Um dia, no decorrer de sua história, o homem passou a fazer conjecturas sobre si mesmo e o mundo que o cercava. Daí em diante, representantes de diferentes culturas humanas começaram a investigar as interligações entre a mente e o corpo, o psiquismo e a matéria.
Por Marco Antonio de Carvalho
Em algum ponto na história da Terra, nos últimos quinze ou vinte mil anos, o homem começou a lazer perguntas sobre si mesmo.
Provavelmente questões ainda simples do tipo “por que será que em certos dias acordo alegre e, em outros, prefiro ficar aqui, quieto e só?”
Essas dúvidas tomaram-se cada vez mais complexas e deram ao homem a sua característica, o fator que o diferencia dos outros animais, ou seja, a capacidade de reflexão.
Sem dúvida, existiram gênios neolíticos – estão aí como prova a roda, as ferramentas, a irrigação, criados na Pré-história -, homens que devem ter devotado dias e dias apenas à especulação, a pensar nas particularidades da vida humana. Mas seus pensamentos e conclusões não foram documentados e apenas seus objetos passaram às gerações seguintes.
Mas há um lado em toda essa questão que permanece mais obscuro do que o restante: até determinado momento em sua vida no planeta, o homem não era diferente dos animais. Algo ou alguém fez com que, a partir do nada, o homem passasse a fazer conjecturas sobre si mesmo e sobre o meio ambiente.
Foi na Grécia Antiga, há aproximadamente 2.500 anos, que surgiram as primeiras provas documentadas desse novo homem – que, até pouco tempo antes, era apenas um guerreiro e caçador. Seu modo de se posicionar frente à vida difere inteiramente do das sociedades primitivas então encontradas na África ou na Austrália, e também, consideravelmente, do das antigas civilizações chinesa e japonesa, ou mesmo dos seus vizinhos egípcios e mesopotâmicos.
Os poemas homéricos ou a obra de Plutarco são essencialmente diferentes de qualquer outro trabalho que possamos citar do mesmo período no Japão, na China ou na Índia – ainda que todas as sociedades deem respostas divergentes para fundamentalmente as mesmas perguntas.
Hoje, por exemplo, já se aceita no Ocidente que o zen, o sufismo, a ioga e outras disciplinas tradicionais do Oriente são também sistemas sofisticados de psicologia. Assim, o iogue observa nossos sistemas de psicologia e afirma que eles são altamente intelectuais e muitas vezes redundantes – enquanto a ioga propõe uma interligação entre corpo e mente.
Entre 440 e 400 a.C. existiu em Atenas uma escola de filósofos conhecidos atualmente pelo nome de sofistas, que acreditavam na impossibilidade de conhecimento sobre qualquer coisa além da percepção. Sócrates e seu discípulo Platão eram membros de um outro grupo, bem mais relativista, e foi o fato de simplesmente duvidar que levou Sócrates a ser condenado à morte.
Platão, no entanto, prosseguiu o trabalho do seu mestre, discorrendo sobre um mundo bem mais amplo do que o reino mundano dos sentidos. Neste plano superior existiria algo que estaria além das particularidades de cada ser humano – como as preferências sexuais, de paladar ou de comportamento. Para Platão, aqueles que se abstêm da ilusão sensual chegam mais perto dessa realidade transcendente.
Discípulo de Platão, Aristóteles manteve a distinção tradicional entre corpo e alma, mas introduziu um princípio fundamental: a função. A alma, assim, seria a expressão do organismo; e este, uma expressão da alma. Dessa forma, a mão de uma estátua não tem alma porque não pode tocar em nada.
Esse tipo de racionalização – até hoje bastante popular em todo o mundo ocidental – chegou até a Europa na Idade Média, e isso se deve basicamente ao fato de Aristóteles não ter desenvolvido grandes teorias, mas axiomas, que foram devidamente incorporados aos dogmas do catolicismo romano.
Como se sabe, na Idade Média a Igreja mantinha o monopólio do reino da mente, e levou todos à crença de que só a alma tinha ligação com a Divindade – e o corpo, com o Diabo. Esse foi o tempo da possessão demoníaca, da confissão, do império do sacerdote. Na Renascença, tempos depois, esses temas foram reelaborados – e surgiram a histeria, a catarse e o médico.
