imageSN9Por um milagre de perenidade, que somente se dá na santidade ou na obra de arte, o Prometeu do velho Ésquilo conserva toda a beleza e perfeição que puderam uma vez admirar os helenos, talvez numa tarde de sol no teatro de Dionisos.

Acabamos de lê-lo e reconhecemos que nos manteve presos ao fascínio dramático que da obra se desprende. Prometeu, acorrentado ao monte Cáucaso, punido por Zeus por ter dado aos homens o fogo sagrado, não pede clemência, não clama por misericórdia; antes desafia a cólera do Olimpo na certeza de sua imortalidade; sabe que sua ação foi heroica e justa, que um dia virá aquele que irá tira-lo do seu suplício, que os deuses envelhecerão, que nada deles permanecerá a não ser a lembrança de seu poderio. As torturas não o abalam e grita confiante: . . . que Zeus, usando seu invencível poder, precipite meu corpo nos abismos do Tártaro; faça ele o que fizer. . . Eu hei de viver!

A tragédia revela comovedora força e produz uma experiência estética inefável. Porém, sabemos que por trás da forma perfeita, além das palavras e da ação, existe um conhecimento velado que dessa maneira é transmitido aos homens. O sublime conhecimento que somente a uns poucos está reservado foi captado pelos sábios ou pelos poetas, por meio da ascese ou da intuição. Superficial e vão seria imaginar que Ésquilo tão-somente se propunha a contar uma história; naqueles tempos os mistérios estavam vivos formando parte do cotidiano e por tal razão não foi preciso ao poeta colocar maiores explicações ou dar respostas às perguntas que surgem ao tomar contato com a obra: por que foi castigado Prometeu? Que significa o fogo? Tornemos, então, para os primórdios conhecidos da vida humana à procura das respostas.

Desde tempos muito remotos o homem venerou o fogo sobre todos os demais elementos. Até o mais inculto selvagem reconheceu na chama alguma semelhança com o fogo que ardia na sua própria alma e, mesmo que a misteriosa energia estivesse muito além de sua capacidade de análise, podia sentir seu poder. Durante as tormentas, o fogo descia do céu em poderosos raios, abatia árvores e causava destruição; nisto, o homem reconheceu a ira dos deuses e quando personificou os elementos e criou os numerosos panteões que agora existem, colocou nas mãos da suprema divindade a tocha, o raio, a espada flamígera. Desde as origens da raça humana o elemento fogo controla os reinos animal e vegetal, e é o único que submete os metais. De acordo com a mitologia helênica, os deuses, contemplando o mundo desde o Olimpo, arrependeram-se de ter criado o homem e como não lhe tinham outorgado ainda o espírito imortal decidiram que nada se perderia se os humanos fossem destruídos completamente, deixando o lugar para uma raça mais nobre. Mas, ao descobrir o plano dos deuses, Prometeu, que possuía no coração grande amor pela humanidade, decidiu obter para os homens o fogo divino que os faria imortais, de tal forma que nem os deuses poderiam destrui-los. Assim, Prometeu voou até o lar do deus-sol e, acendendo um bambu, oco, no fogo solar, trouxe-o para os filhos da terra, aos quais ensinou que o fogo deveria ser usado para glorificação dos deuses e para o serviço desinteressado de uns para os outros. Destarte, o homem, após ter domesticado o fogo, amansado a chama, ele que estava até então desguarnecido, adquiriu um tesouro que não só lhe valeu sob o ponto de vista material mas também em seu aspecto mais sutil: o espiritual. 

