Mensagem de Deus ou do Diabo. Desde o tempo dos pensadores gregos até meados do século XIX, era comum dar essa atribuição aos sonhos. Acreditava-se que os deuses se comunicavam com os homens por meio deles, inclusive, para anunciar o futuro. Muitas dessas crenças foram abolidas na virada do século, quando Sigmund Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”. O psicanalista mostrou que os sonhos, considerados até então matéria de ocultismo ou restos de posições delirantes, podiam construir um discurso fora da consciência e revelar muito sobre o sonhador.
Não há dúvida de que os estudos de Freud foram um marco na história dos sonhos, mas os pesquisadores do século XXI ainda têm muito a descobrir. Para discutir esse tema vasto e controverso, mas também encantador, convidamos dois estudiosos dos sonhos. O psicanalista Jeferson Machado Pinto, professor do Departamento de Psicologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com doutorado em Psicologia e pós-doutorado em Psicanálise pela USP (Universidade de São Paulo), e o psiquiatra Dirceu de Campos Valadares, especialista em sono pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e diretor da Clínica do Sono, em Belo Horizonte.
Minas Faz Ciência – O que é o sonho? Qual é a definição do sonho para a Medicina e para a ciência atualmente?
Dirceu – O sonho é uma atividade mental que se repete todos os dias, normalmente enquanto dormimos. Ele só foi possível com a evolução da espécie. Se imaginarmos a vida na Terra, o “aparelho” para se ter sonhos surgiu há aproximadamente 50 milhões de anos, quando apareceram os sistemas químicos que propiciam a manutenção dos seres vivos.
Os sonhos estão ligados a uma substância chamada dopamina, também relacionada a transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia. Hoje, sabemos que, se manipularmos a dopamina, teremos alterações nos sonhos. Se trabalharmos com medicamentos que simulam essa substância, vamos mudar os sonhos, o seu conteúdo e sua densidade.
Minas Faz Ciência – Os sonhos seriam um estágio do sono?
Dirceu – Os sonhos, principalmente os mais vívidos e ricos, ocorrem durante o Sono REM (Rapid Eyes Moviment), fase do sono descoberta há somente 50 anos. Mas eles não são exclusivos desse estágio. O REM é um dos comportamentos do ser humano. Outro seria o estado de vigília, em que nossos organismos trocam informações e são sensíveis ao meio. Nos sonhos, o organismo se volta para dentro e atenua as entradas sensoriais. Lógico que, se alguém der um tiro ou houver um barulho alto, você volta ao estado de vigília. Essa, aliás, é outra característica do sono e dos sonhos: a reversibilidade.
Basicamente, se considerarmos o ponto de vista biológico, os sonhos são uma manifestação da mente, especificamente de determinadas regiões ativadas durante o sono. Com certeza, os sonhos influenciam a nossa vida, mas também recebem influência dos dados do ambiente, são sensíveis a mudanças do meio. Se houver pré-disposição, passamos a sonhar mais. Ao mesmo tempo, os sonhos podem abrir caminhos para o futuro. Se a pessoa passa a refletir sobre eles, pode chegar a conclusões fantásticas. Assim, os sonhos servem também como uma catapulta, pois podem nos auxiliar a compreender melhor nossas vidas e iluminar planos futuros.
Antigamente, os homens pintavam com frequência guerras e lutas, o que é um sinal de busca da preservação. Os sonhos também têm esse lado. As pessoas sonham muito com caças, corridas e são frequentemente perseguidas. Isso, de alguma forma, nos chama a atenção para nosso meio.
Jeferson – Vou pegar um gancho no que o Dirceu está falando. Para a Psicanálise, especialmente para Sigmund Freud, que publicou em 1895 o livro “A Interpretação dos Sonhos”, o sonho traz para o sujeito sua própria realidade. Freud achava que acordávamos para sair da realidade. Só dormindo tínhamos contato com o que é real, com o inconsciente que determina a experiência subjetiva de cada um.
Então, são importantes todos os fragmentos e também a maneira como ele é elaborado. Freud acreditava que o sonho possui figurabilidade, toda uma coerência e uma história que o organiza. A maneira de organizar o sonho seria reveladora da realidade de cada sonhador.