No século XVII, o renascimento artístico e científico invadiu a cultura em geral. A ênfase passou a ser o empírico, baseado mais na observação do que na autoridade; “Tenha a coragem de fazer uso da sua própria razão”, proclamava Kant. Os dogmas da Igreja foram sendo substituídos, aos poucos, por estudos sobre a “natureza” da natureza.
Nesse tempo de incertezas, René Descartes chegou a acreditar apenas em dois “fatos”; matemática e Deus. Sua pesquisa principal foi centrada sobre as coisas que o homem deve realmente conhecer. Suas dúvidas sobre as possibilidades humanas de apreensão da realidade levaram-no a uma única certeza; o potencial da dúvida e da reflexão como armas para descobrir a verdadeira natureza da alma.
Isaac Newton, pouco mais tarde, desenvolveu toda uma metodologia sobre a energia vital concebida por Aristóteles quase dois mil anos antes. Newton afirmava que havia uma energia além daquelas que habitavam o organismo humano. Para ele, tanto a maçã que cai quanto o mundo heliocêntrico estão sujeitos a um sistema de energia mecânica e “forças” que regram a existência tanto da pequena fruta quanto do próprio planeta.
Spinoza, enquanto isso, moía e polia lentes na Holanda, formulando sua teoria de corpo e mente como dois aspectos de uma mesma realidade: a fusão da fisiologia com a psicologia. Isso levou o matemático Gottfried Leibnitz (1646- 1716) a conceber uma teoria sintética. Ele creditou todas as ações físicas a causas físicas e toda atividade mental a causas mentais. Ambas, diz ele, seguiam suas próprias leis sem interação entre os dois sistemas.
Assim, o século XVII produziu três aproximações ao problema da relação entre corpo e mente, o que deu forma e oportunidade ao nascimento da medicina e da psicologia como as conhecemos: o dualismo cartesiano, o monismo de Spinoza e o paralelismo de Leibnitz.
O que era sobrenatural para os escolásticos da Idade Média era mecanicamente natural e explicável no século XVII. O homem havia encontrado seu pequeno assento na natureza, longe da vista olímpica do indivíduo na Grécia Antiga e do olhar da Igreja sobre aqueles seres pecaminosos e expulsos do Éden no início dos tempos. E foi exatamente essa tentativa de reduzir o homem ao seu real tamanho que deu origem à ciência moderna: o homo sapiens passava a ser sujeito de investigação científica, assim como a órbita do planeta ou a dieta das formigas.
George Berkeley iniciou o século XVIII com um confuso golpe nas dúvidas cartesianas. Para ele, o assim chamado mundo objetivo é pura hipótese. Os homens conhecem apenas o que percebem – e o que percebem é limitado pelos cinco sentidos. De fato, não existe nenhuma razão para acreditar que o que não vemos exista. Assim, a experiência com as coisas que percebemos é transformada em um sistema próprio de conhecimento, e cada homem tem, com isso, um ponto de vista particular e intransferível sobre a realidade.
David Hume (1711-1776), a partir de Berkeley, afirmou não encontrar em parte alguma de si mesmo uma evidência para a existência da alma. Para ele, o que a psicologia chama de self nada mais é do que o resultado de sensações físicas. Assim, Hume e Berkeley levaram à moderna psicologia a importância da percepção.
Em 1859, Charles Darwin publicou a Origem das Espécies, que voltava a debater a antiga ideia da existência da evolução nas espécies animais e levantava o tema da seleção natural. Este foi um trabalho inovador, que discutia os traços inerentes a cada ser, a adaptação e desenvolvimento de cada organismo, a continuidade biológica e similaridades entre todas as formas de vida.
Surgiram então homens como William James (1842-1910), que se colocava contra a simples redução do psíquico a meros problemas neurofisicos: “James respeita demais seu universo para acreditar que pode carregar todo ele debaixo do seu chapéu”, dizia-se. Para James, existem certas atividades mentais que estão além do conhecimento pessoal e que não pertencem a qualquer self pessoal.
Em Viena, enquanto isso, Sigmund Freud estudava medicina com o então famoso Ernst Brucke, diretor do Instituto de Psicologia, uma escola baseada na visão mecanicista do mundo. Mais tarde, Freud passou a fazer da psicologia uma prática lucrativa: Viena estava repleta de velhos ricos sofrendo de problemas nervosos, e o jovem terapeuta entrou nesse mercado.
