A Mãe dos Homens fugiu do Paraíso, insultou o Criador
e transformou-se num demônio.
Eva foi criada só depois.
E os descendentes de Adão passaram a se proteger do ódio
daquela primeira mulher que, de tão negada,
nunca deixou de existir.
Essa é Lilith.
Por Romeo Graziano Filho
Se fosse possível reunir os mitos de Lilith (esta esquecida primeira mulher de Adão) e de Eva, dando origem a uma espécie de continuação “adaptada” às histórias destes dois personagens, por certo Lilith iria indignar-se de tal forma com o destino de Eva que só lhe teria a oferecer o escárnio. Nada, nem mesmo o mais vantajoso dos pactos oferecidos por Eva, valeria a simples visão do seu servilismo a Adão.
A raiz dessa incompatibilidade justifica-se pela própria ideologia de cada uma dessas mulheres, que conduziu o homem à “queda”: enquanto Eva optou apenas por desobedecer à ordem de não provar do fruto da árvore proibida, Lilith questionou a superioridade de Adão e exigiu igualdade. Teria sido um “erro” calculado pelo Criador?
Em seu livro Lilith, a Lua Negra (Ed. Paz e Terra, 1985), o psicanalista italiano de linha junguiana Roberto Sicuteri recupera as bases deste conflito primordial, observando suas repercussões e sobrevivência no inconsciente coletivo. As fontes utilizadas foram os relatos da Torah assírio-babilónica e hebraica, entre outros textos apócrifos, já que as Sagradas Escrituras cristãs não fazem a menor referência a Lilith.
Na versão jeovística (ou seja, da tradição religiosa hebraica) para o Gênesis, enriquecida pelos testemunhos orais dos rabinos, vamos encontrar a primeira mulher como um ser essencialmente instintivo e realizador de nossa natureza mais animal, por isso contrário ao divino, ao sagrado. Condenada por Jeová-Deus a ser inferior ao homem, Lilith foi criada com pó negro e excrementos. Considerando- se que Adão vivia no Jardim do Éden no pleno equilíbrio de sua sagrada androginia (pois fora feito à imagem e semelhança do Criador), compreende-se como o surgimento da primeira mulher fez nascer um distanciamento entre Deus e o homem.
Mas Sicuteri ainda ilustra a narrativa com um outro texto, dessa vez do comentário bíblico do Beresit-Rabba (rabi Oshajjah). Neste, a primeira mulher é descrita cheia de saliva e de sangue, o que teria desagradado a Adão, de modo que Jeová-Deus “tornou a criá-la uma segunda vez”.
Aqui surge um componente psicológico altamente revelador do divórcio entre o instinto e o pensamento: diferente de Eva – que foi criada como parte do homem -, Lilith veio do sangue (menstruação) e da saliva (desejo); portanto, é o arquétipo do erotismo desenfreado, dos desejos mais primitivos que se ocultam em nosso inconsciente da natureza feminina diabólica. Assim, enquanto Eva aparece como um ideal da feminilidade dócil, pode-se dizer, Lilith se afirma como mulher, no sentido mais completo e abismal do termo, mais fiel à realidade da relação homem-mulher. Daí a sua representação como um demônio, rainha da noite, mãe dos súcubos.
Lilith, então, veio ao mundo com os répteis e demônios feitos no cair da noite do sexto dia da criação, uma sexta-feira. Ela já fora criada como um demônio, e nisso a sabedoria rabínica parece fornecer o fermento para nossas divagações em tomo da milenar repressão que o homem sempre tentou impor à sexualidade feminina, e que a tradição cultural das sociedades de todos os tempos incorporou com naturalidade, perpetuando toda uma série de outros mitos em tomo da figura mulher-demônio-seipente.
Consumada a união carnal com Lilith, Adão teria mergulhado na angústia da paixão, vendo o seu distanciamento da divindade como um preço pelo êxtase orgástico que nunca sentira. Embora este final de século tenha trazido muitos questionamentos sobre os valores pregados pelas religiões, principalmente a católica, é evidente a intenção de se marcar a consciência humana (a ferro e fogo, diríamos, numa relação com o ameaçador Tártaro dos gregos) com esta primeira experiência adâmica, ainda hoje.
No que se refere ao pecado original, vê-se que tanto Lilith como Eva foram alvos da mesma tragédia, onde Eros estabeleceu o seu reinado de desejos. Os dois mitos revelam o impasse vivido por Adão frente ao Criador, o seu silêncio de culpa e de espanto pela explosão do seu ímpeto libidinoso, e há quem veja nesse sentimento um indício de incesto, já que Adão se deitou com aquela que é a Mãe dos Homens. Nesse ponto em comum, Lilith e Eva aparecem como as duas faces de uma mesma mulher – a indomada e a domada, embora ambas tenham sido o veículo do triunfo da “tentação”.
De volta à relação Adão-Lilith, vamos descobrir por que o rompimento se fez inevitável, conforme narram as versões aramaica e hebraica do Alfabeto de Ben Sirá (século 6 ou 7).