Portanto, para Freud, o sonho foi a porta para a formulação da ideia do inconsciente porque, mesmo sonhando, existe um trabalho psíquico, o produto da vida mental. Apesar de estarmos dormindo, nossa mente continua trabalhando. No entanto, ela não trabalha de qualquer jeito, mas exatamente para mostrar ao sonhador o tipo de problema que tem em relação à realidade de seu desejo. É interessante essa história. Freud diz que o sonho em si já é uma interpretação, já é uma forma de o sujeito configurar uma questão que está vivendo e que lhe está trazendo ansiedade. A elaboração onírica seria construída para mostrar ao sonhador as angústias geradas pelo encontro com o real.
Minas Faz Ciência – Existem linhas de pesquisa divergentes na Psicanálise?
Jeferson – Sim, dentro da própria Psicologia e da Psicanálise há linhas que divergem sobre a maneira de se considerar o sonho. Freud foi o iniciador, mas as questões chegam à clínica definindo maneiras diferentes de se encarar o problema do sonho. Com relação ao nível neuroquímico, especialmente no que se refere à dopamina, há uma questão que temos que separar: na Psicologia o discurso é outro e, cientificamente, não podemos compará-los.
Dirceu – É totalmente diferente, são janelas distintas. A dopamina é a base, a essência para que ocorra toda a parte psíquica. Sem a sua existência, não há o sonho. A baixa de dopamina gera uma procura por novidades muito grande, o que está ligado também a um déficit de atenção. Por exemplo, a criança com déficit de atenção não para. Se lhe dermos uma dose de anfetamina, substância que simula o funcionamento da dopamina, o organismo é regulado e a criança fica mais tranquila.
Jeferson – Agora, no caso da Psicanálise, o nível de arguição é diferente. Interessa perguntar por que essa criança é hiperativa. E o sonho é um elemento que revela para o sujeito quem é ele mesmo. O sonho é um trabalho. Pensamos sobre quem somos, sobre nossas angústias; queremos nos decifrar, nos conhecer. E os sonhos fazem ou continuam esse trabalho.
Na análise, os sonhos esclarecem situações. Às vezes, existe até a solução de problemas matemáticos. Eu mesmo, quando estava escrevendo minha tese, deixava um bloco no criado-mudo porque, frequentemente, sonhava com frases e enunciações que estavam faltando e que eram a chave que eu precisava. Portanto, a mente continua trabalhando, independente do estado de vigília.
Dirceu – Aí há outro conceito importante. Quando está dormindo, a pessoa continua em atividade, não da mesma forma, mas tem – vamos dizer assim – tarefas distintas e complementares às do dia. À medida que a Terra foi girando ao redor do Sol e a vida foi sendo criada, foram surgindo os relógios biológicos. Esses relógios biológicos, em nome de uma homeostase, foram criando “departamentos”. Assim, há substâncias que são produzidas enquanto dormimos, ao passo que outras são mais produzidas quanto estamos acordados. Ou seja, houve uma especialização nos seres vivos para melhorar o desempenho do estado de vigília e do sono.
Jeferson – O grande valor do Freud é que, até a sua época, o que não era do campo da consciência, o que não era do registro da vigília, era considerado fisiológico. O discurso da Psicologia não tinha nível diferente do da consciência. Saiu da consciência, só podia ser então neuronal. Freud mostrou que os sonhos, considerados até então matéria de ocultismo, restos de posições delirantes, assemelhados aos delírios, dada sua aparência enigmática ou caótica, podiam construir um nível de discurso fora da consciência que não fosse necessariamente neuronal ou fisiológico. Assim, formulou a ideia de inconsciente e tentou dar uma inteligibilidade para o sonho.
É claro que há muitas posições. Carl Jung, por exemplo, tentou fazer um dicionário de símbolos que seriam fixos para todos os sujeitos. Ele queria descobrir quais sonhos são padronizados e quais símbolos são comuns a todos os homens. Cada objeto, cada animal teria um significado.
Dirceu – O que, na prática, não acontece. Cada um tem o seu filtro. Por exemplo, o tratador de elefantes do zoológico tem uma relação com esse animal bem diferente daquela criancinha que tem um elefantinho de pelúcia. Portanto, o significado do seu sonho com elefante vai ser diferente do significado do sonho dessa criança. As relações simbólicas que aparecem no sonho são distintas.
Minas Faz Ciência – Então, não somos capazes de interpretar nossos próprios sonhos.
Dirceu – Existem técnicas para isso. Você pode se educar para captar os sonhos e preparar-se mentalmente tanto para sonhar quanto para, ao acordar, colher os dados.
