imageUMRUma Máquina Pensante

Será que o cérebro humano é capaz de desvendar seus próprios e intrigantes enigmas?É o mundo tal qual o percebemos ou vivemos mergulhados num lago de ilusões?
Algumas dessas antigas indagações, temas de debate entre os primeiros filósofos, começam a ser respondidas neste final de milênio.

Os mais recentes estudos sobre o assunto utilizam ferramentas de diversas áreas do conhecimento, como a neurologia, a psicologia, a física e a própria filosofia.

As novas descobertas provam que o cérebro funciona como um computador extremamente complexo.

Em suas pequenas usinas de elaboração e decodificação de dados, distribuídas por 1,4 quilo de material orgânico, a realidade é recriada permanentemente, dia e noite.

Nas reportagens a seguir, você embarcará em uma aventura pelos mistérios da vasta mansão onde dorme a alma humana.

 


Capítulo I

A realidade que só existe dentro de nós

Penso, logo existo”. A máxima do filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) é hoje o mote de vivas polêmicas em torno dos conceitos de mente, consciência, emoção e razão. Descartes inspirou intelectuais e cientistas por séculos com seu método analítico de raciocinar.

Sua frase emblemática sugere que o homem é definido pela capacidade de pensar e pelo fato de saber que pensa. Ao mesmo tempo, no entanto, o sábio concebe a mente como uma entidade não material, habitante da cabeça dos homens, mas, em essência, diferente do cérebro.

Recentes estudos sobre o cérebro revelam que Descartes estava enganado. A identificação dos processos físicos e químicos ocorridos na imensa teia dos neurônios prova que a consciência – ou pelo menos boa parte dela – se produz no mundo da matéria.

As novas descobertas não significam, entretanto, que tenha sido desvendado o mistério da mente humana, da capacidade de sentir, de analisar e de reagir ao mundo. Ao contrário, as pesquisas mostram que o cérebro, tal qual os sistemas galácticos, encerra enigmas que desafiarão muitas das próximas gerações.

Se o astrônomo se encanta com os bilhões de pontos cintilantes que bordam a noite, o neurologista suspira diante da fantástica malha de 100 bilhões de neurônios que se espalham por 1,4 quilo de material orgânico. E os sistemas solares, as galáxias e os buracos só existem no universo cósmico porque podem ser percebidos e interpretados por esse micro-macro universo que preenche o crânio dos homens.
Sem alguém que a admire, que reconheça seu brilho e suas formas, a Lua não existe. Nem existem os poemas que a fazem personagem da vida e a integram ao teatro dos amores e das paixões.

As cores, da mesma forma, existem somente para o cérebro, capaz de “trabalhar” impulsos elétricos nervosos e transformá-los em uma interpretação particular daquilo que se vê na presença da luz. Um extraterrestre – o “monstrengo” do filme O Predador, por exemplo – habilitado a “enxergar” somente pela decodificação de sinais de calor, teria enorme dificuldade para dialogar com um jardineiro humano sobre flores multicoloridas.

O neurologista Antônio Damásio, chefe do departamento de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa, nos EUA, reúne em seu livro O Erro de Descartes novas reflexões sobre essas dicotomias: o corpo e a mente, a razão e a emoção.

Segundo ele, é chegada a hora de se reconhecer que o espírito habita um organismo vivo, em que o cérebro e o resto do corpo vivem intimamente integrados.

O cientista argumenta que os estímulos sensoriais e as emoções resultantes são fatores fundamentais na estruturação do edifício orgânico do pensar. “O cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável”, sustenta.

De acordo com Damásio, a dificuldade da ciência em desvendar os mistérios da mente não deve diminuir o entusiasmo dos que se propõem a realizar a tarefa. Talvez, segundo ele, essa seja a mais fantástica aventura oferecida aos homens de coragem. “A emoção e os sentimentos constituem a base daquilo que os seres humanos têm descrito como alma ou espírito humano“, escreve. Resumindo as inquietações de muitos de seus companheiros, o neurologista inverte a máxima de Descartes: “existo (e sinto), logo penso“.
 

 

 


Capítulo II

 

Mente de carne, funcionalidade aos pedaços
Algo específico e importante mudou dentro de cada uma dessas pessoas. Um homem com perfeita saúde sofre um acidente e passa a enxergar o mundo em preto e branco. Mesmo em seus sonhos, tudo carece de cor e a memória já não lhe traz nem por um segundo o azul do céu e o verde da alface.

Uma mulher sofre um derrame cerebral e torna-se incapaz de perceber o movimento dos objetos. Não nota a aproximação dos veículos quando decide atravessar uma avenida a caminho do trabalho. Um jovem é atropelado, bate a cabeça e perde a visão, mas não aponta o problema nem se mostra incomodado com a nova condição. Um trabalhador sério e competente torna-se um piadista compulsivo e perde a noção de ética depois que uma barra de ferro lhe perfura a região frontal do cérebro.

