A Tradição Esotérica e o Despertar dos Mágicos
Assunto fértil e complexo, a Cabala tem se tornado cada vez mais motivo de interesse em diversas áreas do conhecimento humano. Personalidades as mais diferentes, desde biologistas e astrofísicos até diretores de cinema, como Has, do filme “Lá Clepsidre “, poetas como Milosz, o jazzman John Coltrone, especialistas em disciplinas tradicionais e mitológicas apenas para citar alguns exemplos, procuram nas formar de pensamento da Cabala superar uma crise de linguagem literária e científica contemporâneas. E também na Cabala que os movimentos ocultistas modernos procuram situar seus esforços de colocar o conhecimento em bases novas. A atualidade do tema fica sobretudo demonstrada na curiosidade de um crescente número de pessoas, especialmente jovens, que procuram reconhecer no cabalismo a eficácia de valores antigos e espirituais que os conduzam à realização de uma personalidade mais completa. O que é a Cabala? Além de apresentar uma panorâmica visão sobre esse afresco saído da cultura mística judaica, aqui está uma entrevista com o dr. Alberto Lyra, teósofo, psiquiatra e estudioso no assunto.
A palavra hebraica Kabbala significa literalmente “tradição”. Mais especificamente, a Cabala é aparte oculta ou esotérica do judaísmo que procura revelar todo um universo de conhecimentos profundos sobre o Cosmos, que se encontram nos textos sagrados do Antigo Testamento.
Segundo a tradição rabínica, Enoque a ensinou a Abraão e este a transmitiu oralmente a seus filhos e netos. Foi, no entanto, Moisés, iniciado nos mistérios do Santuário do Egito, quem deu corpo à doutrina, escrevendo a em estilo simbólico, para isso servindo se da língua egípcia. Moisés não só era um iniciado, como teve acesso aos arquivos sacerdotais no Templo de Tebas (então capital do Reino), assim como colheu os mistérios mais puros dos últimos sobreviventes dos hierofantes da raça negra. Temendo falsas interpretações, confiou as chaves da sua obra a setenta eleitos que a foram transmitindo de viva voz a outros homens de comprovado valor moral. Essa tradição oral, que segundo os cabalistas se conserva pura até hoje, contém então todos os pontos essenciais de todas as tradições ocultas que já haviam aparecido no globo terrestre até aquele momento.
Na sua evolução através dos séculos, a história da Cabala é a história do misticismo judaico, onde toda uma vida de práticas religiosas se faz necessária para que seja possível o acesso aos supremos degraus que completariam a união íntima com Deus, seu objetivo último. Portanto não pode ser reduzida a algumas fórmulas mágicas que levariam à redescoberta de poderes psíquicos perdidos ou ao ressurgimento dos símbolos arcaicos do inconsciente coletivo de Jung, como muitos podem pensar.
As próprias doutrinas contidas nas duas principais partes do que se chama “Cabala especulativa” uma cosmológica e cosmogônica, e outra sobre os atributos da divindade teriam sido elaboradas por alguns místicos que desenvolveram as suas faculdades paranormais para penetrarem nos mistérios profundos das esferas celestes.
As especulações que existem sobre esses mistérios, já no Talmude (livro muito conceituado entre os judeus, de interpretação da Bíblia, que compila mil anos de ensinamentos e conselhos ao povo judeu.) têm suas raízes na descrição do Gênese, na visão de Isaías no Templo, no Carro Divino de Ezequiel e no gênero de literatura apocalíptico, e estão contidas no Maaseh Bereshit (A História da Criação) e no Maaseh Mercabá (o Carro Divino). As ascensões celestes dos místicos Mercabá, por exemplo, eram preparadas através de um severo regime de práticas ascéticas, evocação dos nomes secretos de Deus, transe e metamorfose, até serem recompensados com a visão do trono carruagem de Deus ou Carro Divino, de que fala o primeiro capitulo de Ezequiel.
