image7AFA ideia de uma alquimia dos corpos, que hoje começa a ser sugerida a
propósito das sempre crescentes capacidades de manipulação das tecnociências
biomédicas (Rifkin, 1998), nada tem de metáfora casual ou fortuita. Com
efeito, não só a tradição alquímica privilegiou a manipulação dos corpos com
as escassas possibilidades que então lhe conferia a técnica pré-moderna,
como foi a memória viva dessa ambição transformadora que enformou o
imaginário que conduz boa parte das explorações da biotecnologia
contemporânea.

O legado da alquimia às ciências actuais encontra-se bem estabelecido desde
há muito. Serge Hutin (Hutin, s/d) e Mircea Eliade (Eliade, 2000) adiantaram
na sua época, o que de essencial havia no contributo, para a moderna
ciência da natureza, das efectivas práticas alquímicas, mais do que do
pensamento hermético que as instruía. Abundam exemplos de técnicas e
instrumentos de laboratório, medicamentos de base mineral, que os
alquimistas legaram aos futuros físicos, químicos e médicos.

O sempre citado caso de Newton, tratado por inúmeros outros autores, ilustra
de maneira irretorquível as continuidades que, paralelamente às rupturas,
também moldaram a revolução científica moderna, ao contrário do que
pretendem as narrativas que desavisada ou candidamente sublinham os hiatos e
as descontinuidades radicais entre a ciência antiga, distorcida pela
superstição e o empirismo ingénuo, e a ciência moderna, finalmente
transfundida pela razão.

O que explica o aparente paradoxo de Newton, um dos fundadores da moderna
ciência da natureza, persistir em se entregar a experiências alquímicas, de
que deixou relatos minuciosos nunca publicados e redescobertos já só no
século XX, é algo que a historiografia clássica da ciência sempre teve
dificuldade em entender. Na verdade, Newton partilhava a ideia, comum entre
os cientistas modernos, de que a nova ciência laboratorial tinha por missão
aprofundar e alargar em novas condições técnicas e teóricas as antigas
receitas alquímicas. Ou seja, a nova ciência tinha sobre a alquimia uma
pretensão de eficácia, perseguindo o mito de uma verdadeira alquimia com a
ambição de ter êxito onde a sua antecessora falhara. O que a ciência
matemática da natureza traz para a oficina alquímica é, com o método e o
aparato experimental, a teoria que passa doravante a conduzir a
experimentação onde antes reinava a filosofia hermética. De resto, as
concepções alquímicas não se podem reduzir a meros obstáculos
epistemológicos à irrupção da nova ciência. Uma vez mais, Newton fornece o
grande exemplo, se bem que também aqui se possa alinhar a leitura
neoplatónica que Galileu faz da sua ciência, a qual não é apenas o recurso
possível à única autoridade reconhecida susceptível de ser aduzida em favor
da nova ciência contra a autoridade aristotélica da ciência medieval, mas
antes se insere na revivescência do pensamento platónico na Renascença, o
qual irá também pervadir a alquimia renascenista.

Com efeito, os alquimistas são os únicos a manter acesa a chama da
experiência de laboratório, ainda que, é certo, ela não seja experimentação
matematicamente conduzida, contra a ciência académica baseada na autoridade
livresca. Mas será precisamente a afinidade entre a filosofia hermética,
enquanto conhecimento iniciático da estrutura oculta do universo, e o
conhecimento matemático, enquanto mathesis universalis, conhecimento do
livro da natureza escrito em caracteres matemáticos e contraditório com as
evidências empíricas, que permitirá a Galileu, primeiro, e a Newton, depois,
conceber um deus ex machina, grande engenheiro universal, e o conhecimento
científico como revelação de um conhecimento oculto, a teologia da revelação
primordial oculta que um Newton nunca rejeitou. O estatuto epistemológico
que ambos Galileu e Newton reservam para o conhecimento matemático, plasmado
pelo neoplatonismo renascentista que também pervadia a alquimia da época,
reconcilia assim a nova ciência da natureza com a teologia. Mas a
interpenetração da alquimia e da ciência experimental da natureza irá ainda
mais longe.