Jeferson – Mas acho que o parâmetro fundamental é a maneira como você está vendo o seu problema hoje, a lente com que está se examinando atualmente, porque os sonhos podem ser ressignificados, ou seja, podem adquirir outras significações à medida que for mudando sua concepção sobre você mesmo.
O sonho possui coerência, e essa foi uma das maiores demonstrações de Freud. Não é algo caótico, nem místico, nem inacessível ao estudo científico. Possui coerência com os desejos da pessoa que sonhou, desejos que, às vezes, são ocultos para ela durante o dia, pois existe a censura. O sonho está ali para lembrar que há uma questão sendo escamoteada. Por isso Freud falou que, quando dormimos, entramos mais na realidade do que quando acordados.
Minas Faz Ciência – E sonhamos sempre, todos os dias? Às vezes, não nos lembramos dos sonhos…
Dirceu – Sim. O problema é conseguir flagrar ou não o sonho. Do ponto de vista biológico, se a pessoa acordar, no máximo, até cinco minutos após o período do sonho, terá grandes chances de se lembrar dele. Sonhamos todos os dias, de três a cinco vezes, em ciclos. Para chegar ao sono REM, os pesquisadores, em 1950, começaram a fazer gráficos em polígrafos, a juntar traçados eletroencefalográficos (EEG) das pessoas. Eles pegavam uma em cada dez folhas continuadas de EEG, sendo que cada uma correspondia a 20 segundos. Começaram a analisar essas folhas e perceberam que, em certo instante, o traçado passava de ondas lentas para o de uma pessoa acordada. Por isso chamaram-no de sono paradoxal.
Jeferson – O traçado de um sono profundo parecia com o de uma pessoa acordada?
Dirceu – Não, mas, de repente, apareciam ondas como se a pessoa estivesse acordada. E perceberam também que a pessoa movia rapidamente os olhos. Também perceberam que a pessoa relaxava muito a musculatura com exceção da sexual, tanto no homem como na mulher. Ao acordarem as pessoas nesse estágio, a maioria relatava os sonhos com facilidade.
Minas Faz Ciência – Os animais também sonham?
Dirceu – Falamos mais de sono. Podem até ter sonhos, impactos, mas nunca vamos dizer que sonham porque não existem meios de nos comunicarmos com eles. O sonho, como o conhecemos, é algo especificamente humano.
Jeferson – Parece que é dependente, de certa forma, da aquisição da linguagem, que dá essa textura ao sonho, essa coerência das imagens ou até o significado, que podemos interpretar. Depende, assim, da presença ativa de um sujeito. No mundo animal, a resposta de um para o outro é dada pela imagem, e não pelo simbólico, pelas estruturas da linguagem. Assim, a linguagem dos animais fica restrita às imagens.
Pessoalmente, acho que a minha cachorra sonha, porque, às vezes, vejo-a deitada com os olhos completamente em movimento, rosnando, chorando. Faz isso tudo dormindo. Fico imaginando se está sonhando, provavelmente, com a maneira como transita em seu universo. Se sonha, possivelmente seu sonho é mediado apenas pelas imagens, sem uma significação, sem a cultura, que organiza o laço entre as pessoas.
Minas Faz Ciência – Existem doenças do sono?
Dirceu – Sim, 87 transtornos distintos, segundo a Academia Americana de Medicina do Sono. A narcolepsia é um exemplo. Em Belo Horizonte, estimo que haja cerca de 30 mil pessoas com essa doença. Entre suas características, está a sonolência excessiva durante o dia. A pessoa tem vários picos de sono e pode apresentar catalepsia, que é a perda do tônus, da força muscular, frente a emoções fortes, boas ou más. Posso citar o caso de um paciente, um guarda rodoviário, que tinha narcolepsia. Ele parava o carro e, na hora de multar o motorista, emocionava-se e ficava paralisado. O motorista acabava acelerando o carro e indo embora. A catalepsia pode se apresentar no corpo todo ou em apenas alguns músculos, geralmente de forma simétrica. Por exemplo, tenho uma colega médica que perde o tônus muscular da face. Outra característica da narcolepsia é a paralisia do sono: a pessoa acorda e não consegue se mover, fica totalmente paralisada, às vezes, entra em pânico. Mas basta ficar quieto, parado, que passa. E há as alucinações que fazem com que a pessoa veja coisas, ou seja, antes de dormir, ela já está sonhando.
Minas Faz Ciência – E o sonambulismo?
