Trata-se de um ser ambivalente, mesmo pelo nome que a identifica com a coruja, um animal noturno e de rapina, que as lendas rabínicas atribuem à Rainha por excelência da Bruxaria: Lilith. Não a bruxaria nascida pela fertilização cruzada da Magia Cerimonial e da etnografia imaginativa, que a Folclore Society difundia em fins do século dezenove e inícios de vinte, e criada pelo Wicca, mas uma corrente imemorial e antinomianista de bruxaria cujas raízes nasceram da rebelião dos Anjos e de sua união com a Humanidade Primitiva.
Perguntei-me muitas vezes o que poderia significar guaxa e a única explicação plausível é vir de guaco, molhado, referindo-se ao curioso fenômeno dos aquelarres asturianos estarem relacionados com lugares húmidos e cheios de água, mas também no sentido pejorativo de “estar molhada”, isto é, excitada sexualmente.
As assembleias das bruxas asturianas nada deviam aos do Labadour, na zona basca francesa, quanto ao esplendor orgíaco e à folia sacrílega. Lugares como Vega del Palo, o centro máximo dos aquelarres ocidentais asturianos, celebra-se num lugar que, pelo seu toponímico, tem a ver com humidade.
Vega também é traduzível por «lugar inundado». E não há dúvida que a humidade é tão grande que permeia a própria atmosfera, como se a várzea fosse um lago cheio de água invisível, onde respirávamos como peixes pelas guelras da nossa imaginação.
Conhecem-se apenas seis casos de bruxas asturianas julgadas em tribunal de Inquisição e tratadas com mão leve nas suas conclusões penais pelos sereníssimos magistrados, e entre eles fundamentalmente: o de Oria, de Teresa Pietra, da lobeira de Posada de Llanes, de Juana Garcia. Tratam-se de casos, como disse, do foro clínico e psiquiátrico ou mesmo, como no caso da lobeira Ana Maria Garcia, de uma mulher que provocava os valores tradicionais da sociedade e do bom decoro cristão com o seu comportamento sexual e anti-social.
Pelas Asturias abundavam muitos curandeiros e benzedeiros, ‘las rezadoras e los saludadores’, mas estes representantes da medicina popular não são propriamente o modelo arquetípico da coruxa. A bruxa asturiana é um ser do Outro Mundo, símbolo do Mal Metafisico, que por vezes se introduz neste mundo pela hora do crepúsculo e metamorfoseado de animal de rapina. É a alma de um humano, o ‘ba’ dos egípcios, que como uma ave se solta do corpo e viaja pelo mundo intermediário e astral e vagueia pela esfera das nossas visões e dos nosso sonhos lúcidos.
Entendamos, no entanto, esta noção de «mal metafísico» no sentido iniciático como um ordálio que testa, pelo sofrimento e radicalização, o nosso ego padronizado para que possa abrir-se à influencia do sobrenatural. Ninguém pode passar os Portais do Aquém e do Além se não matar a estrutura convencional do seu ego. Não será descabido, por isso, lembrar os extremos sofrimentos porque passou a paradigmática Isobel Gowdie, a famosa bruxa escocesa, na sua iniciação pelo Homem Cinzento para se tornar uma bruxa.
A iniciação tradicional da “Bruxaria Sobrenatural” nada tem a ver com a bruxaria de raiz folclórica e ocultista do Wicca e os seus ritos de passagem, celebrados com a burguesa e acolhedora bonomia dum coven, estando numa longa linhagem de transformação da Alma cujas raízes se encontram no Xamanismo Primitivo.
Ser coruxa é ter este dom de viajar astralmente entre os mundos, pelos interstícios dos universos intermediários, e a sua morada são as cuevas esburacadas das montanhas. Nada há de mais divertido, por isso, do que ver e ouvir relatado que as cuevas são os simulacros hispânicos dos nossos covens.
Como o orifício de entrada para o outro mundo de muitos xamâs euro-asiáticos, as cuevas são pontos e nós de transição astral pelos Iniciados que conhecem as chaves tradicionais e pelos quais se entra nos aquelarres que se desenrolam fora do tempo e do espaço. Na Tradição Luciferina da Bruxaria ela é chamada por «Porta do Inferno». A expressão inferno deve ser aqui tomada no seu sentido esotérico, isto é, etimologicamente traduzido por «estar debaixo», «inferior». Entendamo-nos: «estar debaixo» da nossa personalidade, no nosso inconsciente antropológico diria um psicanalista, ou em termos xamânicos, no Submundo. Não estranha, por isso, que os lobos sejam os acompanhantes preferidos destas mulheres e homens aventureiros do invisível, que como o cão-lobo Cerberu guarda o Tártaro.