Esses exemplos, presentes na literatura médica, ilustram a especificidade e o refinamento das tarefas executadas pelo cérebro. Revelam ainda como são particularmente complexos os processos ligados à percepção dos fatos e à interpretação do que se passa no mundo real.

A fascinação exercida pelos pacientes com lesões cerebrais explica-se justamente pela chance que oferecem de desvendar mistérios da mente. Seus casos mostram ainda como é vulnerável o sistema que nos faz perceber a realidade. Uma lesão cerebral do tamanho de um grão de milho pode acabar com a carreira de um pintor ou transformar um outrora influente diplomata em autêntico pateta.

A ciência se debruça sobre o muro das inquietações. Os especialistas não conseguem, por exemplo, explicar exatamente onde está a diferença entre um gênio da física e seu irmão que chegou aos 40 anos de idade e ainda é incapaz de efetuar contas de dividir. À parte os fatores ambientais e culturais, onde residem os elementos diferenciais na constituição das habilidades e da inteligência? Como se forma a mente humana? Confunde-se com a alma ou se trata do resultado de eventos elétricos e químicos no cérebro? Poderá um dia a mente humana ser compreendida por ela própria?

As dúvidas são antigas. O homem da Antiguidade já fazia conjecturas sobre a origem de sua consciência. Entre os pré-socráticos, Empédocles afirma: “para os homens, o sangue que lhes flui à volta do coração é o pensamento”. Para Platão, a mente estava na cabeça, uma esfera, a forma geométrica perfeita.

Aristóteles também acreditava que a mente vivesse no coração, centro de vitalidade e calor do corpo. Na Idade Média, já se imaginava que o cérebro fosse o abrigo da mente. No século 17, Descartes afirmou que a mente devia, de fato, residir no cérebro, mas como algo separado, imaterial.

Nos dias atuais, a tecnologia começa a solucionar alguns desses mistérios que atormentam os filósofos e cientistas há milhares de anos. As imagens obtidas por modernos equipamentos de emissão de positrons permitem conhecer as áreas do cérebro acionadas, por exemplo, quando se comemora uma vitória do time de basquete ou quando se grita de pavor com a imagem hitchcockiana da pessoa esfaqueada debaixo do chuveiro. Pode-se literalmente ver a formação do pensamento em manchas coloridas que se distribuem por áreas distintas do cérebro.
Os pacientes com lesões cerebrais são provas vivas da materialidade da consciência. Os vários distúrbios citados nos relatos médicos, mostram como as lesões podem resultar na criação de mundos alternativos, organizados mediante novas regras de percepção e interpretação dos fatos.

O estudo dessas áreas de processamento tem resultado em um mapeamento cada vez mais perfeito das funções cerebrais e hoje oferece o caminho para a cura de doenças e para a elucidação dos mistérios que dormem atrás dos olhos humanos.
 

 


Capítulo III

 

A memória manipulada e o país que se esqueceu
O professor Iván Izquierdo, de 59 anos, é hoje um dos mais respeitados cientistas em atividade no Brasil. Suas pesquisas sobre os mecanismos da memória são referência obrigatória em todo o mundo para estudos de ponta sobre as funções cerebrais humanas.

No Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o professor desenvolve um minucioso trabalho de reconhecimento anatômico dos processos relacionados à memorização.

Ao mesmo tempo, permite-se utilizar das descobertas científicas para refletir sobre a maneira de pensar de nosso povo e de nossas autoridades. O professor alerta para a perda da memória histórica do país e para as mentiras que, repetidas mil vezes, tornam-se verdades. Izquierdo concedeu a seguinte entrevista ao Jornal Estado de São Paulo:

Estado: Quais são os maiores avanços recentes no estudo da memória?
Izquierdo: Posso começar dizendo que um grande passo foi a demonstração das áreas cerebrais envolvidas na memória de trabalho ou memória rápida (segundos), aquela que permite o processamento “on line” de todo tipo de informação: o córtex pre-frontal e suas conexões. A seguir, a demonstração das áreas cuja função é a formação e armazenamento inicial das memórias de fatos e eventos (memórias declarativas): o hipocampo e suas conexões.

Deve-se ressaltar a descoberta da cadeia de mecanismos bioquímicos que interagem nesses processos. Destaca-se ainda a demonstração de setores envolvidos na memória de procedimentos (nadar, correr, tocar um instrumento): as regiões subcorticais e o cerebelo.
Não se pode esquecer da importância da demonstração dos sistemas regulatórios da formação e evocação de memórias por vias nervosas e sistemas neurohumorais envolvidos nos afetos e nas emoções, inclusive a ansiedade e o estresse. Nessa área, seria válido destacar também o efeito neurotóxico do estresse repetido e continuado.