A História da Criação e O Carro Divino
Ao contrário dessa paixão em êxtase que enchia de orgulho o coração do visionário Mercabá diante da presença mística de Deus, os devotos da Cabala prática, cuja origem remonta aos milagres operados por profetas como Moisés, Elias e Eliseu, desenvolviam a contenção, a humildade, a auto abnegação, a oração, a meditação interior e a contemplação.
Aqui Deus é demasiado sublime para ser compreendido pelo espírito humano, é a Luz Divina ou “Glória” (Kabod). Para chegar à visão do Kabod, o devoto deveria cultivar constantemente o sentido da presença de Deus, seguir uma moral rígida e radical caracterizada pela santidade e indiferença perante a zombaria, a vergonha e os insultos.
Essa Cabala não pode ser separada de seu estatuto social e político já que foi desenvolvida pelos judeus alemães perseguidos, nos séculos XII e XIII, muito servindo às famílias oprimidas que viram nos seus poderes talismânicos e em certas técnicas dos mistérios da oração um meio de escapar às misérias.
No jargão cabalístico, Cabala prática significa magia, mas no sentido de atividade religiosa voltada para a piedade interior, tal como se encontra em cabalistas como Abrão Abufália (séc. XIII), nos hassidim (séc. XIII) e em Isaac Luria (séc. XVI). Outra é a degeneração dessa Cabala, a magia negra, voltada para provocar resultados sensoriais externos através da manipulação de poderes demoníacos.
Não sendo um sistema unificado, mas um conjunto de sistemas diversificados, às vezes contraditórios, que utilizam uma abundância infinita de imagens e símbolos, a Cabala requer um considerável tempo de estudos para que possa ser compreendida (se é que pode). Para os estudiosos do assunto a dificuldade ou aventura maior está em definir até que ponto os símbolos cabalísticos são ou não herança de outras tradições.
Na época em que o Ocidente procurava conservar os resquícios do mundo latino, os cabalistas buscaram a contribuição de pensamentos milenares como o pitagorismo, o platonismo, o neoplatonismo e o gnosticismo egípcio. Na verdade os séculos já haviam preparado a transmissão de uma herança psicológica que eclodia em imagens e mitos de criação, viagens e visões espirituais. Assim, por exemplo, a concepção do mundo segundo uma expansão cíclica a partir de um ponto era comum a São Tomás de Aquino, a Dante Alighieri e à Cabala.
A Renascença por sua vez deu impulso aos estudos da Cabala: Picodella Mirandola fez anotações sobre ela, Paracelso adotou seus pontos de vista, Spinoza veio ao mundo fecundado de filosofia judia, os místicos cristãos, como Jacob Boehme, foram influenciados pela Cabala e, finalmente, muitos orientadores da Reforma viram nela um poderoso aliado na luta contra a teologia escolástica medieval.
O fato é que os comentários cabalísticos sobre os livros da Bíblia, trazem nos símbolos idéias tão vertiginosas que não só interessam ao homem atual como apaixonaram os leitores a partir do século XVI na Itália, no Oriente, na Polônia e na Rússia, passando a influenciar todas as comunidades judaicas a partir do século XVIII, quando a Cabala começou a se desintegrar ou a entrar num curso mais amplo.
Os dois livros mais importantes para o cabalismo tanto especulativo quanto prático são: o Sefer letzirá (Livro da Criação) e o Sefer Ha Zohar (Livro do Esplendor). O primeiro, do século II, obra cosmológica e cosmogônica, trata do Maaseh Bereshit e constitui um marco na história do misticismo judaico por ter iniciado um sistema de idéias que se frutificou posteriormente. O Zohar, que apareceu no século XIII, trata do Maaseh Mercabá (os atributos de Deus na simbologia do Carro Divino), restaura o aspecto mítico da Torá (lei judia) conferindo à Cabala uma posição ímpar na vida religiosa judaica e reúne todas as idéias cabalísticas que se haviam desenvolvido até então.