Dirceu – O sonambulismo é um transtorno do sono não-REM. A descoberta do sono REM foi tão importante que a outra fase do sono passou a se chamar não-REM. Enfim, existem a vigília, o sono não-REM e o sono REM. Formam-se ciclos de sonos não-REM e REM. São cinco ciclos durante a noite, de 80 a 100 minutos. A tendência do sono REM é crescer, ou seja, à medida que o tempo passa, o sono não-REM diminui e o REM aumenta.
O sonambulismo está ligado à atividade motora. Se acordarmos uma pessoa sonâmbula, ela não vai ter nenhuma lembrança, porque não foram ativadas suas áreas dopaminésicas.
Jeferson – Provavelmente, ela está fazendo o sonho dela em ato…
Dirceu – …mas está relacionada a uma inteligência motora, e não ao pensamento.
Jeferson – Há uma diferença importante nesse caso. A Psicanálise fica menos preocupada com a característica universal dos sonhos, a preocupação dela é menor. Você contou o caso do guarda rodoviário. Para a Psicanálise, interessa saber por que esse sujeito tem que desmaiar exatamente na hora em que está entregando a multa. Qual é a questão dele? Por que isso chega a ser um problema? Por que não sonha ou entra numa catalepsia ou na narcolepsia em outros momentos? Por que esse momento passa a ser crucial ou mais forte?
Dirceu – É uma arma que dispara emoção forte. É a maneira da doença funcionar.
Jeferson – Então, é o significado dessa situação que interessa. A Psicanálise está preocupada com a formulação que o sujeito faz a respeito dele mesmo. Não interessa o geral, principalmente porque o nível do discurso é complementar, é diferente. O que interessa é descobrir por que a narcolepsia ocorre nessa situação, e não quando o motorista já recebeu a multa e foi embora, por exemplo. Será que tem a ver com o lugar de autoridade?
Minas Faz Ciência – São pontos de vista diferentes, mas também pode haver contradição…
Jeferson – Às vezes pode haver. Por exemplo, no caso da medicação, se desaparece o sintoma, é como se você estivesse colaborando para aquele sujeito ficar alienado dele mesmo. Ele não sabe por que está fazendo aquilo. Será que haveria alguma chance de ele mesmo intervir nisso?
A Psicanálise é fruto da ciência, tem uma relação intrínseca com ela. Mas por que, só depois de 300 anos de ciência, foi surgir a Psicanálise? Porque precisava de uma organização científica que permitisse a caracterização de um método, de um determinado tipo de raciocínio. Por outro lado – e aí penso que os dois discursos entram em conflito – a ciência tende a medicar a subjetividade.
Dirceu – Na narcolepsia, entretanto, não existe subjetividade. O problema é conhecido, sabe-se como tratá-lo e, uma semana depois de medicada, a pessoa já leva vida normal.
Jeferson – Nós, da Psicanálise, trabalhamos com psicóticos, com esquizofrênicos. É claro que ancorar esse trabalho com medicamentos é fundamental, mas não podemos medicar a subjetividade, excluir o sujeito e colocá-lo como simples objeto de um saber.
Dirceu – Exato. Uma pessoa com um quadro de esquizofrenia pode ser tratada, de imediato, com drogas que reduzem a hospitalização e fazem com que ela volte às suas funções normais.
Minas Faz Ciência – E quanto às pesquisas e aos avanços tecnológicos na área dos sonhos?
Jeferson – Acho que, em termos de tecnologia, o avanço maior é da Medicina, com a identificação dos circuitos cerebrais envolvidos durante o sono, com a concentração maior ou menor de neurotransmissores em algumas áreas. Para nós, da Psicanálise, os sonhos não são mais o fundamental. Na época de Freud, era como se o inconsciente estivesse à margem do sujeito. Então, os sonhos seriam a via de acesso a esse inconsciente. Hoje sabemos que os sonhos estão alinhados às falas comuns do dia-a-dia. Por isso, o mesmo tratamento que damos a eles é dado também à fala.
Se o sujeito conta o que aconteceu num jogo de futebol, a possibilidade de localizar, em uma posição subjetiva, sua questão e seus desejos é a mesma de quando ele chega contando o sonho que teve. Não há mais diferença entre uma fala aparentemente objetiva, circunscrita ou detalhando um caso. São formas de caracterizar a porção subjetiva e são formas de trabalho.
