Gibran Khalil Gibran
(1883, Líbano – 1931, Nova York)
Quando Gibran nasceu, toda aquela região do Oriente Médio já estava ocupada e controlada pelo império Turco Otomano – um domínio que vinha desde inícios do século XVI. Depois da Primeira Grande Guerra, os turcos foram substitui dos pelos franceses, que ocuparam as regiões correspondentes à Síria e ao Líbano através de um mandato da Liga das Nações, adiando para um futuro sempre indefinido as possibilidades de independência.
Várias vezes Gibran manifestou-se em favor da autonomia, mas morreu antes que ela se concretizasse. A política (ou pelo menos a política institucional), no entanto, foi apenas um pequeno aspecto na vida de Khalil Gibran, um dado praticamente insignificante de uma vida inteira dedicada a procura de uma expressão da religiosidade individual, livre da imposição exercida por seitas e religiões oficiais.
Quando Gibran tinha 11 anos de idade, emigrou com sua mãe e seus irmãos para os Estados Unidos, como faziam milhares de seus compatriotas. O pai permaneceu no Líbano. Com 14 anos, ele foi enviado de volta ao país natal, para estudar por dois anos, período após o qual retornou para junto da família, em Boston. Nessa época, paralelamente ao seu estudo das religiões, Gibran já começava a desenvolver uma destacada aptidão para a pintura e a literatura. Aprendendo rapidamente o inglês, escrevia em árabe para vários jornais da comunidade sírio-libanesa radicada nos Estados Unidos.
Em um período de pouco mais de um ano, entre 1903 a 1904, Gibran perdeu a irmã Sultana, o irmão Boutros e a mãe, todos por enfermidades. A sucessão de tragédias familiares em um espaço tão pequeno de tempo marcaria profundamente a personalidade— já por si introspectiva – de Gibran. Em Boston, a família ficaria reduzida apenas a ele e sua irmã Mariana, que passaria a trabalhar para manter a ambos. Mais do que nunca, Gibran atirou-se inteiramente ao trabalho artístico.
Em 1904 já conseguia realizar sua primeira exposição de pinturas e desenhos em Boston. Nessa oportunidade ficou conhecendo Mary Haskell, diretora e proprietária de uma escola local. Ela seria, a partir de então, a principal figura mínina na vida do artista. Além de sua maior amiga, ela se transformaria em sua mecenas: sem sua ajuda financeira, grande parte dos projetos de Gibran provavelmente não se teriam concretizado.
Desde o inicio, é possível caracterizar boa parte da obra de Gibran como anticlerical, ainda que não frontalmente avessa à religião. Seu primeiro trabalho literário de importância foi publicado em 1906, um volume de contos: Ninfas dos Vales, redigido em árabe. O tema básico girava em torno de criticas ao papel da religião na sociedade e colocava-se contra as leis orientais. Gibran, no entanto, seria mais agressivo em Espíritos Rebeldes, livro publicado também em árabe, em 1908, e que trazia um devastador ataque à religião como fator de atraso na sociedade oriental, acompanhado de uma denúncia do papel reservado às mulheres nessa sociedade. Exemplares desse livro de Gibran chegaram a ser queimados publicamente em Beirute, por representantes indignados da Igreja e do Estado.
As primeiras obras da carreira literária de Gibran atingiam severamente costumes como o da prática matrimonial do Oriente Médio, com seus casamentos feitos quase sempre por motivações econômicas e sociais, ao invés de impulsionador por amor ou por livre escolha. Em vários de seus livros a mulher é colocada como vítima da intolerância de uma sociedade tradicional, rígida e pouco afeita a transformações. Gibran atribui um importante papel nessa situação da mulher às leis religiosas orientais, tanto cristãs como muçulmanas. Seus representantes, os sacerdotes, eram vistos por ele como simples ministradores de ensinamentos e cumpridores servis de práticas definidas, antes de tudo, pela ausência completa de humanidade.
Financiado por Mary Haskell, foi muito proveitoso para Gibran, que chegou inclusive a estudar com o célebre escultor Auguste Rodin, na Academia de Belas Artes de Paris, tendo uma tela escolhida para a Exposição de Belas Artes feita ali em 1910.
Seu período parisiense foi muito fértil. Gibran passava o tempo estudando, visitando museus, exposições, escrevendo, pintando, desenhando. Por essa época já elaborava reflexões sobre o papel da arte na vida humana: “A arte, no meu entender, é mais elevada do que tudo que vemos e ouvimos.” A relação essencial artereligiosidade seria constante em sua obra, e para muitos especialistas ela reflete o que há de mais importante em toda a obra de Khalil Gibran.
