por: Romeo Graciano
Sem alongar a história, respondi que ela gosta de mostrar a beleza do seu corpo, e que muita gente faz isso para ser elogiada, para chamar a atenção. Ao mesmo tempo, comecei a pensar no lado cruel da nossa cultura, que domestica as pessoas já na tenra idade. Minha filha dava risadinhas enquanto se divertia repetindo a palavra “pelada”.
Continuei meu caminho tentando refletir sobre as influências desses momentos em uma criança que mais tarde será mulher. Como educá-la para ter uma relação sadia e sem preconceitos com seu corpo quando estamos mergulhados em exemplos nada edificantes?
A onipresença do corpo em nossas vidas dá o que falar em todos os caninos de atividade. Porque ele é tratado principalmente como uma extensão do ego, e assim sofre com as distorções dos desejos e ilusões da personalidade, submetendo-se às regras da moda e sendo modelado ao gosto da conveniência pessoal, pois a cirurgia plástica não mais é que um privilégio de poucos.
Coisificado e perfurado por metais (os piercings), desajustado por posturas incorretas no seu convívio mecânico com máquinas e tecnologias, o corpo humano foi quase totalmente esvaziado do seu sentido de transcendência. Tudo muito normal em uma realidade que exalta a aparência e suas impressões de curta duração. “Assim é se lhe parece“, confirmaria Pirandello.
Com o objetivo de fornecer conhecimentos a todos que desejam viver o corpo na sua merecida profundidade, Evaristo Eduardo de Miranda lançou o livro “Corpo: Território do Sagrado” (Edições Loyola). O autor é mestre e doutor em ecologia pela Universidade de Mompellier, além de destacado conhecedor da teologia espiritual. Nessa obra, ele parte dos fundamentos que unem judeus e cristãos e da sabedoria da cabala “um caminho e um instrumento do conhecimento judáico das realidades infinitas” para desvendar o vasto simbolismo das regiões encorpo que compõem uma geografia do sagrado, uma via de acesso à reintegração do humano no divino.
O percurso desse caminho iniciático é realizado em analogia com a Arvore das Sefirot (as dez emanações do Criador) ou das vidas, e segue o sentido ascendente próprio da energia de expansão que responde pela verticalização humana.
Referindo-se à cerimónia do lavapés, Evaristo de Miranda observa que, por seu intermédio, “lava-se o passada e inaugura-se a presença no seio de um trovo acolhimento“.
Os pés só encontram razão de ser quando associados às pernas, responsáveis pelo nosso incansável caminhar sobre a terra. Andando sobre suas próprias pernas, o ser reconhece sua necessidade de obter crescimento interior, de exercer sua marcha com autonomia e autodominio. (“Não imites o cavalo ou a mula estúpidos, cujo impulso se domina com freio e cabresto; e nada te acontecerá” Salm 32,9.)
Saber caminhar com as próprias pernas é outra maneira de se iniciar em si mesmo, uma vez que, até conquistarmos a nossa verdadeira integridade, todos nós somos mancos por força das circunstâncias. Portanto, pelas pernas pode se viver uma experiência de conversão. Mas não descuide do fato de que o mapa não é a estrada nem confie em roteiros preestabelecidos. Aprenda com o ensinamento do poeta espanhol Antonio Machado, que afirmou: “Caminante no hay carmino, se hace camino al andar.”
Os joelhos equivalem, em diversas tradições culturais e na simbologia bíblica, à sede principal da força do corpo. Indicam a autoridade do homem e o seu poder social, e deles se originam diversas expressões relacionadas à temática da força e do poder: dobrar os joelhos, em sinal de humildade, e ajoelhar se diante de alguém são alguns exemplos.
Ao colocar se na “presença de Deus“, o homem que ora irá ajoelhar-se, estreitando os vínculos entre joelhos e oração. “Os joelhos nos falam do engendramento interior, da procriação realizada e nos recordam a criança benigna em cada ser humano“, esclarece o autor.