Então, nesse aspecto, o avanço é o deslocamento do peso privilegiado que tinha o sonho. Hoje, ele ficou conhecido como uma metáfora da vida do sujeito, como outra qualquer. Não é mais uma área de interesse obscura, enigmática, inacessível, mas, sim, uma metáfora, entre outras, que o sujeito produz a respeito de suas questões.
Minas Faz Ciência – No caso de um tema abstrato como esse, como são realizados os estudos?
Dirceu – São criadas escalas. Como sabemos, todos sonham, mas nem todos flagram os sonhos. Mas se a pessoa está no Sono REM e é acordada, tem 80% de chance de se lembrar do sonho. Uma das ferramentas usadas é essa: a pessoa está sendo monitorada e é acordada. Aí são feitas perguntas ou já lhe é criada, de antemão, uma rotina. Assim, pode dizer se está angustiada, se sentiu medo, se sonhou com perseguição, entre outras questões de interesse da pesquisa.
Do ponto de vista clínico, procuramos auxiliar as pessoas com pesadelos. Há pouco tempo, uma senhora me procurou porque tinha pesadelos desde o dia em que foi assaltada. Os bandidos subiram ao seu apartamento e acabaram disparando três tiros nela e um no marido. Os dois sobreviveram, mas ela passou quase um ano de cama. Tinha traumas e pesadelos. Quando foi à clínica, pedi-lhe que pintasse cada momento que viveu, pois era pintora. Na hora, ela chorou e disse que não. Respondi que essa era a melhor forma de lidar com a situação. Quinze dias depois, ela voltou e disse que suas lembranças haviam sumido.
Jeferson – O enigma está aí: por que você não pode ter só sonhos bons, se está feliz? Por que algumas pessoas insistem em introduzir sonhos traumáticos, lembrando essa situação do estresse? Já que o sujeito teve uma experiência de vida tão traumática, por que não sonha com o paraíso, que está feliz, e vai sonhar justamente com aquilo que lhe traz sofrimento?
Dirceu – É uma tentativa de cura.
Minas Faz Ciência – Às vezes sonhamos com outras pessoas em outras situações que não têm nada a ver conosco…
Dirceu – Há estudos que dizem que apenas 30% das personagens do nosso sonho são conhecidas. Outras 30% têm alguma característica, como uma roupa, um cheiro, que as marca. Quanto às outras personagens, não temos a menor noção de quem sejam.
Minas Faz Ciência – Às vezes, nos sonhos, temos a sensação de estar presentes, mas não aparecemos.
Jeferson – Mas isso faz parte dessa divisão subjetiva que temos. Não temos clareza da parte da consciência a que não temos acesso. Somos divididos mesmo. Você pode se ver na cena do sonho ou participar como espectadora. Mas, frequentemente, isso é um deslocamento.
Pode ser muito doloroso estar ali, então você coloca alguém para representar aquilo para você, seja sem rosto, seja alguém conhecido, seja alguém que pega a característica de uma roupa. Você pensa que aquela roupa é sua, mas, na hora de interpretar seu sonho, você pode dizer que seu pai ou sua mãe ou seu namorado tem uma roupa parecida. Às vezes, essa roupa faz você se lembrar de alguma situação. Assim, vão-se produzindo deslocamentos, porque é doloroso, é difícil para a pessoa ficar totalmente imersa na própria realidade.
Dirceu – Fazendo esse deslocamento, a realidade se atenua.
Jeferson – É o que chamamos de recalque: a tentativa do sujeito de não entrar em contato com o real, que é pesado demais. O mais interessante é que a realidade psíquica é mais penosa que a realidade material. O trauma dos neuróticos de guerra que ficaram sem uma perna ou sem um braço é muito menor do que o trauma daqueles que não sofreram nada. Os que não tiveram nada localizam na realidade psíquica a iminência de, a qualquer hora, acontecer-lhes alguma desgraça.
Dirceu – Os pesadelos, por exemplo, ocorrem mais com pessoas de determinadas estruturas psíquicas. Em média, 5% a 10% dos adultos sofrem pesadelos pelo menos uma vez por mês. Eles são bastante comuns nos veteranos de guerra, no entanto, ocorrem muito mais em crianças, possivelmente porque estão se interagindo mais, há mais novidades e mais necessidade de ajustes ao meio externo. Portanto, existem características estruturais de personalidade que fazem com que a pessoa filtre melhor o mundo, coloque mais barreiras e não sofra tanto, ao passo que outras são mais vulneráveis às pressões. Conheço um trabalho que fala que os sonhos mais loucos, mais bizarros, geralmente estão ligados às pessoas de melhor índole, mais criativas e mais autênticas.