A dimensão emancipadora e utópica da ciência moderna irá beber na anterior
vocação da alquimia de renovatio universal que passava pela mudança de todas
as instituições religiosas, sociais e culturais cujo primeiro e
indispensável passo era, precisamente, o da reforma da própria ciência em
que homens como Newton se encontravam já empenhados. Já os alquimistas
entendiam a criação divina do universo como um gigantesco processo químico
que os fenómenos terrestres e celestes, incluindo os fenómenos do
microcosmos do corpo humano, mais não faziam que reproduzir nas proporções
que são as suas.

Nesta conformidade, o opus alchimicum é encarado como a continuação do
projecto divino, outorgando ao homem criador a faculdade de regenerar e
aperfeiçoar a obra do supremo demiurgo. A ciência moderna herda directamente
da alquimia esta incumbência de prosseguir por meios humanos a obra divina,
isto é, o controle dos fenómenos naturais, incluindo os relativos à
conservação da saúde humana, até à promessa da eterna juventude e mesmo da
imortalidade. A teologia optimista de Teilhard de Chardin constituiria a
derradeira florescência deste pensamento, mas de que faz inegável eco a
versão, plenamente laicizada, que dele dá a narrativa positivista de um
progresso científico cumulativo, linear e indefinido e cuja máxima expressão
é a religião da humanidade comteana. Aliás, o ideal de uma missão de cultivo
de um saber oculto aos não iniciados e de magistério de influência sobre as
instituições e as pessoas, reservada a uma elite de eleitos, herdá-la-á da
alquimia mística a tradição maçónica. Só com a tecnociência moderna se
secularizou a manipulação da natureza, doravante destituída de valor
intrínseco, matéria prima ao serviço dos fins humanos em lugar de cosmos
ordenado e limite normativo do labor humano, o qual, por sua vez, se vê
privado do seu antigo carácter litúrgico e religioso.

A vocação utópica da ciência moderna bebe pois na fonte alquímica, facto que
começa por lhe conferir um carácter religioso, para, posteriormente, já numa
fase de secularização adiantada, habilitar a ciência a apropriar à sua conta
a dimensão de controle social que dantes era privilégio da religião. Neste
sentido, será o próprio sucesso da revolução científica moderna a erodir o
ideal que inicialmente o tinha orientado em mentes como a de Newton e que as
narrativas da historiografia da ciência moderna longamente prevalecentes
denegaram como a pudenda origo sobre a qual haveria que lançar um manto de
discreção e reserva.

Autores mais recentes, como Pierre Laszlo (Laszlo, 1996) e Philippe Breton
(Breton, 1997), esmiuçaram ainda os modos pelos quais o contributo também
passou pela conceptualização – conceitos, terminologia e simbologia – e, no
caso de Breton, especialmente pelo imaginário que inspira a prossecução das
biotecnologias aplicadas ao humano, sobretudo nos domínios da genética e da
vida artificial. Efectivamente, os mais recentes desenvolvimentos das
tecnociências da vida vieram lançar uma luz inédita sobre os arquétipos que,
a partir de estratos arcaicos, continuam a enformar o nosso imaginário da
manipulação do vivo.

O que já se sabia para a química, que as práticas alquímicas estão em linha
recta na linhagem que leva à emergência da ciência química, descobre-se
agora, e reforçadamente, a respeito das biotecnologias: que, desta vez
muitíssimo mais que as práticas alquímicas de outrora, são as concepções
arquetípicas que as instruíam que hoje reencontramos a moldar e a conduzir a
engenharia genética. Em palavras mais simples: o que o nosso mundo
tecnocientífico se propõe fazer com o vivo em geral e os corpos humanos em
particular exibe inegáveis afinidades, ao nível do imaginário que lhe molda
os interesses cognitivos, com os sonhos alquímicos de uma Medicina universal
 

A Medicina universal era, juntamente com a ars magna, ou grande obra, um dos
aspectos em que se desdobrava a alquimia prática, a qual, por sua vez, mais
não era que a aplicação da alquimia teórica, expressa na filosofia hermética
A alquimia prática incluía a procura da pedra filosofal, que tinha o poder
de transmutar os metais vis em metais nobres, ouro e prata, sendo esta a ars
magna; por sua vez, da liquefacção da pedra filosofal resultavam a panaceia
universal, que permitia a reconstituição da saúde e a regeneração do corpo,
e o elixir da longa vida, que possibilitava prolongamento da vida e a
conservação de um estado de eterna juventude, a tanto correspondendo a
Medicina universal.

