– Um mito das serie do Rei Artur.
Num manuscrito que data do século XVI, The Weddynge of Sir Gawen and Dame Ragnel (Rawlinson C86), aparece um notável poema cavalheiresco onde Sir Gawain compartilha uma aventura com o Rei Artur.
Porém, é o nobre e leal cavaleiro sobrinho do Rei quem deve realizar a façanha suprema, já que, simbolicamente, Sir Gawain é o “alter ego juvenil” de Artur e, como tal, é um agente ativo no ato místico que daria o núcleo à aventura. A tarefa mais crítica e difícil é, então, a que deve executar este valoroso cavaleiro.
O conto narra o seguinte:
Encontrava-se o Rei Artur desfrutando de uma jornada de caça quando, perseguindo um corpulento cervo, afastou-se do resto que compunha a partida.
Logo percebeu que estava sendo observado, e quando elevou sua vista, surgiu à sua frente um cavaleiro fortemente armado.
– “Sejais bendito, Rei Artur. Me fizestes afronta há muitos anos e hei de vingá-la. Vossos dias estão contados.”
O Rei replicou:
– “Vós estais armado e eu só tenho esta adaga. Quem sois vós?”
O misterioso cavaleiro respondeu:
– “Meu nome é Gromer Somer Jouré”.
Ainda que o nome não tivesse significado para o Rei, este havia tocado um ponto importante com respeito aos costumes cavalheirescos, e o cavaleiro teve que ceder algo, com respeito a sua desarmada vítima.
Sir Gromer Somer Jouré fez jurar a Artur que, no ano seguinte, a esta mesma data, ele regressaria a este mesmo lugar, só, com sua adaga de caça como única arma, e trazendo como pagamento de resgate por sua vida, a resposta ao seguinte enigma: QUE É O QUE UMA MULHER MAIS DESEJA NO MUNDO?
O Rei deu sua palavra e regressou a seus cavaleiros.
Não podia ocultar seu abatimento e Sir Gawain, seu sobrinho, percebendo a tristeza no rosto de seu Rei, o levou à parte e perguntou sobre o acontecido.
Passou o tempo e ambos retornaram à corte. O Rei, não obstante a quantidade de respostas, ainda se sentia inquieto. Foi então que se aventurou na espessa floresta de Inglewoode encontrando-se com a bruxa mais feia que ser humano algum haja visto.
Rosto vermelho, nariz sujo e pontiagudo, boca larga, alguns dentes amarelos mal repartidos em ambas as gengivas, um pescoço comprido e magro, ombros pesados e caídos, e como grotesco contraste, montava um cavalo ricamente selado.
Uma horrível gargalhada fez empalidecer o Rei que se sentia estupefato ante tão detestável presença.
– “Rei Artur” – Disse a bruxa. – “Todas as respostas obtidas por vós e por Sir Gawain são erradas. Se não vos ajudar, estarás morto.”
O Rei contestou:
– “Dizei-me a que vos referis e por que minha vida está em vossas mãos e eu vos prometo satisfazer o que queirais.”
A proposta da bruxa deixou o Rei atônito.
– “Quero que me concedais como esposo a Sir Gawain, e os proponho um pacto: se minha resposta não vos salvar a vida, meu desejo será vão; porém, se minha resposta vos salvar, me concedereis ser a esposa de Sir Gawain. Escolheis logo, senão morto sereis.”
E Dona Ragnel, que assim se chamava a bruxa, respondeu:
– “Voltai então ao vosso palácio, e persuadais a Sir Gawain.”
Quando o Rei Artur voltou a se encontrar com Dona Ragnel e lhe comunicou a promessa de seu sobrinho, esta lhe disse então:
– “Senhor, agora sabereis que é o que as mulheres mais desejam de tudo o que existe: A respeito dos homens desejamos, mais que qualquer coisa, ter SOBERANIA.”
Nossa natureza conta com dois arquétipos, o masculino e o feminino. Particularmente, os desequilíbrios de nossa personalidade advêm, em geral, do fato de negarmos dignidade e consciência a uma quarta parte de nossa natureza. O perigo está em colocar a qualidade no lugar errado, erro psicológico e espiritual que cometemos repetidas vezes em nossas vidas pessoais metafísica. Porém, quando um elemento excluído é restituído recebendo seu verdadeiro valor, rapidamente se torna positivo e criativo. [1]
Dona Ragnel, bruxa horrível, é essa parte de feminilidade que possui a natureza masculina e em que, às vezes, por cultura ou educação, não prestamos a devida atenção. Habitamos um mundo onde só parece haver lugar para o masculino, não favorecendo essa sociedade o completo desenvolvimento de nossa natureza; um mundo voraz e competitivo em que os fracos não podem frutificar e em que até as próprias mulheres, através de um mal entendido feminismo, se esforçam por desenvolver desmedidamente suas naturezas masculinas, afogando o que nelas existe de verdadeiro valor.