Jeferson – Isso ocorre provavelmente porque essas pessoas podem realizar, na fantasia, os desejos mais absurdos, mais perversos. Esses desejos foram trabalhados em outro nível da sua divisão e não mais precisam ser realizados.
Minas Faz Ciência – Dependendo do caso, o sonho pode estar relacionado ao nosso passado, ao nosso desejo…
Dirceu – Ou, às vezes, você não vê nenhuma ligação direta. Pode demorar um tempo para que as coisas façam sentido, ou seja, para que “caia a ficha”.
Jeferson – O sonho usa restos diurnos, fragmentos da vida. Muitas vezes a interpretação que damos basta: sonhei com dois amigos porque eles estavam comigo ontem. Não é bem assim. Provavelmente, a figura dos dois, nesse sonho, é permitida para mim. Desloco para eles ideias que não consigo admitir em mim mesmo. Faço um deslocamento. É como se eu me visse em espelho. Eles estariam me mostrando aquilo que não quero ver.
Dirceu – Ou que se quer ver de forma mais gentil, menos traumática.
Jeferson – Podem ser sonhos antigos ou sonhos que mostrem uma posição subjetiva. Esse filtro, essa janela pela qual olhamos o mundo é o que realmente interessa. Por isso digo que é subjetivo. Para a Psicanálise, interessa saber por que a pessoa tem aquele filtro, e não outro; por que a pessoa poderia ver a situação de outro ângulo e está vendo daquele.
Minas Faz Ciência – Para nós, é difícil interpretar porque nem sempre o sonho tem começo, meio e fim…
Jeferson – O analista está no suposto lugar daquele que pode interpretar um sonho. Quando se está em análise, é muito frequente lembrar os sonhos. Quando eu fazia análise, lembrava-me de cinco ou seis por semana. Depois que parei de fazer, parei de me lembrar dos sonhos.
O critério de interpretação acaba sendo o tipo de vínculo que se tem com a pessoa. Se você contar um sonho para um amigo, numa mesa de bar, ele vai falar uma coisa. Mas um sonho contado para um analista ou para um psiquiatra tem uma dimensão diferente porque você está contando para alguém que foi autorizado a penetrar em suas questões íntimas. Por isso, as palavras que vêm dele carregam outro peso.
Minas Faz Ciência – Há mais alguma observação que gostariam de fazer?
Jeferson – Há muitas pessoas que relatam o que antigamente era um mistério: sonhos premonitórios. Por exemplo, encontra algum conhecido na rua e se lembra de ter sonhado com ele, igualzinho, no mesmo lugar. E o sonhador tem a convicção de que o sonho era uma premonição. Mas, se pensarmos nos detalhes, vemos que não era isso; na verdade, não existe sonho premonitório. Podia existir um desejo grande de encontrar aquela pessoa e, quando acontece, essa janela, esse filtro para ver o mundo cria a realidade de que você esteve com a pessoa na noite anterior, em sonho. São aparentemente misteriosos esses sonhos premonitórios, de adivinhação, de acertar um concurso… Na verdade, isso não ocorre. Era a ilusão do sonhador sustentada por um desejo.
Insisto, portanto, em uma posição ética: a de que não podemos, em nome de um discurso, seja ele biológico ou místico, excluir a participação ativa do sujeito em suas produções, mesmo que ele não tenha a menor consciência disso.
Dirceu – São universos fantásticos, tanto os estudos da minha área, mais biológica, de entendimento do sono, sonhos e seus transtornos, quanto os da Psicanálise e da Psicologia como um todo. Está havendo uma evolução muito grande e rápida sobre o conhecimento de como tudo isso funciona em nós. São avenidas imensas de conhecimento que estão nos conduzindo a muitas aplicações na prática médica.
Estimo que 35 milhões de brasileiros sofram de transtornos crônicos do sono. Essas pessoas têm uma qualidade de vida ruim e apresentam mais riscos de acidente no trabalho e no trânsito. Geralmente, os tratamentos para esses distúrbios são um sucesso. Infelizmente, no nosso País, ainda não existe uma política de saúde pública nessa área e a matéria ainda não merece destaque na grade curricular médica.
Fonte: Revista Minas Faz Ciência (http://revista.fapemig.br/) nº 12
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