Nesse sentido, entre as influências que recebeu da literatura ocidental, Gibran ficou sensivelmente marcado pelo trabalho do inglês William Blake (um dos maiores poetas da língua inglesa, morto em 1827), pelo aspecto visionário de sua obra artística e poética. Muitos biógrafos consideram tal influência decisiva. Gibran absorveu intensamente a noção de Blake de que o artista possuía como missão primordial -identificando seu espírito com a própria natureza – tornar-se um profeta religioso. Sobre o poeta inglês, Gibran chegou a escrever: “Blake é o homem-deus”. Dizia ainda que a visão de arte que o poeta inglês possuía era a mais divina já concebida por um ser humano.
Outra influência importante no pensamento de Khalil Gibran foi trazida pela filosofia de Friedrich Nietzsche. O místico artista libanês provavelmente superou vários aspectos instáveis, indecisos e emocionalistas de seu espírito através da incorporação de conceitos como o de “vontade de poder”, entre outros postulados pelo pensador alemão.
Na estrutura formal e na essência espiritual, o trabalho de Gibran, O Profeta (de 1923) é visto por muitos estudiosos como um paralelo proposital da obra de Nietzsche, Assim Falou Zaratustra. A publicação de O Profeta tornou Gibran conhecido no mundo inteiro. Em dezenas de países do Oriente e do Ocidente o livro é um best-seller há mais de quatro décadas. Calcula-se que já tenham sido vendidos mais de 1,5 milhão de exemplares em várias línguas.
Como no texto citado de Nietzsche, O Profeta de Gibran procura dar um aspecto divino à própria condição humana, ao invés de buscar a divindade no exterior do indivíduo. Assim como Nietzsche, Gibran encarava a vida como essencialmente trágica, mas acreditava que o homem não deveria abandonar-se ao pessimismo, e sim modificar a vida através da afirmação de sua humanidade. O papel dessa transformação , na obra de ambos, seria desempenhado pela arte.
De volta aos Estados Unidos, indo morar definitivamente em Nova York, Gibran jamais abandonaria essas preocupações. Alguns anos após seu retorno ao país que adotou, ele já podia ser considerado um espírito em que se haviam consolidado alguns aspectos significativos do pensamento de Nietzsche. Chegou a escrever que não sentia mais piedade nem compaixão pelos fracos, porque imaginava que a fraqueza – de caráter, de espírito – impedia o desenvolvimento pleno da vida humana.
Por pensar assim, Gibran chegou a adotar atitudes que hoje poderiam ser chamadas de radicais. Em 1912, o líder Baha’i AbdulBaha esteve em Nova York, sendo recepcionado numa conferência. Gibran admirava a figura do líder persa, de quem havia, alguns dias antes, pintado um belo retrato. “Em seu sorriso há o mistério da Síria, da Arábia e da Pérsia”, disse Gibran a seu respeito. Isso não diminuiu a indignação de Gibran pela conferência, cujo tema era a paz internacional, numa época de grande tensão política mundial. Gibran achava que a luta entre os homens, mesmo através de guerras violentas, era necessária, um reflexo da própria condição de existir. Era preciso pregar a vida, e não pregar a paz, dizia ele, pois não havia paz na arte de existir.
Assim ficou registrada sua indignação: “Houve muitos oradores, e ‘paz’ era o único tema! Paz! Paz! Paz internacional, paz universal! Foi cansativo, ilógico, monótono e insípido. A paz é o desejo da velhice, e o mundo ainda é jovem demais para senti-lo. Eu digo: deixem que haja guerras; deixem os filhos da Terra lutarem uns contra os outros até que se derrame a última gota de sangue impuro e animal. Por que razão deveria o homem falar em paz quando há tanto mal-estar em seu organismo, que precisa sair, de um modo ou de outro?”
Talvez o mais importante seja decifrar o significado mais profundo do que Gibran queria dizer com declarações dessa espécie, mas ele realmente depositava uma fé descomunal nas possibilidades do desenvolvimento humano. Em sua caminhada rumo a uma super humanidade sempre pensaria de forma polêmica. Em um ensaio redigido em 1920, afirmava que o casamento, os filhos, a pátria, deviam ser encarados como fortes limitações impedindo o livre progresso do ser humano, agindo, dizia, como elementos retardadores de sua realização plena e consciente como super-homem. Falando pela boca do sábio de O Profeta, Gibran pensava, como Nietzsche, que o super-homem surgiria da ruptura de alguns indivíduos precursores com todas as limitações impostas pelos valores tradicionais, inclusive os religiosos. O ser humano elevado a sua infinita potência era o que mais o preocupava: “Não siga ninguém nem acredite em coisa nenhuma a não ser em sua própria imortalidade”.
Yussaf Huwayyik, amigo de infância de Gibran e que viveu com ele em Paris, escreveu que o pensador libanês tinha planos para um amplo estudo sobre religião e religiosidade. O livro nunca chegou a ser concluído. Nele, Gibran pretendia demonstrar que o homem podia prescindir das religiões organizadas, institucionalizadas, para comunicar-se com a divindade. Enxergava uma espécie de fonte comum na origem de todas as religiões, uma fonte diluída pela humanidade através do tempo e do espaço, adaptada às circunstâncias. O amor religioso individual à natureza seria então uma forma de retornar a essa fonte original, e só poderia ser exercido a partir de uma procura pessoal.