Segundo os cabalistas, as idéias do domínio filosófico encontram-se descritas nas religiões através de alegorias que se acabam revestindo de um sentido puramente simbólico. É assim que a Teoria das Ideias, afirmando a existência de entidades celestes não corpóreas que serviram de modelo à criação das coisas, já conhecida dos babilônios e desenvolvida por Platão, entra na descrição da origem do universo do Sefer lezirat, se dela tirarmos o seu simbolismo.
A chave dessa Teoria encontra-se na frase inicial do livro: “Por meio de 32 vias o Eterno, o Senhor dos Exércitos, o Supremo Deus . . . gravou e estabeleceu o Seu nome e criou o Seu mundo.” As 32 vias são as 22 letras do alfabeto hebraico mais as dez Sefirot. O termo Sefirot deriva de uma raiz hebraica que significa “numerar”. Ou seja, Sefirot são princípios numerados ou idéias, entidades não materiais, abstratas, moldes ou formas em que todas as coisas se originaram.
Através da articulação das letras subdivididas em três grupos que representam o ar, a água e o fogo, as Sefirot recebiam um substrato material que tornava possível a Criação. A maneira como isso ocorre é uma tentativa de conciliar as idéias de emanação e criação.
No Zohar a emanação das Sefirot (que com o desenvolvimento da terminologia já tinha adquirido o sentido de emergência de poderes e emanações divinas) é descrita como um processo que se verifica em Deus, ao mesmo tempo em que capacita o homem de percebê-lo.
A peculiaridade dessa teoria está na concepção do processo da criação como sendo um aspecto exterior de um processo que ocorre dentro do próprio Deus, em diferentes estágios. Transcendente e imanente, ao mesmo tempo.
O poder criador de Deus é aquele que emana do mais profundo do seu Ser, que os cabalistas chamam de Ein Sof, o Infinito, e que precedendo em tempo o mundo manifestado, representa um estágio superior da realidade. Na emanação de Deus, o poder criador se rompe de seu Ser mais oculto.
Enquanto Ein Sof, Deus não apresenta nem qualidades nem atributos, mas simplesmente porque ultrapassa nosso alcance percebê-lo. A emanação é então uma criação do Nada, sendo porém este Nada não uma negação como seria o Nada da criação ex nihilo dos teólogos, mas o Nada que é a mais real do que qualquer outra realidade. O Nada místico onde a alma despojada de toda limitação encontra o Divino.
É na crise do Ein Sof, como irrompimento da imersão em si para se exteriorizar, que ocorre a Criação. O Zohar fala de dois mundos: o primário e oculto, ininteligível a todos exceto Deus, que é o mundo do Ein Sof, e aquele através do qual Ele pode ser conhecido, isto é o mundo dos atributos. Esses atributos de Deus constituem as dez Sefirot, ou as dez etapas através das quais a vida divina pulsa, sendo a mais alta Serifá a “suprema coroa”, o Nada do qual as outras Sefirot emanam.
No Zohar as Sefirot são classificadas segundo um esquema definido: dividem se em três grupos, sendo que cada grupo forma uma tríade. A primeira tríade representa Deus como o imanente poder pensante do universo.
A primeira Sefirot é designada por Keter Elion (Suprema Coroa), o estágio primário do processo criador divino. De Keter se originam duas Sefirot paralelas: Hochmá (Sabedoria) e Biná (Inteligência), as quais introduzem o principio da dualidade macho e fêmea que governa o universo. Hochmá é o pai, o princípio masculino e ativo que contém em si todas as infinitas formas e movimentos. Biná é a mãe, princípio passivo da individuação e diferenciação. O que estava oculto e indiferenciado em Hochmá, na sua união com Biná, seu oposto, se revela e se diferencia.
