As razões que levaram o amor a se transformar num pecado. 70542675
“Não, a felicidade não é um corpo e por isso não se vê com os olhos.”
Santo Agostinho “Confissões”, 397-400 d.C.
Um pouco antes de completar o penúltimo livro da suas “Confissões”, terminado ao redor do ano 400, S.Agostinho implorou a Deus que se fosse ele o encarregado de escrever o Gênesis como anteriormente o fora Moisés, desejaria “receber de Vós uma tal arte de expressão que…até aqueles que não podem compreender como é que Deus cria… acreditassem nas minhas palavras.” Foi atendido. Deus foi pródigo com ele, mas sovina com os demais escritores cristãos, tornando-o o maior e quase o único grande prosador do cristianismo até o surgimento de Pascal e do Padre Vieira, treze séculos depois.
Não satisfeito com o dom das letras e com uma espantosa facilidade de comunicação, que o colocou entre os imortais da literatura mundial, deu início, logo depois, provavelmente em 401, à redação de uma leitura própria, muito sua, do real significado do Gênesis – De Genesi ad Litteram – na qual ainda demorou-se uns quinze anos. O que já havia esboçado nas “Confissões” então tomou corpo. Fazia tempo que os primeiros evangelistas vinham hostilizando o sexo. Mas foi com S.Agostinho que a questão tornou-se dominante, reveladora da sua idéia do homem e da humanidade da qual o cristianismo, até os nossos dias, teima em não abandonar.
Impressionados pela liberalidade sexual e vocação orgiástica da elite romana, ainda majoritariamente não-cristã, os apologistas daqueles primeiros tempos fizeram questão de manter uma marcada distância em relação aos deuses e ritos pagãos e, inspirados pelos solitários “homens do deserto”, eremitas e anacoretas, inauguraram uma política de completo repúdio ao sexo. Esse radicalismo – enfatizado pelas epistolas de Paulinas – acentuou-se pela prática da abstinência carnal, transformando-se num atrativo tão forte para novos seguidores como o martírio dos crentes nas arenas romanas. Enquanto estes davam suas entranhas para as feras devorarem, outros abandonavam as práticas sexuais para sempre: o martírio e a castidade eram faces diferentes da mesma moeda.
Havia muito simbolismo atrás disso tudo. Não só a busca da perfeição atrás do “coração simples”, mas uma nova visão do ser humano, na qual ele somente poderia manter-se na frescura com que saiu das mãos do criador permanecendo puro ou intocado. Sendo igualmente – por meio da propaganda do ascetismo – uma forma peculiar de manifestar abertamente seu protesto e desprezo pela época em que viviam, por sua excessiva conscupsciência, sua impiedade, libertinagem e crueldade pagã.
O problema que enfrentavam os pregadores da nova fé era em relação ao casamento: como conseguir manter um dos princípios básicos do cristianismo aceitos na forma do “crescei e multiplicai-vos” sem considerar a atração ou o prazer sexual?
Tentado resolver esse conflito S. Agostinho, bispo de Hipona, no norte da África, terminou por gerar sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Donde viria, indagava ele, essa miséria que nos cerca, essa corrupção, essas heresias e a crassa maldade? Existia na sociedade, concluiu ele, uma mancha inapagável motivada pelo pecado original advindo do impulso sexual, que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e Eva e seus descendentes desde a queda do Paraíso…”
Para S.Agostinho, na situação paradisíaca não havia tensão entre o impulso e o ato sexual. Foi a partir da danação dos nossos pais primevos que essa desgraça começou. Parecia-lhe que o casamento, a relação sexual e o Paraíso eram tão incompatíveis como o Paraíso e a Morte.
Desse modo, a sexualidade permanecia como o indicador da queda do homem, do seu triste declínio da anterior situação angelical, fazendo com que deslizasse para baixo, para a natureza física, e desta para a sepultura. Esta certo que os casais deveriam preocupar-se em gestar filhos, mas que o fizessem conscientes de estavam cometendo um ato de rebaixamento. Era algo necessário mas humilhante, que deveria ser praticado sob os acordes de uma intensa melancolia.