Todas as vezes em que eles faziam amor, Lilith mostrava-se inconformada em ter de ficar por baixo de Adão, suportando o peso do seu corpo. E indagava: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti ? Contudo, eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual.” Mas Adão se recusava a inverter as posições, consciente de que existia uma “ordem” que não podia ser transgredida. Lilith deve submeter-se a ele, pois esta é a condição do equilíbrio preestabelecido.
Vendo que o companheiro não atendia aos seus apelos, que não lhe daria a condição de igualdade, Lilith se revolta, pronuncia nervosamente o nome de Deus, faz acusações a Adão e vai embora. É o momento em que o Sol se despede e a noite começa a descer o seu manto de escuridão soturna, tal como na ocasião em que Jeová-Deus fez vir ao mundo os demônios. Adão sente a dor do abandono; entorpecido por um sono profundo, amedrontado pelas trevas da noite, ele sente o fim de todas as coisas boas. Desperto, Adão procura por Lilith e não a encontra: “Procurei em meu leito, à noite, aquela que é o amor de minha alma; procurei e não a encontrei” (Cântico dos Cânticos)
Lilith partiu rumo ao Mar Vermelho, lá onde habitam os demônios e espíritos malvados, segundo a tradição popular hebraica. É um lugar maldito, o que prova que Lilith se afirmou como um demônio, e é o seu caráter demoníaco que leva a mulher a contrariar o homem, que solta a “serpente” do instinto e o questiona em seu poder.
Jeová-Deus tenta salvar a situação, primeiro ordenando-lhe que retorne e, depois, mandando ao seu encalço uma guarnição de anjos para tentar convencê-la. Mas Lilith está irredutível e transformada. Ela desafiou o homem, profanou o nome do Pai e foi ter com as criaturas das trevas. Como poderia voltar ao seu esposo? Os anjos ainda ameaçam: “Se desobedeces e não voltas, será a morte para ti.” Lilith, entretanto, em sua sapiência demoníaca, sabe que seu destino foi estabelecido pelo próprio Jeová- Deus. Ela está identificada com o lado demoníaco e não é mais a mulher de Adão.
Acasalando-se com os diabos, Lilith traz ao mundo cem demônios por dia, os Lillim, que são citados inclusive na versão sacerdotal da Bíblia.
Jeová-Deus, por seu lado, inicia uma incontrolável matança dessas criaturas, que, por vingança, são enfurecidas pela sua genitora.
Está declarada a guerra ao Pai.
Os homens, as crianças, os inválidos e os recém-casados, as vítimas prediletas de Lilith, que se cuidem – ela cumpre a sua maligna sorte e não descansará assim tão cedo.
A partir daí, Lilith assume plenamente sua natureza de demônio feminino, cuja sexualidade diabólica se volta contra todos os homens, de acordo com o folclore assírio- babilónico e hebraico.
E são inúmeras as descrições que falam do pavor de suas investidas.
Conta-se, por exemplo, que Lilith surpreendia os homens durante o sono e os envolvia com toda sua fúria sexual, aprisionando-os em sua lascívia demoníaca, causando-lhes orgasmos demolidores.
Ela montava-lhes sobre o peito e, sufocando-os (pois assim se vingava por ter sido obrigada a ficar “por baixo” na relação com Adão), conduzia a penetração abrasante. Aqueles que resistiam e não morriam ficavam exangues e acabavam adoecendo. Por isso Lilith também está identificada com o tradicional vampiro.
Um baixo-relevo datado da época sumeriana ilustra esse demônio com boa dose de mistério. A expressão é impenetrável e provocadora, sobre a cabeça traz quatro serpentes em posição fálica e seu corpo evidencia uma função tenebrosamente sedutora; no lugar de pés aparecem garras, que se assentam sobre uma fera bicéfala. Cada mão segura um amuleto, semelhante ao símbolo da balança, o que denota força, iniciação e justiça. Embaixo, de cada lado, há duas aves que lembram a coruja. O conjunto transmite uma tensão e força demoníaca inquietantes, como se nos estivesse desafiando.
Materializado nessa alegoria, o mito de Lilith dá uma mostra da dimensão conquistada pelo arquétipo do feminino rebelde, que evoluiu sob outras formas, atendendo às necessidades de cada época particular. Trata-se, no fundo, da história da anima negativa, que passaremos a analisar, numa tentativa de reintegrá-la à nossa psique.
Passada a fase dos rituais sumérios e acadianos que visavam esconjurar Lilith, vamos ver o seu arquétipo desafiador brotar entre os egípcios e os gregos, revestidos de um caráter transcendente e religioso. Agora Lilith é a Lua Negra, onde se projeta a imaginação inconsciente do feminino, o lado demoníaco das divindades lunares.
Ishtar (Babilônia), Astarté (hebreus, fenícios e cananeus), ísis (Egito), Cibele (Frigia) são algumas das deusas lunares às quais o homem renderá seu culto.
