Por: Lucien de Angelis

1. APRESENTAÇÃO

Mitos que envolvem a realização dos mais altos anseios religiosos estão continuamente presentes em histórias e lendas.

Os elementos que compõem esses mitos normalmente aparecem na forma de heróis fantásticos, viagens por enigmáticos mundos desconhecidos, longa jornada de aprendizado, dificuldades, perseguições, enfim, todo um aparato de símbolos e ideais dispostos de modo grave, cuja proposição visa causar um certo impacto e o necessário trauma em nossa consciência.

Isso parece ser necessário para que, ao final, possamos realizar os aspectos internos a tudo aquilo exposto e prometido através das fábulas e das aventuras. Os mitos – e mesmo aqueles equivocadamente tomados como fatuais verdades – podem ser entendidos como possuidores de um propósito único, qual seja, através de um drama, expor certos mistérios que promoverão uma alteração no estado mental do observador, dando condições para que se processe algum tipo de crescimento na humanidade como um todo, aprimorando sua consciência e, assim, galgar uma possível melhoria deste mundo em que vivemos.

Visto isso, passemos agora à uma pequena investigação, de cunho parcialmente histórico e filosófico, sobre uma das aventuras que mais chamam a atenção dos assim chamados “Estudantes dos Mistérios”.

A palavra chave da aventura que agora apresentamos é Rosacruz.
Dita de modo solto ou mesmo indiferente, essa palavra simples tem o poder de despertar abrasadoras paixões e intensos sonhos. Tal é a carga histórica, mística e filosófica que o termo Rosacruz carrega, que não é raro também encontrar aqueles que nele depositam as tendências de tudo o que hoje em dia se convencionou chamar de oculto ou “esotérico”.

Porém, qual a ancestral origem do termo? Seria o insondável continente Atlante? E seu verdadeiro significado? O que significa ser um Rosacruz? Terão os Rosaçruzes todos os poderes e as faculdades divinas a eles atribuídas?

Certamente, responder taxativamente a todas esses questões com um entusiasta “Sim!” seria a pretensão maior de qualquer ensaio com tendência sensacionalista ou, no mínimo, com queda pelo extravagante. Entretanto, pensamos ser mais útil ao espírito humano, ao conhecimento e ao bom senso, fazer uma rápida investigação histórica e tentar nos acercarmos daquilo que de mais concreto existe sobre o mito rosacruciano. Deste modo poderemos entender tanto sua origem quanto as hipóteses que serviram de argumento para o advento do movimento Rosacruz.

Acreditamos que esse será um bom modo de nos aproximarmos da compreensão da fantástica Aventura Rosacruz, pois não só possibilitará rechaçar os bem conhecidos apelos e excentricidades que o vocábulo atualmente sugere, como também porque permitirá não esquecer que, oculta em sua própria expressão, a Rosacruz – isso é fácil de se admitir – ao escapar da própria história que a sustenta, pode ter se transformado em um misterioso símbolo, cujo real significado, parece mesmo pertencer a cada um de nós.
 
 

2. ORIGENS:

A primeira dificuldade que o termo Rosacruz trás está relacionada com o montante de material para pesquisa. Ele é vastíssimo. Contudo, tanto para a horror do pesquisador com moderado senso crítico quanto para o delirante deleite das mentes menos afortunadas, esse material, como enfaticamente afirmado por Yates, é imprestável em sua grande maioria.

Mas, se a primeira dificuldade está justamente na qualidade do material para pesquisa, seguramente um dos pontos mais polêmicos do estudo dessa matéria, diz respeito a origem da Rosacruz.

 Alguns são enfáticos na fantástica afirmação de que ela tem suas raízes no antigo Egito por volta de 1500 a.C., na XVIII Dinastia, na época de Thutmosis III, considerado um dos maiores faraós de toda a história egípcia.
Segundo esses mesmos autores, algumas décadas depois, Amenofis (ou Amenhotep IV), também conhecido por Akhenaton, teria sido iniciado nos mistérios da irmandade esotérica organizada por seu predecessor, Thutmosis III. O então iluminado Akhenaton, inspirado pelos novos ensinamentos e mistérios, adotaria o regime monoteísta de religião, com seu culto ao Deus único Aton, dando início a um novo áureo tempo à civilização egípcia. Certos autores vão ainda além, afirmando ou insinuando que o próprio faraó Akhenaton teria sido, nada mais nada menos, que o fundador da Rosacruz.
 