Dessa forma, Agostinho introduziu entre os cristãos uma definitiva nódoa de consciência culpada quando faziam sexo ou tinham sentimentos e impulsos prazerosos. Trouxe para dentro dos lares e para os leitos conjugais uma sombra de coisa maligna, de impureza, perversão e vício, que arruinou a vida de incontáveis casais, para quem o sexo passou a ser associado a um “presente do demônio”, ou um discordium malum, um princípio de discórdia alojado no interior de cada um desde a Queda. Opôs definitivamente a Carne a Deus!
Talvez uma das maneiras de entender-se essa obsessão dele, de Santo Agostinho, em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como todo abjurado das suas paixões sensuais pregressas, votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado nele tanta energia. Ele mesmo não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa voluptuosidade, pela lasciva, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou… “mas não ainda!”
E foi mais longe ainda. A presença do impulso sexual nos seres humanos era a marca da corrupção da nossa natureza. Tratava-se de uma perversidade intrínseca que, tal uma erva daninha espalhada numa pradaria, jamais poderia ser removida de todo. Santo Agostinho explicava a maldade como resultante desse tumor sensual e dissoluto existente em todos nós, provocador de uma desordem crônica nas nossas relações, que o tempo inteiro nos perturba com suas poluções, com seus sonhos inconvenientes, incestuosos, inconfessáveis. Não havia dieta ou jejum que nos salvasse ou nos libertasse dele, acompanhando-nos até na velhice e no encarquilhamento, como uma cicatriz não sarada do nosso passado libidinoso e pecador.
Foi contra isso que mobilizou-se seu rival, Juliano, bispo de Eclanum que, depois de 418, embrenhou-se numa ruidosa polêmica com ele. Juliano mostrou-se indignado com as acusações de S.Agostinho ao sexo e ao casamento. Não podia conceber, explicou ele, que o ato necessário a nossa reprodução fosse algo demoníaco ou ter que ser praticado sobre o véu da vergonha e do enxovalhamento.
Afinal, eram “impulsos do nosso corpos feitos por Deus”. O prazer era necessário à reprodução, era a força que fundia as sementes masculinas e femininas num amplo calor genitalis, útil a que ocorresse uma conjunção saudável e feliz. Nada poderia haver de sinistro numa relação sexual bem realizada e completa. Bem ao contrário, viu-a natural, saudável, como “o instrumento de eleição de qualquer casamento…. merecedor
S. Agostinho em várias cartas da sua imensa correspondência tentou amenizar as objeções de Juliano, procurando mostrar-se menos radical do que nos seus escritos anteriores. Porém, sabe-se que, para a posteridade, foi essa sua visão trágica da existência – de sermos os infelizes portadores perpétuos do pecado capital – (de origem paulina-agostiniana), que irá marcar de uma maneira definitiva o cristianismo. E o sexo ficou, dali para sempre, visto como uma transgressão, como uma obscenidade… quiçá um ardil satânico para atormentar infinitamente a existência humana, até pelo menos o surgimento da psicanálise de Sigmund Freud, no século XX, que aboliu, pelos menos entre as elites ocidentais, com a idéia do pecado.
Essa polêmica encontra-se detalhada num dos capítulos, o 19º, do notável livro “Corpo e Sociedade” (The Body and Society”, Jorge Zahar Editores, RJ.1990) de Peter Brown, um dos maiores historiadores da era clássica e professor da Universidade de Princetown, sendo o exposto acima apenas uma reduzida amostra da magistral reconstrução feita por ele da polêmica sobre a sexualidade nos tempos do cristianismo primitivo, visto pelos seus apóstolos e seguidores, como Tertuliano, Orígenes, Cipriano, Mani e João Clímaco, Ambrósio, Jerônimo e tantos outros.