Guaxa é uma velha encarquilhada oposta à Xana na mitologia asturiana, cuja esbeltez e beleza emoldurada pelos seus longos e fulvos cabelos atrai os iniciados para as suas cuevas, que se abrem próximas das fontes e dos rios.
O pavor que a guaxa provocava no cidadão comum devia-se menos á sua fealdade do que ao facto de «chupar la sangre de los niños». Trata-se de uma expressão esotérica mal entendida, e que releva para a ironia com que Aleister Crowley fustigava a sociedade púdica e vitoriana do seu tempo, ao afirmar que havia matado centenas de criancinhas. A metáfora «matar crianças» ou «chupar o sangue dos meninos» insinua que ela tinha relações sexuais sem fins procriadores, já que para o clero um ato sexual sem procriação era matar uma criança. Na essência «o sangre de los niños» refere-se à menopausa e ao facto de se pensar que a mulher retinha para si o sangue menstrual furtando-se ao dever de procriar. Este momento era visto com estranheza pela cultura cristã para a qual não menstruar e não poder ter filhos, conservando simultaneamente o ímpeto sexual, pareceria uma coisa diabólica. É que para a sociedade cristã é a sensualidade que é pecado, e não o dever de procriar, já que Deus disse: «crescei e multiplicai-vos».
Mas essa metáfora da bruxaria arcaica refere-se também ao fato de, além de não procriar, reter o sémen dos amantes, e criar os céleres seres demoníacos da sua imaginação, como havia feito Lilith. Na imagem asturiana da guaxa nós encontramos o mesmo simbolismo das sheela-na-gig irlandesas: ambas são feias, velhas e libidinosas.
Para a Alta Magia todo o ato sexual pode ter uma conclusão procriadora, mesmo quando isso não é possível em termos fisiológicos. A simples descarga apaixonada dos elixires corporais pode criar seres supra-sensíveis, quando a mente bem treinada de um ocultista de «mão esquerda» se aplica segundo as leis e fórmulas adequadas. Deve-se reter aqui, que em muitos dos relatos orgíacos dos Sabates se ocultam vários ritos e cifras de magia sexual que fizeram parte da Tradição Luciferina da Bruxaria, aquela que pelo ímpeto iniciatório de Azazel trouxe, pela sua união com as belas filhas dos homens, o conhecimento da magia erótica e dos encantamentos.
Mas ao contrário da guaxa, a xana é uma donzela e fada que habita as cuevas próximas dos rios que correm pelos desfiladeiros e, como a Fada de Lusinham, ela tem também o poder de construir pontes e castelos. Sob este simbolismo está oculto a crença esotérica de que é ela que protege o nosso Circulo Mágico, habitualmente figurado na forma de uma muralha de quatro atalaias, tal como vemos nas mandalas hindus. A própria palavra mandala quer dizer em sânskrito circulo, representado sempre por uma muralha circular de quatro ou oito torres, onde vivem os boddisatwas.
À Xana se atribui, por isso, a construção de muitos dos dolmens do norte hispânico, as arredondadas mamoas do norte português onde vivem as moiras encantadas em serpentes. Ora, precisamente um dos nomes pelos quais a xana é conhecida entre os asturianos é moura ou mora.
Segundo Miguel Arrieta Gallastegui as bruxas asturianas eram conhecidas também por xanas, isto é, seres etéricos e efeminados, da escala das fadas, guardiã dos tesouros e em íntima relação com ‘la cuélebre’, uma serpente-morcego que protege os tesouros da sua sabedoria e desafia os iniciados pela prova do terror.
A serpente e o morcego são as duas zoofanias destas divindades asturianas que parecem confrontar-se entre si como formas simétricas do mesmo Mistério Feminino. Se nos lembrarmos que Lilith era serpente e morcego, poderíamos dizer que xana e guaxa são duas faces do mesmo simbolo feminino mágico.
Não há dúvida que ‘la cuélebre’ nada mais será do que o disfarce da Serpente Samael ou Zamael, aquele que “abriu os olhos” de Eva e que em união com Lilith gerou o nosso avatar Caim. Tudo isto aponta para a necessidade de reler a prática da Bruxaria Asturiana à luz de princípios radicais que não se esgotam nem se explicam à luz do «wicca de supermercado» que infesta a cultura neo-pagã moderna, mas de uma corrente tradicional que permeia toda a bruxaria antiga até à descoberta do Vangello publicado por Leland: de que a sua raiz é fundamentalmente luciferina e contra-iniciática. Isto evidentemente será chocante para a massificante cultura de supermercado em que se tornou o neo-paganismo wiccan, com as suas versões de ocultismo popular.
Simultaneamente obriga-nos a trazer para a ordem da discussão esotérica moderna o que sempre defendeu o bruxo e iniciado Robert Cochrane: que a bruxaria antiga não era de raiz neo-pagã.
Stregheria – Vecchia Religione da Itália
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