O Renascimento irá acrescentar outros poderes àqueles que na alquimia
medieval se atribuíam à pedra filosofal e, sobretudo, dois temas: o do
Alkaest, um solvente universal capaz de dissolver todos os corpos, e o
homúnculo, um ser humano artificial, cujo grande divulgador será Paracelso,
na sua obra De natura rerum. Por seu lado, o tema de uma criatura humana
artificial teve também a sua contrapartida na tradição alquímica judaica,
com o golem. São estes que nos interessam aqui essencialmente.

Uma interpretação mística dos processos de depuração alquímica conducentes à
obtenção da pedra filosofal pretende que estes mais não fazem que alegorizar
as sucessivas purificações do ser humano na demanda do conhecimento total. A
pedra filosofal aludiria assim, em última instância, ao processo de
transformação do próprio homem rumo à perfeição, a iniciação que faz
renascer e ressurgir espiritualmente, tal como os organismos vivos renascem
da matéria putrefacta, e de que a grande epítome é a Fénix renascida das
suas próprias cinzas. O iniciado apresenta-se deste modo como aquele que
superou a sua condição humana de origem como obra maior da transmutação
alquímica. Enquanto que a obra física se exerce exclusivamente sobre a
matéria, na obra mística é o ser espiritual que há que transformar,
consumando-se deste modo o poder ilimitado do espírito sobre a matéria. O
modelo aqui presente é o do deus que morre e ressuscita, garantindo com isso
a regeneração da humanidade e do mundo, mito já presente nos mistérios
egípcios de Osíris e Ísis, que se encontra posteriormente nos mistérios
órficos e no culto de Mitra, mas que os alquimistas não hesitarão em
reconhecer no Cristo salvador. Por formular uma alternativa à doutrina
oficial, esta interpretação coloca a alquimia em posição de suspeita e
conflito com a Igreja, tanto mais que o iniciado tem a presunção de aceder a
um corpo glorioso análogo ao de Adão antes da queda e que o comum dos
pecadores só possuirá se lhe forem perdoados os pecados no Juízo Final.

Ora foi por intermédio da sua repercussão nas narrativas sobre o homem
artificial que o imaginário alquímico se insinuou nos interesses cognitivos
que hoje conduzem as tecnociências do vivo, aplicadas quer ao homem, quer
aos demais seres vivos. A genealogia da criatura artificial foi bem traçada
por Philippe Breton (Breton, 1997), que sustenta a continuidade das
narrativas no facto de as mais recentes citarem as que as precedem para lhes
apontar as deficiências técnicas e aapresentarem soluções que visam
ultrapassá-las. De acordo com Breton, a modernidade será assim
sucessivamente assumida pela magia, pela mecânica, pela automação, pela
informática e pela biologia.

Na genealogia dos actuais ciborgs e andróides da ficção científica
encontrar-se-iam antepassados tão ilustres como as estátuas animadas da
antiguidade, desde o Egipto à Galateia grega, o golem rabínico da Praga do
século XVII com uma longa lista de sucessores até ao século XX, o monstro de
Frankenstein de Mary Shelley, a Olímpia de Ernst Hoffman e a Eva futura de
Villiers de l’Isle-Adam, os robots de Karel Capek, de Fritz Lang que, em
Metrópolis abre toda uma linhagem cinematográfica, de Isaac Asimov e Philip
Dick, passando pela multidão de autómatos que têm no século XVIII a sua
época de ouro. Foram as artes, e em particular a literatura e o cinema, que
constituíram o veículo, por excelência, de transmissão do arquétipo
alquímico da criatura artificial para as actuais tecnociências, as quais a
reconfiguram no ser vivo – vegetal, animal, humano – de design.

