Canções de S. João da Cruz (1542-1591)
que descrevem o modo pelo qual o místico chega ao estado de perfeição espiritual.
(1578)

Um Texto da São João da Cruz

1. Em uma noite escura,
 De amor em vivas ânsias inflamada, (1)
 Oh, ditosa ventura!
 Saí sem ser notada, (2)
Já minha casa estando sossegada. (3)
 
2. Na escuridão, segura,
 Pela secreta escada, disfarçada, (4)
 Oh, ditosa ventura!
 Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.3. Em noite tão ditosa,
 E num segredo em que ninguém me via,
 Nem eu olhava coisa,
 Sem outra luz nem guia (5)
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava,
 Com mais clareza que a do meio-dia,
 Aonde me esperava
 Quem eu bem conhecia, (6)
Em sítio onde ninguém aparecia. (7)
 
5. Oh, noite que me guiaste!
 Oh, noite mais amável que a alvorada!
 Oh, noite que juntaste
 Amado com amada,
Amada já no Amado transformada! (8)
 
6. Em meu peito florido
 Que, inteiro para ele só guardava,
 Quedou-se adormecido,
 E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

7. Da ameia a brisa amena, (9) 
Quando eu os seus cabelos afagava,
 Com sua mão serena
 Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
 
8. Esquecida, quedei-me,
 O rosto reclinado sobre o Amado; (10)
 Tudo cessou. Deixei-me,
 Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado. (11)

(1) Trata-se de alma adiantada na espiritualidade, pois está incendiada do amor a Deus. 
(2) Isto é, saiu de si, sem ser impedida pelos sentidos inferiores que compõem o ego. 
(3) Casa sossegada: vida interior com pleno domínio das pulsões inferiores e das paixões menores. 
(4) A escada mística da ascese rumo à Divindade. A escada joanina desdobra-se em 10 degraus. 
(5) A luz da fé e do amor. 
(6) Em sendo evoluída, a alma já conhecia a Divindade.
 (7) O centro da alma, o espírito que é também sua parte mais alta. 
(8) Pela união com a Luz a alma se transforma na Luz. 
(9) Ameia: cada um dos arremates salientes, separados por intervalos regulares, construídos na parte mais alta do castelos, das torres e das muralhas que protegiam as cidades antigas. Vê-se que a alma subiu a escada para encontrar a Divindade. Brisa amena é sopro, símbolo do influxo espiritual de origem celeste. Mensageiro divino, o vento afasta as trevas. Na tradição bíblica, o “sopro de Deus” animou o primeiro homem. No poema, o sopro de Deus faz surgir o ser iluminado ( o novo homem que retornou à origem divina).
(10) Esquecida de si, quer dizer, com a atenção concentrada só no Amado.
(11) Sua inquietação desapareceu.

São João da Cruz