Continuemos a história:
O Rei Artur, como correspondia a um cavaleiro, se apresentou ao encontro com Sir Gromer Somer Jouré e entregou os livros com as respostas, esperançado de em que alguma delas fosse a correta e assim ficassem livres daquele terrível compromisso ele e seu sobrinho.
– “À fé minha, Rei, que sois um homem morto.”
– “Aguarda Sir Gromer. – Disse Artur. – Ainda tenho uma resposta mais. O que mais deseja uma mulher é que lhe seja outorgada a ‘Soberania’, pois o que mais lhe agrada é poder tomar suas próprias decisões.”
– “A que vo-lo contou. – vociferou Sir Gromer com uma fúria incontível – peço a Deus que a possa ver ardendo em uma fogueira porque foi minha irmã Dona Ragnel, aquela velha bruxa. Deus a confunda… pois do contrário eu haveria podido subjugar-vos… Tenhais muito bons dias.”
Ao alívio que experimentou Artur, seguiu-se uma grande tristeza. Porém Sir Gawain se comportou com cortesia e se apresentou ao casamento da maneira mais viril.
– “Louvado seja Deus! – Disse Dona Ragnel. – Por consideração a ti quisera ser uma mulher formosa, porque tua vontade é muito boa.”
Realizou-se a boda com missa e banquete, e a noiva esbanjou grosseria e mau gosto a ponto de todos se lamentarem e se compadecerem de Sir Gawain por haver tido que se sacrificar unindo-se àquele ser demoníaco.
Esta noite, no leito, Sir Gawain jazia de costas para sua consorte. Mas logo ela lhe disse:
– “Ah, Sir Gawain! Visto que sou casada convosco, mostrai-me vossa cortesia no leito. Se eu fosse formosa não vos comportarias dessa maneira. Não fazeis conta nenhuma do laço conjugal. Por consideração a Artur, beijai-me pelo menos. Rogo-vos, fazei-lo por mim. Vamos, mostrai o apaixonado que podeis ser!”
Sir Gawain, fazendo gala de sua gentileza, respondeu:
– “Farei mais que isso, juro por Deus.”
E se voltou para ela. E viu que era a mulher mais formosa que jamais pudera imaginar.
– “Por Jesus Cristo! – Disse o jovem. – Quem sois?”
E Dona Ragnel respondeu:
– “Senhor, sou vossa esposa.”
– “Ah senhora minha! Sou muito digno de reprovação. Mas agora vos mostrais tão formosa quanto hoje fostes a ser mais feio já contemplado. Que sejais assim, senhora. Me agrada muito.”
– “Que escolha difícil! – respondeu Sir Gawain. – Quisera escolher o melhor; sem dúvida, não sei que dizer. Querida senhora, que seja como desejais, deixo a escolha em vossas mãos. Meu corpo, meu coração e todo o mais são vossos para fazer deles o que queirais: tomaí-los ou deixaí-los; assim o juro ante Deus!”
– “Ah, louvado seja Deus, cortês cavaleiro! – disse a Dama muito animosamente. – Bem aventurado sejais entre todos os cavaleiros do mundo, porque agora fiquei livre do encantamento e me tereis formosa e atraente de dia e de noite.”
E então Dona Ragnel contou a Sir Gawain de que maneira sua madrasta a havia encantado mediante as artes da magia negra, e como a havia condenado a permanecer sob esta repugnante figura até que o melhor cavaleiro da Inglaterra se casasse com ela e lhe transferisse a “Soberania” de todo seu corpo e seus bens.
– “Assim foi como me deformou. – disse Dona Ragnel. – E vós, senhor cavaleiro, que me haveis dado sem condições a ‘soberania’, beijai-me agora, beijai-me e alegrai-vos, vos rogo.”
E então, cheios de alegria, desfrutaram sua felicidade.
Se a feminilidade, como mostra esta simpática história, é levada a exibir sua parte mais horrenda, o melhor que um homem pode fazer é comportar-se com cortesia e manter o respeito. Essa seria a maneira de restituir eficaz e rapidamente uma feminilidade tenebrosa e horrenda à sua beleza natural e verdadeira. É uma maneira de aprender a relacionar-se com o lado feminino interior, de tanta importância para o homem, a fim de poder manter sua integridade e, assim, jamais perder sua meta.
A feminilidade é uma parte tão básica quanto fundamental para nossa humana personalidade. Robert A. Johnson assinala que este princípio feminino pode ser relegado por um tempo, a fim de que a masculinidade possa consolidar os valores que lhe são próprios, porém, uma vez que a evolução masculina esteja assegurada, cedo ou tarde retorna a tomar o lugar que, por direito de evolução, lhe corresponde. A alma humana, melhor informada que o intelecto, não suporta o predomínio de um princípio sobre outro.
Poderíamos agregar que o misterioso cavaleiro irmão de Dona Ragnel, o tenebroso Gromer Somer Jouré, simboliza a metade masculina de nossa psique que tem perdido todo contato com este princípio feminino de que estamos tratando.
