A falência das religiões e os brutais acontecimentos deste início de século.
O professor ouviu um ruído e foi olhar. No chão estava o
Marquinhos, filho do vizinho, que tinha caído da varanda e
sangrava profusamente. Mesmo sendo uma pessoa de
idade, tomou o menino nos braços e começou a correr
desesperado para o hospital a poucas quadras. No
caminho, vinha descendo a ladeira uma senhora que, ao
vê-lo esbaforido, gritou: “Calma, professor… vai dar tudo
certo. Não se apresse tanto. Deus vai ajudar… e o senhor já
não tem idade para correr assim com uma criança no colo!”
Ela então se aproximou e, em pânico, constatou: “Ai, meu
Deus, é meu netinho! Corre, professor, corre, pelo amor de
Deus.”
O verdadeiro Deus está na urgência que reconhece no rosto
“um netinho”, um seu. Até então aparece o deus da idolatria,
respaldado muitas vezes pela fé que não enxerga a
urgência do outro. A base das religiões bíblicas é o
reconhecimento de que o ser humano é a imagem e
semelhança de Deus. Não reconhecer esta semelhança,
seja num executivo do mundo financeiro nova-iorquino, seja
num fanático islâmico, seja num negro africano desnutrido,
seja num chinês que não parece diferente de outro chinês, é
a prova dos noves do sucesso ou falência do establish ment
religioso (de todas as religiões) de levar a verdadeira
mensagem a seus adeptos.
Há vários inimigos invisíveis que estão ficando visíveis
nesta crise pela qual passa o mundo. Há o inimigo de uma
civilização que nos aliena em relação ao outro. Uma cultura
de fobia do outro e de sonharmos com um mundo de
privacidade. Uma espécie de dessocialização que nos leva
a ser novamente nômades e coletores. Nômades porque
podemos estar em qualquer lugar, sem apreço e carinho
pelo lugar; e coletores porque não plantamos para o futuro,
apenas para o nosso breve futuro pessoal.
E a América não é este mal, apesar de muitos
simbolizarem-na como tal. Afinal, este mal pode estar mais
vivo na Arábia Saudita, com seus sheiks e monarcas
trilionários, do que numa Nova York símbolo de integração
entre raças, culturas e religiões. O mimado príncipe Bin
Laden, que à moda de tantos filhos de nobres e milionários
do Ocidente precisa de um hobby para dar sentido à sua
pobre existência, é talvez mais ocidental do que seus
seguidores o percebam. Sem deixar de reconhecer que o
presidente Bush tem nas mãos o potencial de uma guerra
devastadora, seja na crise em si ou seja em posturas como
as assumidas nas questões de comércio internacional ou
questões ambientais do planeta.
Mas o inimigo invisível maior está nas próprias religiões.
Não que elas estejam em guerra. Elas nunca estiveram tão
aliadas como na atualidade. Elas se compreendem porque
funcionam de forma muito semelhante. São elas a maior
fonte de doutrinação da juventude, mergulhadas que estão
nas idéias de “certo” e “errado”. Afinal não foi desta árvore
do “Certo e Errado” que comeram no paraíso como pecado
maior?
É claro que os fundamentalistas e os fanáticos de cada uma
destas tradições são o rosto deste mal, mas as tradições
religiosas não realizam guerras santas contra esta heresia
maior que é não reconhecer a urgência do outro. As
tradições religiosas não são proféticas na denúncia de si
próprias, no compromisso absoluto com a ética e com uma
visão universal. E se o Islã hoje está em evidência, por
mérito próprio, não escapa também o judaísmo com o
fomento de fundamentalistas-nacionalistas. Não escapa a
Igreja com seu corporativismo e idéias subliminares de
salvação por uma única porta. Ou o fundamentalismo
evangélico que vê satã por todos os lados, ou, em outras
palavras, inimigos por todos os lados.
Enquanto as religiões não cerrarem fileiras contra sua
própria heresia (esqueça-se a do outro!) elas serão parte do
inimigo invisível. E não se trata de encontros ecumênicos e
inter-religiosos como um cenário de papelão à frente de
bastidores de intolerância e soberba.
O mundo marcha à guerra e não há vergonha maior do que
a das religiões. Elas não veem a urgência porque não
ajudaram este mundo a compreender que qualquer morte é
a de um netinho. Que se prestem hoje no século XXI como
pano de fundo para terror e horror é um fracasso inominável,
vergonha inocultável.
O século XXI chegou com esta surpreendente novidade: ou
percebemos que é do “nosso netinho” que se trata a
questão e não de um outro virtual, ou perecemos. Isto
porque o futuro será cheio do “outro”, ao contrário do que
supunham os analistas. Falavam eles de um mundo de
computadores, cada um trabalhando em casa, menos
horas de trabalho, mais automatização, mais “eu” e menos
“os outros” em nossas vidas.
Porém o mundo globalizado não é um mundo grande, é um
mundo pequeno cheio de gente. O século XXI estará repleto
do outro. É um outro cada vez mais numeroso – nunca
existiram tantos outros em nenhuma era. E esse outro vive
muito – nunca viveram tanto os outros em nenhuma era. É
chegado o momento de abandonar o vício da busca de
inimigos.
Os inimigos somos nós mesmos. E as religiões que não
buscarem este inimigo em si são as religiões idólatras
desta nova era. Não se trata mais de ser monoteísta, isso é
passado. Trata-se de saber como cada uma delas honra
este Deus único pelo respeito máximo a seu semelhante.
Dizia George Santayana que “o fanatismo consiste no ato de
redobrar esforços por conta de se ter esquecido dos
objetivos”.
As religiões parecem esquecer seu objetivo maior que não
é reconhecer Deus apenas como sendo Um, mas cada ser
humano, Sua imagem e semelhança, como um ser único. E
pelos que morreram, vergonha sobre nós religiosos. E
pelos que irão morrer, mais vergonha! E quando estivermos
vendo imagens pela televisão onde apareçam crianças ou
jovens ensanguentados, olhemos mais de perto – “serão
nossos netinhos”.
Nilton Bonder é Rabino e Escritor
Texto: publicado no Jornal O Globo
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