O mito de Prometeu, segundo alguns estudiosos, entre eles Curtius e A. Kuhn, deve ter origem na índia, pois o bastão giratório, com o qual se obtinha o fogo por fricção, chama-se em sânscrito védico ‘pramantha’, que pode ser relacionado com ‘Pmmanthius’ ou ‘Pramathius’, o nome grego de Prometeu. Este seria então a personificação do próprio bastão. O sentido do nome Prometeu é previsor, prudente, e está em oposição ao nome de seu irmão Epimeteu, que é aquele que reflete demasiadamente tarde. Por outro lado, este significado do nome de Prometeu aproxima-se de ‘Pranrathi’, o previsor, uma das formas pela qual Agni se apresenta na lenda védica. Agni é o fogo do céu que cai à terra e em seguida desaparece; assim, Prometeu se aparenta com ele não só pelo nome, mas também por seu papel de doador do fogo, vinculando-se a ‘Mâtarisvan’, aquele que, uma vez desaparecido Agni, dedica-se a buscá-lo em favor dos homens. Ao encontrá-lo o oferece ao clã dos Birghu que, possuidores agora do dom divino, sentem-se extremamente orgulhosos, fazendo com que seja atraído sobre si o castigo de Indrã, o deus do firmamento e rei dos deuses siderais que empunha um raio como arma. Essa ideia do castigo reservado aos beneficiários do fogo, apresenta, por certo, fortíssima semelhança com o mito grego.

Segundo a interpretação do mito realizada por Jorge A. Livraga, Prometeu é o Logos grego, o portador do Fogo Sagrado, mas não de um fogo físico e sim celeste, intelectual, interior – a inteligência e a consciência. Sendo assim, deu a conhecer aos homens o bem e o mal e, por esta razão, vemos que em todas as lendas religiosas os deuses castigam o homem por seu afã de saber. Ele é também o símbolo e a personificação de toda a humanidade. O Fogo Divino permitirá que os homens procedam de modo consciente na senda de sua evolução espiritual, transformando assim o mais perfeito dos animais da terra em um deus em potencial, e fazendo-o livre para tomar por violência o reino dos céus. Virá daí o castigo de Zeus que o encadeia à rocha. A águia é um dos símbolos de Zeus e é quem vem devorar-lhe o fígado, porém, sendo Prometeu um deus, o seu órgão devorado cresce novamente. Ela representará o destino inexorável, que age nos que se atrevem a levar a tocha da Sabedoria e da Luz da razão às tenebrosas mansões da humanidade inválida, sacrificando suas paixões e seu egoísmo, suas ilusões e seus sonhos, acorrentando seu corpo à matéria sob o rigor da Águia-Vontade; tal é o caminho da liberação definitiva e do amor eterno. 

Apesar de origem um tanto obscura, há uma afirmação suficientemente clara: a figura de Prometeu revestiu a Grécia, através do gênio poético de Ésquilo, de uma nobreza incomparável, e este mito ilustrado pelo autor suscitou profunda ressonância não só por sua beleza senão também pelo rico valor simbólico. Aparece no século V a.C. como benfeitor e amante da humanidade, em contraste à figura de Zeus, hostil e zelosa.

Graças ao fogo que rouba para entregar aos homens, será o primeiro artesão do progresso material e moral e o promotor de toda a civilização helênica. Desde a antiguidade, a visão esquiliana do Titã cravado ao penhasco permaneceu através das idades, sempre iluminada neste alto cume da arte trágica. É próprio também destas criações responder sempre, de alguma forma, às diversas tendências, às preocupações sucessivas do porvir no domínio religioso ou moral. A obra de Ésquilo será portanto suficientemente rica para que nela se possa achar a representação ou o símbolo das crenças e aspirações que, no curso dos séculos, têm predominado no coração do homem.