 

Akhenaton
Muito embora existam os que considerem o faraó Akhenaton um iluminado, etc, a história não é lá muito cortês com sua pessoa. Alguns historiadores apenas o citam como tendo sido um militar totalmente fracassado, responsável pela ruína de parte de seu império; outros o têm como um alienado, cujo delírio monoteísta o levou a viver “isolado enquanto o reino mais antigo do mundo ruía desgovernado, esquecido e muitas vezes revoltado”.

Provavelmente a verdade sobre o desempenho de Akhenaton à frente do império egípcio esteja em algum ponto entre esses dois pólos, mas não caberia aqui essa investigação. Entretanto, tenham sido ou não grandes nomes para o antigo Egito, não existe sequer um confiável argumento histórico (seja na história oficial ou não) que comprove a fundação da Rosacruz por algum faraó, ou mesmo que ponha a origem dessa fraternidade nas terras banhadas pelo Nilo.

Contudo, não podemos deixar de dizer que, como indicado por tantos autores, parece existir um conhecimento perene e ancestral que acompanha o ser humano em sua escalada evolutiva. Sendo assim, é possível supor que este conhecimento, que foi preservado através dos tempos e das civilizações, estivesse presente em nosso mais remoto ancestral, e quiçá antes dele. Deste modo, não seria de todo absurdo supor que o sistema de pensamento e a filosofia rosacruciana fizessem parte de um todo maior, cujas raízes se fundem na antigüidade da própria tradição oculta ocidental.

Ao que tudo indica, a própria origem do termo rosacruz está no nome de um certo, Cristian Rosenkreutz, personagem principal de uma das lendas mais notáveis que a imaginação do homem concebeu, que teria vivido nos séculos XIV e XV.

 

Cristian Rosenkreutz
A despeito de qualquer origem fantástica que possamos atribuir à Rosacruz, atualmente existem duas hipóteses que a pesquisa indica como sendo as mais prováveis. Ambas têm raiz nos bem conhecidos manifestos rosacruzes lançados na Europa a partir da segunda década do Século XVII.

O primeiro desses três manifestos levava o título (abreviado) de Fama Fraternitatis, aparecendo impresso por volta de 1614 em uma pequena cidade chamada Cassei, na Alemanha. O segundo manifesto, conhecido de modo genérico por Confessio, viria à luz no ano de 1615, simultaneamente em Cassei e Frankfurt. O terceiro e último manifesto, As Bodas Químicas de Cristian Rosenkreutz, foi levado a público em 1616, publicada em Estrasburgo.

Vale lembrar que, quando do aparecimento público desses três manifestos, sua autoria não era conhecida. Apenas alguns anos depois – como veremos mais à frente – é que apareceria um suposto autor para o terceiro dos manifestos, as Bodas.

Porém do que tratavam esses três documentos?

O primeiro deles, Fama, apresenta a vida do fundador da Fraternidade Rosacruz, o monge Cristian Rosenkreutz (Irmão C.R.), nascido na Alemanha em 1378, e sua viagem à terra sagrada. Durante a sua jornada, o Irmão CR, após a morte de seu companheiro de senda, se desvia de seu itinerário original e chega a Arábia, onde o então jovem monge passaria a receber misteriosas instruções secretas. De posse desse conhecimentos Rosenkreutz volta à Europa com o intuito de tornar público o seu novo saber. Após uma série de dificuldades, Rosenkreutz é rejeitado. Voltando para a Alemanha, ele é ajudado por quatro Irmãos na tradução do misterioso Livro “M”, cujo conhecimento deveria ser mantido em segredo até que a humanidade estivesse devidamente preparada para recebê-lo.

Assim, é criada a Fraternidade Rosacruz, com o intuito de manter o conhecimento daquele grupo de Iniciados.

A Fraternidade Rosacruz, segundo a concepção de seus primevos criadores, funcionaria tendo os seguintes seis preceitos e regras básicas, a serem estritamente observados:

• Estavam proibidos de exercer qualquer profissão, a exceção daquela que curaria os enfermos, e isso a título de caridade.

• Não deveriam usar trajes que os distinguissem da população local, como acontecia com o clero e ordens religiosas, mas antes, deveriam passar como se fossem habitantes dos locais onde eles estivessem.

• Todos tinham a obrigação de estar presentes em um dia previamente marcado, denominado de “Dia C”, primeira aparição na sede do Espirito Santo, onde todos os rosacruzes deveriam se reunir, anualmente. No caso de impossibilidade, explicar por escrito o motivo da ausência.

• Cada Irmão Rosacruz deveria procurar e, no caso de encontrar, informar a existência de pelo menos uma pessoa de valor que pudesse sucedê-lo, quando necessário.

• As Letras CR seriam o selo maior de reconhecimento.

• A Confraria deveria permanecer oculta por pelo menos um século.