Na interpretação cabalística, os pés equivalem ao feto no ventre da mãe, os joelhos correspondem à criança no nascimento e as coxas estão relacionadas à adolescência e aos processos de iniciação do amadurecimento.
Prosseguindo neste movimento ascendente, subindo pela coxa vamos adentrar o segundo estágio do corpo humano, que o autor denomina “A Porta dos Homens“. É o plexo unogenital, onde se localizam “as primeiras aberturas e comunicações físicas permanentes entre o interior e o exterior do humano, entre o ter e o ser“. Aqui se encontram os órgãos sexuais e reprodutores masculinos e femininos. O
sexo masculino contém o princípio ternário, e o feminino, o quartenário (quatro lábios da vagina); da soma de ambos resulta o número 7, símbolo da perfeição e da totalidade.
Evaristo de Miranda explica a prática da circuncisão como uma marca da aliança de Deus com os homens, realizada no pénis por ser este o lugar da sua união íntima com a mulher. A circuncisão ainda serve para retirar o “anel feminino” do homem, conferindo lhe inteireza em sua condição masculina.
Os rins assinalam o princípio da ascensão da energia e consciência, do irrealizado para o realizado, do visível para o invisível, já que regem “a passagem da água ao sangue, transmutado em espirito, e a passagem do sal ao fogo, transmutado em luz“.
Entre o esófago e o duodeno situa se o estômago, onde ocorre parte da digestão. Embora a maioria desconheça, a nutrição promove a integração da totalidade das energias divinas e tem natureza espiritual.
Os rins formam uma matriz de água e o estômago é a matriz de terra, que no corpo se associa á carne. Mas a carne como essência divina, fundamentada na interioridade do espirito, de acordo com o significado da eucaristia, na qual a carne e o sangue de Cristo constituem o alimento transcendental. “Na tradição judaico cristã, a carne não pode ser identificada com o corpo, nem com a matéria. Ela é o complexo psicofisico do homem em sua existência concreta e total. A carne é o fundamento último e a expressão da pessoa, carregada e expressa no corpo“, justifica o autor.
No movimento vertical do ser humano pela Árvore das Vidas, Eduardo de Miranda identifica várias etapas ou passagens por determinadas matrizes que são a uterina, a abdominal, a peitoral e a craniana. Esse percurso simbólico equivale à progressão do sólido para o líquido, do líquido para o gasoso e o energético, em uma associação com os quatro elementos primordiais terra, agita, ar e fogo.
O abdômen é visto como um sinal da nossa exterioridade e se mantém separado da matriz peitoral pelo músculo do diafragma. E nessa matriz que se localiza o território de emergência da consciência pessoal, cujos principais órgãos são o coração e o pulmão, responsáveis pelo nosso sistema cardio/respiratório.
A matriz peitoral, mais interiorizada, é o território do coração, da força de vontade, do desejo, do sopro e da palavra criadora. Porém, o peito e o ventre compartilham suas respirações, sendo o primeiro de ordem superior e o segundo de ordem inferior.
Junto aos pulmões, o coração é o “mestre do sopro e da vida“. Mesmo porque na respiração está a “presença do sopro divino” no ser humano, energia essa que o sangue e o coração distribuem por todo o corpo.
“O coração do tolo é como um vaso quebrado, não pode reter nada do que aprende” (Sr 14). Assim, o coração também é interpretado como um vaso, o que faz analogia com o santo cálice (Graal) que recolheu o sangue de Jesus A expressão “amar a Deus de todo o coração” foi interpretada com sabedoria por Babua bem Asher (final do século 18), para quem o coração, por ser o primeiro órgão a formar-se no embrião e o último a morrer, confere à frase o sentido “do primeiro até o último suspiro“.
Na tradição judaico cristã, no sofismo ou no taoísmo, o coração é encarado como “o trono de Deus no centro do homem“. Ver com os olhas do coração, por exemplo, é outra maneira de dar sentido às coisas, de transformar a visão condicionada e limitada da realidade humana.