Mas ele estava longe de se sentir satisfeito: enquanto Freud era ainda universitário, Josef Breuer descobriu que uma das suas pacientes de histeria, “Anna O’ ”, expressava seus sintomas quando em transe hipnótico. O excitamento dessa notícia levou Freud a Paris para estudar hipnotismo com Charcot.
Freud estava particularmente interessado por um lado da técnica de Charcot que levava um sintoma a desaparecer em resposta a uma sugestão hipnótica. Em um caso de paralisia histérica, por exemplo, Charcot dizia algo ao paciente hipnotizado e a paralisia desaparecia.
A exata conexão entre a palavra – comando e o sintoma físico não estava clara para Freud, mas ele sabia que devia existir uma relação. Em 1900 ele publicou A Interpretação dos Sonhos, e tentou fazer com que esse livro se tomasse popular: o texto está cheio de alusões locais e detalhes bem-humorados sobre a vida vienense naquele fim de século.
Sigmund Freud foi, sem dúvida, um homem político que queria conquistar os corações dos leitores em geral para chegar ao seu círculo médico. Foi nesta e nas publicações seguintes que ele apresentou um método para analisar as atividades do que ele chamou de inconsciente: a psicanálise.
Nesta mesma época, em Zurique, Carl Gustav Jung (1875-1961) escreveu sua tese de doutoramento sobre a psicologia e patologia dos assim chamados fenômenos ocultos. Em 1903, Jung foi aceito como colaborador de Freud e assim permaneceu por alguns anos.
Esse relacionamento só foi rompido com o movimento psicanalítico quando Jung percebeu que seus pontos de vista não se adaptavam mais aos do mestre. Ele acreditava no poder das ideias e das palavras, e passou a estudar a influência de ambas sobre o consciente e o inconsciente. Acreditava também que cada homem desenvolvia e adaptava suas próprias forças mentais. Freud, por outro lado, preferia reduzir toda a atividade mental ao instinto do sexo.
Teria Freud levado longe demais sua teoria da sexualidade? Wilhelm Reich certamente não pensava assim. Em A Função do Orgasmo ele escreveu que “Freud sabia que era difícil continuar a defender a teoria da libido. Mas o interesse da autopreservação e defesa do movimento psicanalítico preveniu-o contra o que, em um mundo mais honesto, ele lutaria a favor”. Reich sentia que Freud era uma espécie de Moisés, que nunca chegou à Terra Prometida.
Para Alfred Adler (1870-1937), a resposta era outra. Ele foi um dos primeiros a se juntar ao grupo de Freud e foi sempre considerado leal ao movimento, apesar da ênfase com que enfocava a compensação. Em casos de desenvolvimento sexual incompleto, Freud havia notado uma tendência para compensar a deficiência, ainda que isto tivesse a ver apenas com o comportamento do indivíduo e não com o lado anatômico ou fisiológico.
Adler, por seu lado, defendia a ideia de que a compensação não existia apenas na esfera sexual, mas em todo tipo de limitação constitucional: ele demonstrou como alguns órgãos podem trabalhar mais quando outros estão fora de ação.
Quando Alfred Adler publicou seu “Um estudo da inferioridade orgânica e suas compensações psíquicas”, Freud recebeu isso como um ataque pessoal. Adler continuou a desenvolver sua teoria até que a compensação se tornou não apenas uma teoria periférica, mas a chave para a neurose. Então deixou o movimento com nove de seus seguidores e nunca mais viu ou escreveu a Freud.
Hoje o movimento psicanalítico tem toda aparência de um partido político, um movimento religioso, uma seita: tem seu próprio discurso, seu jargão, seus rituais e sacerdotes. Exatamente contra isso se insurgem figuras como R. D. Faing, que, além de suas teses psicanalíticas, tem todo um discurso político.
Como escreveram Rollo May e Sabert Basescu, “os psicólogos existencialistas e antipsiquiatras compreenderam que, se tentarmos entender o homem como um feixe de impulsos discretos ou um composto de reflexos, podemos chegar a brilhantes generalizações – mas teremos perdido o homem, a quem estas coisas ocorrem, o ser humano que tentamos entender no início”.
Mas, depois de mais de dois mil anos tentando entender como é que se dá a relação corpo-mente, e depois de quase um século e meio de psicanálise, a natureza dessa relação permanece obscura e as energias pelas quais a mente opera ainda estão além do conhecimento científico ortodoxo. Já pusemos o pé na estrada – mas ainda há muito que caminhar.
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