras, por sua vez, quando já bem evoluídos, passam à condição superior de pais e de guias.  

No entanto, não termina aí a série de modificações sofridas pelo diabo no Brasil. Alguma coisa nova está para lhe acontecer.  Temos constatado, esporadicamente, numa ou noutra tenda de umbanda, a presença de imagens de deuses japoneses. Colocam-se nos pejis ou em mesinhas ao lado. Não se sabe bem o que fazer com eles, mas vão sendo aceitos. E, como não poderia deixar de acontecer, nos recantos dedicados aos Exus vão se insinuando aquelas máscaras chifrudas de entidades que, conforme as crenças orientais, representam seres protetores e destruidores dos malefícios. Do diabo nosso eles têm apenas a cara feia e os pontudos chifres. Esperemos.   

 

Por Oswaldo Elias Xidieh

Revista Planeta número 21
Edição de Maio de 1974
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