Poder sem amor torna-se brutalidade. Sentimento sem força torna-se sentimentalismo melodramático.
Há um princípio patriarcal dominante que sempre se recusa a fazer as pazes com o princípio feminino de nosso interior. Karl Gustav Jung sustenta que quando nos recusamos a integrar uma potencialidade do inconsciente, este reage de alguma maneira. Pode explodir em nossa personalidade em forma de neurose, compulsão, hipocondria, obsessão, doenças imaginárias etc, o que, aos poucos, nos irá paralisando na medida em que não integramos o potencial da parte feminina.
Porém, acontece que às vezes por educação ou por tendência cultural, não sabemos como tratar a questão e como aprender a considerar o feminino, então tentamos viver o lado feminino de maneira compulsiva, comemos e bebemos em demasia, permitimos que os humores se apoderem de nós, sofremos dores de cabeça e muitas outras complicações.
Se tratássemos nossa parte feminina com mais consciência (e isto vale também para a mulher de nosso machista século XX), muitas doenças desapareceriam, incluindo aquelas que se transformam em flagelos sociais como o câncer, para dar um único exemplo.
Precisamos ter mais tempo para caminhar ao sol, para observar as cores da terra, respeitar nosso corpo físico, despertar para a poesia e a música, ser mais corteses e solidários, demonstrar afeto àqueles que estão a nossa volta, sejam familiares ou amigos, tal como o assinala Robert A. Johnson.
Em todo ato da vida humana, se não se outorga à feminilidade o lugar que por direito natural lhe corresponde, nossas ações inevitavelmente cairão no fracasso. Nada pode prosperar de maneira incompleta.
Em outras aventuras de Sir. Gawain como, por exemplo, a que lhe tocara viver no Castelo Maravilhoso, se narra como principal encontro o que tem com uma “cama prodigiosa”. Essa cama, longe de ser um móvel plácido onde se poderia repor forças graças a um prazeroso descanso após uma jornada plena de aventuras, repentinamente “enlouqueceu”. Começou a galopar de um lado para outro da habitação, saltou, esperneou-se, bateu-se contra as paredes e fez um interminável esforço para tirar de cima seu ocupante. Parecia não tolerar o cavaleiro que a possuía havendo confiado em sua tranquila aparência de disponibilidade.
Porém o herói se manteve com paciência e firmeza e a cama finalmente cedeu. Mas, longe de consolidar-se a paz, através das cortinas da cama caiu sobre o cavaleiro uma chuva de pedras e flechas lançadas por mãos e arcos invisíveis.
Sir Gawain teria morrido se não houvesse escutado o barqueiro (o qual o levara até essa ilha encantada em que se encontrava um misterioso castelo) quando lhe aconselhou não tirar a armadura no momento que se dispusesse a descansar. E pôde, assim, salvar-se se protegendo com seu escudo.
Porém, a insaciável feminilidade do “Castelo das Mães”, longe de apaziguar-se, submeteu o cavaleiro a um novo desafio. Abrindo a porta da habitação, apareceu um terrível leão que com um feroz rugido se lançou sobre o fustigado paladino. O real animal submetia o valor e a intrepidez do herói a uma prova tão perigosa como terrível. Mas Sir Gawain deu morte ao agressor e, depois, ferido e exausto, caiu sobre o corpo inerte do leão. Porém a prova havia sido superada com êxito.
Essa vitória permite o acesso à plenitude da consciência equilibrada, a conciliação dos opostos em sua personalidade e a libertação de toda unilateralidade que obstrui qualquer experiência e qualquer expressão desta realidade única chamada vida.
Quando Sir Gawain e Sir Lancelot lançaram-se a resgatar à rainha Gwinwifar das garras de Sir Meleagant, tiveram também que passar por provas desse tipo na segunda noite, quando se alojaram em uma torre em frente à cidade, onde os deixara o anão da carroça (Le Chevalier de la Charrette).
A donzela da torre os conduziu a suas camas a fim de que pudessem descansar. Porém havia uma terceira cama, mais suntuosa e confortável que as outras duas.
– Nela – disse a donzela – não dormiu jamais alguém que não o merecesse.
Mas Lancelot, longe de acovardar-se, desnudou-se de imediato e deitou-se. À meia noite aconteceu um prodígio: misteriosamente, do teto da cama caiu uma lança que por pouco atravessa o flanco do cavaleiro. Seus bons reflexos evitaram a desgraça e só sofreu um arranhão. Porém nela estava amarrada uma bandeira em chamas. Então a cama inteira pegou fogo, no entanto o herói, sem levantar-se dela, conseguiu apagá-lo e, tomando a lança, a arremessou longe de onde estava a cama.
Logo voltou a deitar-se e retomou o sono.
Em todos os casos o símbolo se repete e seu significado sempre esta se referindo à conquista do princípio feminino.
Francisco A. Taboada