Todos os Irmão Rosacruzes daquela época juraram absoluta fidelidade a esses seis preceitos.
 

 

Em suma, além da jornada do Irmão CR  e da organização da Fraternidade Rosacruz, o  Fama expõe a situação do mundo naquela época, apresentando os propósitos da Fraternidade e, por fim, os objetivos a serem alcançados através do  conhecimento obtido e ensinado. primeiramente por Rosenkreutz.

O terceiro documento Rosacruz era o maior entre todos estes até aqui apresentados. As Bodas Químicas de Cristian Rosenkreutz narrava, de forma alegórica e fantástica, o suposto casamento alquímico – do fundador da Fraternidade, quando este já contava com oitenta e um anos de idade. Rosenkreutz, teria ficado durante sete dias inteiramente absorvido por um enlace místico repleto de visões, jornadas ritualísticas e representações enigmáticas.

Estes três pequenos livros foram o suficiente para causar um alarde sem igual em toda a Europa do século XVII. A cada aparição de cada um destes documentos, a fértil imaginação setecentista era tomada de assalto por um crescente desejo comum de busca pela tão estimada e invisível fraternidade criada por Cristian Rosenkreútz. Porém, onde a encontrar?

Como resultado de toda euforia rosacruciana, vários foram aqueles que tentaram estabelecer contato com esses Iniciados.

Como conseqüência imediata desta frenética busca, um grande número de obras foram editadas, sempre tendo como base os manifestos rosacruzes. Nomes como Michael Maier e Robert Fludd apareciam como admiradores das doutrinas rosacruzes.
 

 

Robert Fludd
O próprio Maier, que na época já era uma figura de destaque em toda a Europa, se transformaria em um dos mais fervorosos defensores dos Rosacruzes. Durante esse período, uma série de organizações também teriam a sua vez nos anos que se seguiram a publicação dos primeiros manifestos rosacrucianos.
 

 

Michael Maier
O mito Rosacruz estava finalmente estabelecido.
 
 

3. A ROSACRUZ: FATO OU FANTASIA?

Após examinar o entusiasmante conteúdo dos manifestos, é natural que muitas questões despontem na mente do estudante que se aventura na pesquisa do símbolo rosacruciano.  Dessas tantas intrigantes  questões, provavelmente, duas  assumem o caráter decisivo no processo de interação dos fatos  que os envolveram. Assim,  todos perguntarão: quem, na  verdade, é o responsável pela  descrição da saga do Irmão  CR, e quem escreveu os três  manifestos? E a Ordem  Rosacruz em si, seria  puramente uma alegoria, um  mito, uma fantasia, ou seria de  fato o fruto de uma incrível  realidade mágica, que poderia  estar ao alcance de qualquer um?

Para essas vitais questões sobre a realidade ou não do advento Rosacruz, nós provavelmente não teríamos nenhum indício de resposta, caso não fosse encontrado na autobiografia de Johann Valentin Andreae uma declaração, com ares de confissão, de que teria sido ele o autor das Bodas, escrita em 1605, bem antes de sua publicação, quando Andreae contava com apenas dezenove anos de idade.

Alguns pesquisadores e especuladores, tendo esse dado como única base concreta em todo o material de pesquisa, vão mais além, afirmando que o próprio Andreae, não só era o responsável pelo Bodas, mas também teria escrito tanto a Fama quanto a Confessio.

Com esse novo personagem, uma outra questão desponta: quem foi Johann Valentin Andreae e qual o seu papel nessa história?
 

 

 Andreae nasceu em 1586, no estado luterano de Württemberg. Sua  família, tradicionalmente de origem católica, teria se convertido ao protestantismo, sendo que o seu avô, Jacob Andreae, fora um dos primeiros expoentes e pioneiro da reforma luterana, chegando a ser conhecido como “o Lutero de Württemberg”. Nascido em berço protestante, Andreae, através de seu pai, também logo tomaria conhecimento do simbolismo alquímico, matéria de enorme interesse para o meio erudito da época. Após a morte de seus pais, Andreae , se estabelece em Tubinga.

Nessa época, na passagem do século XVI para o século XVII, a Europa, ainda agitada pelas conseqüências promovidas pela reforma luterana, vivia em meio a toda ansiedade provocada por um sem número de pequenos grupos independentes, os mais variados possíveis, que acalentavam sonhos reformistas a procura da sociedade ideal.

Normalmente, esses grupos eram formados por idealistas, filósofos, e, de modo geral, por pessoas bem instruídas e inteligentes. Andreae veio a participar de um desses grupos, que ficou conhecido pelo nome de Círculo de Tubinga.