Mas, se nos ciclos da Deusa-Lua as fases crescente e cheia correspondiam à fertilidade e às bênçãos da natureza, a sua última fase (nova) deixava esse mesmo homem entregue à escuridão; era o retomo da crise do abandono vivida por Adão com a partida de Lilith.
Ao sumir do céu, transformando-se na Lua Negra, esta divindade demonstrava que também tinha um lado maléfico, perturbador.
Na transposição do mito da Lua Negra para o mundo helênico, todo o drama e horror daquele primeiro casal bíblico ganha a intensidade do reconhecimento do nosso demônio interior, como algo que não pode ser dissociado da natureza humana. Isso porque as divindades gregas são tidas como expressões da realidade do mundo, pois trazem em si a “verdade”.
Dentre as personificações do feminino negativo que habitavam o universo psicológico – o inconsciente coletivo grego -, estão Hécate, Circe, as Empusas, as Lâmias, as Erínias, todos seres de irrefreável malignidade, que vinham das profundezas do inferno para espalhar a desgraça e a morte entre a humanidade.
Circe, vivendo num palácio encantado na ilha de Ea, tinha o poder de metamorfosear homens e animais; as Empusas, com um pé de bronze e alimentando-se de carne humana, enganavam suas vítimas assumindo a forma de belas jovens; as Lâmias eram vampiras e de mãe cruel, megera, de outro.
As solicitações do instinto que permaneciam no plano obscuro do inconsciente correspondiam aos valores de dissolução e de morte, que, na verdade, eram o próprio prazer. Portanto, a anima inferior do homem grego não poderia encontrar melhor representação fora da imagem de Hecate. E não podemos esquecer que a mãe, na Grécia, já era vista como uma presença potencialmente negativa na vida do homem, uma vez que lhe dificultava o seu processo de integração viril.
Quem sabe o homem, reconhecendo o poder de gerar a vida que foi concedido à mulher e tendo como marca indelével em seu inconsciente o “abandono” experimentado por Adão (depois simbolizado pela Lua Negra), não se viu inclinado a exorcizar a sua faculdade (dela) para lidar com as forças ocultas? Prova disso é o enorme número de mulheres levadas à fogueira inquisitorial sob a acusação de praticarem a bruxaria. É Lilith afirmando-se em nova roupagem, desta vez levando o seu assombro pela Idade Média. E a bruxa passa a ser o alvo da eterna batalha que o homem trava contra a força instintiva.
Em nenhum outro lugar da era cristã o homem manifestou tamanha obsessão contra o seu erotismo sufocado como nos processos de bruxaria. Ainda mais que a bruxa personificava com grande perfeição todo o ódio que alimentava as perseguições aos heréticos.
No extremo oposto do arquétipo da Mãe bondosa e redentora, pregado pela Igreja, a bruxa situa-se como a fortaleza do pecado, a discípula do mal, um demônio feminino que ameaça constantemente os homens. E seu pacto sinistro lhe dava poderes incríveis, com os quais exercia toda a sua perfídia.
O Malleus Maleficarum, um dos tratados mais completos sobre a bruxaria, publicado na Alemanha em 1486, é um retrato ideal da psi- copatologia de fim do sexual que aterrorizava o homem medieval, sujeito à esterilidade e à impotência pela ação de feitiçarias. É a anima negativa manifestando-se na bruxa com todo o seu furor, e que o sabá celebrava no seu ponto máximo, da mesma forma que Lilith desabafou a fúria do seu instinto sexual entre os demônios do Mar Vermelho.
Fala-se em termos de milhões de mulheres queimadas vivas. Contudo, não se pode afirmar que as bruxas foram banidas deste mundo. Os tempos modernos ainda reservam espaço para elas, e seus encontros são até mesmo noticiados pela imprensa. É claro que seus ritos incorporaram certas mudanças e suas magias perderam muito da sua tintura negra.
E, nas brumas da “noite” do nosso inconsciente, a Lua Negra- Lilith – também se faz presente, após séculos de história inglória.
Nas artes que manifestam os impulsos das esferas subterrâneas da mente, na psicanálise e na psicologia, ou nas análises astrológicas, Lilith se mantém como um desafio: o de reintegrar-nos ao arquétipo total, num profícuo encontro com a nossa parte instintiva tão amordaçada, fazendo evoluir a relação anima-animus.
Lilith ressurge também no espírito dos movimentos reivindicatórios da mulher, fruto do despertar da sua consciência, criando assim novas bases para a associação homem-mulher, onde a supremacia masculina cedeu seu espaço para o equilíbrio consciente.
Encarando-a frente a frente, o homem talvez possa resolver o conflito primordial de Adão com sua primeira companheira, mas não sem a coragem de recuperar e transmutar a sua face oculta, os seus valores de “serpente”.
Só assim Lilith poderá libertar-se do seu milenar encanto e ascender aos céus como uma Lua Branca.
Fonte: Revista Planeta, numer 167, Agosto 86
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