Para os padres da Igreja, por exemplo, Prometeu não só evoca um futuro redentor como vislumbra, de certa maneira, a missão de Cristo, pois por amar demasiadamente o homem sofre por ele em sua própria carne. Edgar Quinet nos fala que os doutores do cristianismo “comparam o suplício do Cáucaso à paixão do Calvário”, fazendo assim de Prometeu um Cristo antes de Cristo. Durante o Renascimento, o espírito humano se inclina a ver o Titã carregado de correntes de ferro, emblema da consciência em luta contra o arbitrário. Podemos também considerar as evocações do século XIX, época em que se pretende o rompimento com as crenças tradicionais frente à emancipação individual e social, em que a maioria dos espíritos se fixam à fé na ciência e na religião do progresso. Em síntese, podemos claramente perceber de que maneira o fato objetivo, tal qual apresentado na mitologia e na obra de Ésquilo, sofreu, através do tempo, não só variadas interpretações como também projeções psicológicas, muito subjetivas e próprias de cada época. Há, portanto, um misto de mercantilismo e consumismo que transforma o mito de Prometeu num produto apropriado a cada momento, e isto é perigoso. . . corremos o risco de nos afastar e até de perdermos mais um elo de comunicação com as fontes da Sabedoria perene. Achamos oportuno, por conseguinte, lembrar as palavras do herói para podermos captar, ao menos intuitivamente, sua mensagem. 

Prometeu: Se me calo, não é por orgulho, ou desprezo; mas o furor devora minha alma quando me vejo preso a esta rocha. No entanto, a quem mais, senão a mim, devem os novos deuses as honras que desfrutam? Não falemos mais nisso; seria repetir o que já sabeis. Ouvi, somente, quais eram os males humanos e como, de estúpidos que eram, eu os tomei inventivos e engenhosos. Eu vó-lo direi, não para me queixar deles, mas para vos expor todos os meus benefícios. Antes de mim, eles viam, mas viam mal; e ouviam, mas não compreendiam. Tais como os fantasmas que vemos em sonhos, viviam eles, séculos a fio, confundindo tudo. Não sabendo utilizar tijolos, nem madeira, habitavam como as providas formigas, cavernas escuras e cavadas na terra. Não distinguiam a estação invernosa da época das flores, das frutas, e da ceifa. Sem raciocinar, agiam ao acaso, até o momento em que lhes chamei a atenção para o nascimento e ocaso dos astros. Inventei para eles a mais bela ciência, a dos números; formei o sistema do alfabeto e fixei a memória, a mãe das ciências, a alma da vida. Fui eu o primeiro que prendi os animais sob o jugo, a fim de que, submissos à vontade dos homens, lhes servissem nos trabalhos pesados . . . . . ., senão eu, inventou estes navios que singram os mares, veículos alados dos marinheiros. Pobre de mim! Depois de tantas invenções em benefício dos mortais, não posso descobrir um só meio para pôr fim aos males que me torturam.

. . . Elucidei-lhes todos os gêneros de adivinhações; fui o primeiro a distinguir, entre os sonhos, as visões reveladoras da verdade; expliquei-lhes os prognósticos difíceis, bem como os augúrios, felizes ou sinistros, que provém de outros animais, fiz ver quanto reina entre eles o ódio, ou a concordia e a união. . . . . . . a prata, o ouro, quem se orgulhará de os ter descoberto antes de mim? Ninguém, a menos que se trate de um impostor. Em suma: todas as artes e conhecimentos que os homens possuem são devidos a Prometeu .

. . . O Coro: Hermes quer que abandones este orgulho e adotes uma decisão sensata, ó Prometeu. . . Cré! Para o sábio é uma vergonha perseverar no erro conhecido.

Prometeu: Eu já sabia tudo, tudo o que ele acaba de anunciar!… Que um inimigo sofra todo o mal que lhe pode fazer o outro, nada mais natural. Pois que caiam sobre mim os raios fulminantes; que os ventos furiosos inflamem os céus; que a tempestade, agitando a terra em seus fundamentos, abale o mundo; que flagelos sem exemplo confundam as vagas do oceano com as estrelas da abóbada celeste; que Zeus, usando seu invencível poder, precipite meu corpo nos abismos do Tártaro; faça ele o que fizer! . . . Eu hei de viver!. 

por Emilio Jorge Moufrarrige Jr
Extraído da Revista Thot
Número 12 – ano 1978

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