solpTodos os anos o Imperador do Japão escolhe uma palavra para a população escrever poesias.
Há concursos e discursos. Há declamação e há aqueles que escrevem para si mesmos, como diversão.
As monjas e monges escrevem como prática religiosa e se acaso morrerem, esse poema se tornará seu epitáfio.
A palavra deste ano é Inochi.
Inochi significa vida.
Inochi também significa destino, decreto, comando.

Ao escolher uma palavra o Imperador faz com que todos reflitam sobre ela.

Vida.

Neste momento em que jovens cometem suicídio com hora marcada pelos orkuts e blogs, corruptos se enforcam ou se escondem em hotéis suspeitos, yakuzas, dekassekis, pessoas comuns, policiais, soldados e marginais matam e morrem, nos ônibus, nas esquinas, nos corredores e nos bastidores. A morte como atriz principal, sorri debruçada na escada da vida. A vida, coadjuvante, pobre coitada, está perdendo as falas, desrespeitada, abusada, violentada, estuprada, ferida, sedenta, faminta, se contorce nos filmes da vida e nos filmes das telas enormes.

Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?  Qual nosso destino?
A que decreto obedecer? A qual comando servir?
Quem decreta o decreto? Será voto secreto?
Quem está no comando? Há mandos e desmandos?
O que é a vida? E a morte?  Arrepia ou dá sorte?
Há um começo, um meio, um fim?
Ou será sem começo, sem fim, apenas um meio?
Há pré destinação? Ou se escolhe o destino?
Há um Deus comandando, decretando, criando, organizando? Ou apenas a razão?
Há o nada, o vazio?
Tudo é o caos, desordenando-se e se reordenando num constante redemoinho sem nexo ou plexo?
Ou segue uma ordem, uma lei de interdependência, que transcende o eu e o outro, Deus e criatura?

Vida, destino, decreto, comando.

Somos donas de nosso destino?
Somos vítimas do destino?
Ou somos co responsáveis pela vida – que é nossa, que é vossa, que é delas e deles?

Há 25 atrás fiz meus votos monásticos.
Este é o ano 2573 a partir de Buda.  No calendário chinês o ano novo terá início dia 18 de fevereiro e é o ano do Javali.
O calendário é de doze animais.
Eu nasci no ano do javali.
Livre correndo nas matas da Terra Pura, protegida por Amida Buda, o Buda da Luz Infinita.
A luz da sabedoria mostra o caminho, que se abre aos nossos passos.
A atendente de Amida Buda é Kannon Bodhisatva, Kwan nin, Avaloktesvara – a pura Compaixão, ternura, compreensão, que vê os lamentos do mundo e atende às necessidades verdadeiras de quem pede em pureza e fé.
Fui ordenada no ano do Javali, voltei do Japão para o Brasil,  no ano do Javali e este ano, completo sessenta anos de idade e entro nos vinte e cinco anos de vida monástica.

Quando me preparava para fazer os votos monásticos, eu era responsável por cuidar de meu mestre, de sua esposa, seus filhos, sua casa, comida, jardins, convidados, alunos, cerimônias religiosas, dentista, médico e assim por diante.  Mal tinha tempo de ir ao banheiro.  Era extremamente feliz.

Meu mestre, Maezumi Roshi, recebia muitas publicações do Japão.  Certo dia, ele me emprestou um pequeno texto para ler, de talvez umas cinquenta linhas.

Eram reflexões do então reitor da Universidade Budista de Komazawa, em Tóquio, Professor Yasuaki Nara, sobre Vida.
Não me lembro exatamente das palavras, sei que era simples e dizia  que tudo é vida: paredes, tapetes, portas, água, plantas.  Interligados e preciosos.

Fiquei mais atenta a mim e ao que me cercava. Querendo cuidar, sem abusar.

Uma pequena luz começara a se acender em mim.

E quando tudo parece escuro, quando não encontro solução e não vejo a luz no final do túnel, eu sei que a luz existe.
Mesmo pequenina de vaga-lume, ou imensa de cometa.
A vida vale à pena ser vivida.

Monja Coen

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