A segunda tríade, emanada da primeira, representa o poder moral, onde ocorre também a ação do principio dos opostos. O masculino é Hessed (Amor) e o feminino Guevurá ou Din (Poder) que se manifesta como Justiça. Da sua união provém Rahamim (Generosidade ou Compaixão) que algumas vezes é também designado Tiferet (Beleza).
Representando o universo material com todas as suas forças, transformações e movimentos, a terceira tríade é a última criação de Deus. O principio masculino Netzá (Constância Duradoura) une se ao feminino Hod (Majestade) dando origem a lessod (Fundação), que representa a base ou estabilidade de todas as forças ativas em Deus.
O décimo e último Sefirá, Malkut (Reino), comumente descrito no Zohar como Knesset
Israel, o arquétipo místico da comunidade de Israel, ou como Schehiná (Residência), é a harmonia de todas as Sefirot, revela a presença de Deus no universo e a sua manifestação na vida dos indivíduos, das comunidades e dos lugares santos.
Estas são as dez esferas da manifestação de Deus quando emerge de sua morada oculta, formando juntas o “universo unificado”. Sobre esse assunto em particular é que o Zohar dedica uma complexa especulação.
A interligação das Sefirot entre si, formando uma unidade, é feita através da transmissão de influências de um Sefirá a outra e que é chamada Zinor (tubo), e é descrita da seguinte maneira: “Uma atividade exercida embaixo estimula uma atividade correspondente em cima. Vem e vê: o vapor de água sobe da terra e depois a nuvem forma se, constituindo assim um todo.” Em outras palavras, tudo que afeta um dos mundos afeta igualmente todos os outros.
Essa teoria teve vastas consequências no campo especulativo no que diz respeito ao comportamento humano, sobretudo por causa da colocação do problema do Mal, cujo inegável fascínio influenciou em muito as idéias de Jacob Boehme.
Até então a posição dos teóricos do Mal era puramente intelectual: o Mal é relativo, e desde que a mente entenda isso ele deixa de existir. No Zohar a origem do Mal está na separação, na destruição da união que ocorreu entre o Ein Sof e a Schehiná, no Pecado Original, e é atribuída à própria ira de Deus, simbolizada por sua mão esquerda, sendo a mão direita a misericórdia e o amor. Uma não pode se manifestar sem envolver a outra, já que o mundo das Sefirot forma uma totalidade única. Assim a harmonia se mantém quando a mão esquerda da ira de Deus é moderada pela misericórdia de Sua mão direita. A separação ocorre quando, pelo exagero ou uma explosão, uma qualidade se desprende da outra. Ou, como sintetiza Baader os ensinamentos de Jacob Boehme:
Onde o rigor e a brandura se encontram;
A ira e a escuridão acendem se,
Onde o rigor e a brandura se apartam.
Unir o Schehiná e o Ein Sof, restabelecendo a unidade do mundo das Sefirot, é o supremo objetivo para o qual o homem foi criado no mundo. O homem é então uma epítome (síntese) do Cosmos, sendo o seu corpo uma cópia do Adam Kadmon, figura simbólica do homem primordial, usada para representar o mundo das Sefirot.
Outra imagem usada e mais frequentemente adotada no cabalismo para representar a unidade do mundo das Sefirot é a da Árvore da Vida. O Mal é o fruto que foi separado da Árvore, e as dez Seflrot representam cada uma um ramo cuja raiz comum é incognoscível, sendo o Ein Sof a Raiz oculta de todas as raízes, assim como a própria seiva da árvore.
No seu livro “A Cabala e seu Simbolismo”, Gershom Scholem mostra como a Cabala recupera e revive o mito e o símbolo, numa época em que a fé, principalmente popular, era desafiada pela teologia racional dos filósofos. Ampliando esta concepção, podemos dizer que, de certa maneira, a Cabala, com todas as suas implicações simbólicas, é um apelo ao homem de uma volta á união com a sua própria natureza e com a natureza da qual se encontra separado.
Número 120
Setembro de 1982