Este Círculo teria fundamental importância na formação dos ideais do jovem Andreae, sendo creditado a este movimento, o alicerce dos belos ideais apresentados na forma dos três manifestos rosacruzes.

 Alguns anos mais tarde, porém, em sua autobiografia, Andreae renegaria totalmente não só a versão fatual da saga do místico Cristian Rosenkreutz, como também afirmaria que tudo aquilo concebido como sendo “rosacruz” não  passava de um grande  “ludibrium”, propositadamente  elaborado e sem nenhuma  fundamentação histórica.

Não se sabe ao certo se essa “confissão” de Johann Valentin Andreae fora movida por um repentino senso de honestidade e consciência ou versão essa preferida pela maioria dos estudantes tivesse como sua causa a violenta reação e a forte pressão que a Igreja Católica exerceu diante da possibilidade Rosacruz e sobre muitos grupos com tendências reformistas.

Então, conhecidos os três manifestos, sua suposta origem e autor, como também algumas razões do aparecimento público de uma suposta organização secreta, como dito anteriormente, duas tendências principais são estabelecidas:
A primeira aponta para uma decisiva negação de toda a lenda, a demanda e a própria existência do ilustre Irmão Cristian Rosenkreutz, artífice místico da Fraternidade Rosacruz. Para os defensores desse ponto de vista, partindo do princípio que o próprio autor, dos três manifestos que dão sustento a toda a saga Rosacruz, faz uma pública retratação, afirmando que tudo nãop passou de um “trote”, um engodo desnecessário, então tudo aquilo que de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, está relacionado ao tema, tudo, absolutamente tudo, é falso, não merecendo, inclusive, sequer comentários.

Muitas vezes, aqueles que adotam a postura acima são enfáticos em afirmar que tudo não passava de uma “farsa” protestante mal articulada.

Até mesmo o nome Rosacruz seria de origem protestante, pois teria vindo das insígnias de Lutero, afinal, ali era encontrada uma rosa. Também é feita uma associação entre o Brasão da família Andreae com o mote Rosacruz, visto haver ali algumas rosas e também uma cruz…

A segunda hipótese, sob certo ponto de vista histórico bem menos rígida que a outra, agrada muito mais a mente especulativa e romântica, pois vem endossar a idéia de que realmente existiu uma Fraternidade Rosacruz.

Nesse caso, a Fraternidade Rosacruz consistiria de uma ordem oculta às mentes profanas, que trabalhava em total segredo, visando a evolução do ser-humano e da sociedade que o nutria. Essa Ordem, cujos Iniciados estariam habilitados a se reconhecer mutuamente sem despertar a atenção do cidadão comum, era invisível e, embora praticamente inacessível ao vulgo, teria a capacidade de reconhecê-lo e o poder de contata-lo, com o propósito de que essa feliz alma ingressasse em suas fileiras, caso a mesma estivesse em sublime conformidade com os nobres ideais divulgados nos manifestos. Uma vez por ano, os Iniciados desse Colégio Invisível, se encontrariam em um misterioso local, com o objetivo de, através da troca de experiência, aumentar ainda mais o conhecimento de cada um deles.
 Porém, mesmo  conhecendo essas duas hipóteses, certamente inteiramente opiniões  contrárias em conhecimento, metas e sentimento, não seria difícil ventilar, mesmo que também no campo das hipóteses, ainda uma terceira possibilidade para toda a Aventura Rosacruz.

E esta nova suposição, apreciada pela alma que anseia o mistério e bem tolerada pelo espírito crítico, possivelmente trará luz a ambos.

Talvez o problema não seja crer ou não crer na Aventura Rosacruz, mas entendê-la. Talvez a solução para o enigma não esteja meramente no cego aceitar de uma lenda sem fundamentação fatual, mas também ele não estará em um frio parecer histórico condenando toda a alegoria.

Porém, podemos tentar absorver seu significado mítico.

Assim, talvez seja de bom grado se pudéssemos entender todo o processo que compreende a alegoria rosacruz: a vida de seu suposto criador e mentor, Frater CR; sua longa jornada em busca de um conhecimento superior, com os sábios do Oriente distante; o retorno a sua terra natal, na tentativa de organizar uma augusta Fraternidade que brindaria a humanidade com dias mais gloriosos; etc. Tudo funcionaria como um mito, ou um rito, a ser realizado no íntimo de todo estudante.

Afinal, é difícil supor existir alguém que, uma vez tendo a chance de examinar, mesmo que de relance, a epopéia de heróis fantásticos, não tenha se sentido inclinado a imaginar-se na pele do herói observado.

E quanto a aventura Rosacruz, bem, ela parece continuar…

E que assim seja.

Publicado também na Revista
Safira Estrela, número 6
Março de 1998
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