Moisés, Buda, Cristo apareciam aos olhos de Gibran como iluminados, seres dotados de uma sabedoria extraordinária, mas não como encarnações divinas. Quando escreveu Jesus, o Filho do Homem (em 1928), Gibran apresentou a imagem de Cristo como a de um homem acima do normal, um super-homem desprovido de qualquer característica divina.
O sábio de O Profeta, quando interrogado sobre a religião, diz, entre outras coisas: “Vossa vida cotidiana é vosso templo e vossa religião”. A religião existia a partir de cada indivíduo e era ali que ela devia ser procurada, acreditava Gibran. À medida que sua obra avançava no tempo, a opção por uma religião institucionalizada ia sendo colocada de lado. Em seu lugar ele ressaltava a atitude de viver religiosamente como sendo, fundamentalmente, uma relação mística entre homem e Deus – a divindade identificada com a natureza, uma união indissolúvel. Essa crença na unidade estava presente quando ele escreveu: “Tudo que tem existência existe dentro do homem, e tudo que está dentro do homem existe em existência. Não há fronteiras entre longe e perto, baixo e alto, grande e pequeno. Tudo é uno.”
Assim como Nietzsche afirmava que todos os que acreditassem em uma filosofia determinada deveriam vivê-la integralmente, Gibran escreveu quando terminava uma das primeiras redações de O Profeta: “Este trabalho deverá incorporar tudo que sou. Em O Profeta apresento certos princípios de que gostaria de ser a prova viva. Apenas escrever tais princípios seria o mesmo que ter princípios falsos. Só posso aceitar esses princípios vivendo-os.”
A publicidade em torno da figura de Gibran faz com que freqüentemente sua imagem seja associada a uma espécie de santo, nos moldes da santidade católica. Na realidade, Gibran esteve longe de corresponder a esse modelo. Ele viveu intensamente as contradições provocadas pela variedade e disparidade de influências culturais que recebeu ao longo da vida. Durante muito tempo procurou levar um certo modo de vida ascético, voltando-se inteiramente para o trabalho, até mesmo sublimando seus desejos sexuais – o que nem sempre foi possível. Seu apartamento de Nova York, onde viveu de 1912 até quando morreu, em 1931, ficou conhecido por aqueles que conviviam com ele como “a caverna do ermitão”. Mas, evidentemente, houve mulheres na vida de Gibran. Provavelmente haveria mais, ou de forma mais intensa, se ele – não tivesse constantemente reprimido seus impulsos em função da necessidade de dedicar-se inteiramente à missão mística da criação artística. Era nisso que Gibran primordialmente acreditava – em seu trabalho artístico e em sua missão profética. Uma vez ele escreveu a Mary Haskell, demonstrando que não tinha dúvidas quanto à importância de sua obra: “Através de meu trabalho, haverá algumas pessoas que poderão se libertar de todos os grilhões do passado. Aqueles capazes de suportar a vida de hoje são relativamente poucos, mas são os mais fortes. Se eu puder abrir o coração humano, não terei vivido em vão.”
Muitas vezes, no decorrer de sua vida, Gibran demonstrou interesse em voltar a viver nas montanhas libanesas onde havia nascido, mas nunca 0 conseguiu. Após sua morte, em Nova York, a 10 de abril de 1931, seu corpo foi transportado até o porto de Beirute. Uma grande caravana popular o acompanhou até sua vila natal, Bsharre. Ali, ele descansa hoje, num convento escavado nas rochas, sob a inscrição: “Aqui, entre nós, dorme Gibran.”
Editado na Revista Planeta, Número 131, Agosto de 1983
Trecho do livro O Louco, de Gibran Khalil Gibran.
Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim: Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando: ” Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!”. Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!” Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aqueles que nos compreendem escraviza alguma coisa em nós.
Em nossa sociedade precisamos ser parecidos pois para tudo há uma comparação. Se você é gordo precisa se adaptar às revistas que ditam moda porque a moda é ser magro, se você gosta de Rock, precisa ouvir Rap, pois é o que está tocando no rádio, e outras infinidades de estereótipos que nos sujeitam. Uma vez um sábio psicólogo que se chama Jair, disse que cada um se esconde atrás de uma máscara para nos protegermos das outras pessoas, isto é, para nos protegermos da sociedade em que vivemos. Qual era a minha máscara? Boa mãe? Boa filha? Excelente esposa? Profissional exemplar? Depois de dias e mais dias de auto- conhecimento regrados com psicodrama, cujo tema deixarei para outro dia, descobri que me escondia atrás de outras coisas, de outras denominações, por achar que me aceitariam melhor assim, ou se preferir, que gostariam mais de mim. Hoje falo mais o que penso, faço o que tenho vontade, escuto as músicas que gosto, enfim sinto o calor do sol em minhas faces nuas… Para onde quer que tenham ido minhas máscaras, não voltarão jamais…