A criação de seres de design, quer como inteligência artificial, quer como
vida artificial, obedece ao pressuposto que uma e outra são entidades
independentes dos respectivos suportes materiais. Assim pensava Langton, o
teorizador da vida artificial (Boden, 1996) e assim pensavam Wiener, Turing
e Von Neumann (Breton, 1997). A inteligência artificial assenta no
pressuposto de uma indiferenciação entre carne e máquina, natural e
artificial, os quais podem ser os suportes sucessivos e intercambiáveis
daquilo que há de essencial e comum em todos os seres do universo a um mesmo
nível de complexidade ou de evolução, o comportamento informacional. A
reprodutibilidade dele torna-se assim possível em outras tantas réplicas
biológicas ou maquínicas. A construção de um cérebro artificial encontra-se
daquilo que é essa réplica por excelência: o computador. E a indiferenciação
originária que ele não faz senão reproduzir é a indiferenciação do ser
humano edénico antes da separação entre Adão e Eva e de todas as diferenças
e rupturas que a partir daí opuseram entre si os indivíduos da única
humanidade que realmente existe. Deste modo, a indiferenciação contemporânea
do computador é uma indiferenciação de ordem genesíaca que refaz uma unidade
e uma ordem originárias e que, ao proceder assim, repete o arquétipo
alquímico da simpatia universal entre os elementos.

E é o mesmo arquétipo que encontramos nos projectos da engenharia genética,
de construção de seres transgénicos, já em curso para fins industriais ou
biomédicos, ou de quimeras biológicas, para fins por enquanto exclusivamente
cognitivos. Também não são alheios a esse arquétipo o mapeamento e a
sequenciação integrais do genoma humano, que visam possibilitar um
conhecimento manipulativo que assenta na redução do vivo ao informacional do
código genético. Identicamente, a vida artificial, tal como se exprime na
prossecução da clonagem, e a vida humana artificial, tal como a almeja a
clonagem humana pressupõem aquilo que Lewontin chamou o determinismo
genético (Lewontin, 1998; Lewontin, 2000; Lewontin, Rose e Kamin, 1987) e
que reduz o que há de essencial humano ao dado replicável. O clone humano
transgénico, que pretensamente deveria repetir as características desejáveis
do humano, aperfeiçoando-as para lá do que alguma vez poderia prometer a
condição biológica humana (Rieusset-Lemarié, 1999), mais não é que a
consumação do projecto demiúrgico de uma engenharia de melhoramento mediante
a qual a tecnociência moderna faz seu o sonho alquímico da transmutação
superadora da condição humana.

A informação, contida no ADN ou numa base de dados informáticos, surge assim
como a nova pedra filosofal, a engenharia genética como o novo elixir da
longa vida e o clone transgénico como o novo homúnculo ou o novo golem. www
thecauldronbrasil.com.br

Referências Bibliográficas

Boden, Margaret, ed. et al. (1996), The Philosophy of Artificial Life.
Oxford: Oxford University Press

Breton, Philippe (1997), À imagem do homem. Do Golem às criaturas virtuais,
Lisboa, Intituto Piaget

Eliade, Mircea (2000), O mito da alquimia. Lisboa: Fim de Século

Hutin, Serge (s/d), A alquimia. Lisboa : Livros do Brasil

Laszlo, Pierre (1996), Qu’est-ce que l’alchimie? Paris : Hachette

Lewontin, Richard C. (2000), It Ain’t Necessarily So. The Dream of the Human
Genome and Other Illusions. New York: New York Review of Books

Lewontin, Richard C. (1998), Biologia como ideologia. A doutrina do ADN.
Lisboa: Relógio d’Água

Lewontin, Richard C. ; Rose, Steven e Kamin, Leon J. (1987), Genética e
política. Mem Martins: Publicações Europa-América

Rieusset-Lemarié, Isabelle (1999), La société des clones à l’ère de la
reproduction multimédia. Arles: Actes Sud

Rifkin, Jeremy (1998), Le siècle biotech. Paris. Éditions La Découverte

A. FERNANDO CASCAIS

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