Como dois foles que mantém viva a divina chama do coração, os pulmões realizam a união entre o sopro e o sangue. (“Privado do sopro, a carne se deteriora” Ecles. 12,7.) “No corpo humano, os pulmões são a imagem do Espírito Santo em íntima comunhão com o coração centro, o Pai, fonte de tudo, e o coração órgão, o Filho“, interpreta o autor.
Pelo enfoque bíblico dos pulmões, a matriz abdominal e peitoral é um espaço preenchido pelo sopro, do qual está repleto também toda a dimensão situada entre os céus e a Terra, onde o ser humano respira e tem sua existência na matéria. O sopro-espirito não é apenas mais um atributo da pessoa divina, mas a própria manifestação de Deus, que insuflou em nossas narinas o hálito da vida.
A associação entre o sopro e a palavra é outro aspecto a ser ressaltado, pois “devemos falar para respirar e respirar para ver“.
Eduardo de Miranda localizou a palavra coluna 124 vezes no texto biblico, e informa que a cabala tem simbologia associada a cada número dos três conjuntos de vértebras da nossa coluna, ou seja, sete vértebras cervicais, 12 dorsais e cinco lombares.
As práticas tântricas também enfatizam a ascensão da energia kundalini pelo eixo vertical da coluna, onde estão dispostos os sete chacras básicos, para o despertar da supraconsciência, da iluminação. O objetivo é atingir o topo do crânio, sede da coroa do templo corporal e centro das profundas transformações que conferem à consciência um salto incomparável.
E aqui temos a cabeça, com seus sete orifícios associados aos sentidos. Esses sete orifícios estão representados na menorá, o candelabro judáico de sete braços e um dos principais símbolos do povo hebreu.
O cristianismo é uma religião da palavra e portanto atribui grande importância ao ouvir. Mas, enquanto símbolos, os ouvidos estão relacionados à escuta mística, interior, “à abertura da pessoa à inteligência cósmica, à capacidade de situar-se no espaço e no universo“. Conseqüentemente, a orelha representa a obediência, a palavra divina.
Já a boca constitui o órgão da palavra e do sopro. É considerada um símbolo feminino do poder criador, e proporciona a manifestação dos graus mais elevados da consciência. Originalmente, a palavra é sagrada, e todos nós poderiamos produzir maravilhosos beneficios em nossas vidas exercitando, no cotidiano, essa primorosa qualidade.
Os olhos, que também absorvem o alimento energético e sutil do seu ambiente, são interpretados como “um instrumento da unificação de Deus e da pessoa humana, do Principio e da manifestação“. Segundo a mística judaica e cristã, o homem possui olhos para desenvolver a visão de Deus.
Os olhos são símbolos igneos de atenção e intenção e correspondem ao coração centro, ativado no estágio do ser. A palavra olho, em hebraico, é homônimo de fonte, manancial.
É na “câmara nupcial do crânio” que o ser humano se encontrara com Deus. A partir da perspectiva da tradição judaico cristã, o autor nos explica que “não se trata de um Deus cósmico ou causa do mundo, nem de um Deus da verdade racional ou teológica“. Ele está se referindo ao Deus da pessoa, descoberto pela sua abertura a realidades mais interiores, mais pessoais, na busca pelo seu próprio coração. De modo que não se trata de um encontro impulsionado por fatores externos.
O pensamento, na matriz craniana, é antes de mais nada a consciência de si, bem como a consciência do universo que se abre diante do ser. E é permanecendo “na abertura infinita do mundo que a consciência de si mesmo descobre sua imensidade, casamento entre o intimo e o infinito. Essa abertura é o verdadeiro lugar do homem, seu lar, ele que é destinado ao infinito“, analisa o autor.
Sempre digo que uma das maiores estratégias de Deus, ao criar a nossa espécie, foi depositar dentro de cada ser a essência de tudo aquilo que devemos saber para restituir a nossa autêntica natureza. E o corpo, como um impressionante mapa da ação do divino em nós, é a constatação mais palpável dessa promissora possibilidade.
Revista Planeta número 337
Edição de Outubro de 2000
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