Estado: O que afinal é a memória? Qual seu papel na estruturação da mente e da consciência?

Izquierdo: Tudo no cérebro funciona através da memória. Caminhamos, falamos e nos comunicamos porque nos lembramos de como fazê-lo. O cérebro manda secretar um ou outro neurotransmissor ou hormônio quando estamos tristes ou alegres, ou quando sentimos medo ou prazer, porque se recorda como fazê-lo.
O cérebro mandar secretar hormônio de crescimento à noite e ativa a suprarrenal de manhã porque se lembra de que tem de fazê-lo. Por outro lado, a memória determina nossa individualidade como pessoas e como povos: eu sou quem sou porque me recordo de quem sou. A França é a França porque se lembra de ser a França. Se eu esquecesse quem sou, não seria ninguém, ou seria outro. O povo judaico é um exemplo fantástico disso: sobrevive, mantém sua individualidade, e até prospera, devido exclusivamente a sua memória e ao culto dessa memória.

Estado: Existe, então, uma memória transmitida de geração para geração?
Izquierdo: Impossível saber. A esse respeito só há conjecturas, não evidência científica. É bom lembrar que o cérebro funciona por meio de vias e conexões muito detalhadas e específicas, não por fantasmagorias ou crenças. Até as superstições atuam através de vias e redes nervosas.

Estado: Pode-se criar no cérebro de um cidadão ou de uma comunidade uma memória de fatos não acontecidos? Quais os perigos desse tipo de manipulação?
Izquierdo: A história do Brasil que se ensina nos colégios (ilha de tranquilidade, país manso, tolerante e benévolo, sem preconceitos e sem violência) é justamente um conjunto de memórias de fatos inexistentes. O perigo é cotidiano e visível: é esse Brasil dos massacres, da desigualdade, da prostituição infantil, dos assaltos, da inconsequência política, do trabalho escravo, da impunidade, do faz-de conta. Condicionadas pela falsa História que aprendem e ensinam, nossas elites costumam imaginar que tudo isso acontece na Índia, não na porta de casa. Ou dentro dela.

Estado: Por que nos lembramos mais nitidamente dos fatos acontecidos na infância e na juventude?
Izquierdo: Todos idealizamos os fatos acontecidos na infância e na juventude, principalmente ao atingir a velhice, e damos a eles mais importância que às coisas mais recentes. Na infância e na juventude, namorávamos, dançávamos com garbo, tínhamos ilusões, tínhamos vários futuros possíveis, jogávamos bola com mais agilidade, a expectativa de vida era longa. Há um ditado espanho que diz “todo tiempo pasado fue mejor”. Para as pessoas, especialmente para os velhos, que sabem que o fim está próximo e para quem o contracheque da aposentadoria, a artrite, o câncer, a hipertensão ou a depressão fazem parte da memória de hoje, é mais agradável lembrar das coisas “daquele tempo”, que real ou imaginariamente foi tão doce.

Estado: Por que, por vezes, nos esquecemos de detalhes de situações violentas ou simplesmente embaraçosas?
Izquierdo: Esquecemos (ou, aliás, suprimimos a evocação de) coisas embaraçosas ou ruins provavelmente pela intervenção de vias serotoninérgicas ou outras agindo sobre áreas cerebrais vinculadas com a memória (amígdala, hipocampo, córtex pre-frontal), ou com aspectos emocionais de sua evocação . Na depressão, que é uma doença que envolve uma disfunção dessas vias, só lembramos das coisas ruins, embaraçosas ou trágicas.

Estado: Jorge L. Borges conta o caso de um homem atormentado por se lembrar de tudo. Uma carga impossível de suportar. É necessário, de fato, limpar nossos arquivos para nova fase de aprendizado ou de adaptação? O que determina o esquecimento da conversa com a empregada de manhã e a manutenção de todos os detalhes da cerimônia de casamento da filha?
Izquierdo: Achados recentes indicam que Borges tinha, como sempre, razão e que um “Funes, o Memorioso” é, de fato, inconcebível. Os mecanismos de memória, contrariamente ao que se pensava alguns anos atrás, se saturam. Não no referente a conexões sinápticas, senão em razão da saturação de vários dos processos bioquímicos desencadeados pela formação ou evocação de memórias em populações grandes dessas células, por exemplo no hipocampo. Assim, não é necessário limpar os arquivos para formar novas memórias, mas é bom lhes dar um descanso de vez em quando.
Vale dizer que determinadas memórias, de acontecimentos importantes e com maior carga emocional, são realmente lembradas mais facilmente e com mais nitidez que outras corriqueiras. Isso ocorre justamente por causa da importância do fato e da carga emocional. Nesse caso, são estimulados mecanismos neuroquímicos que garantem a memorização.

Estado: Por que as amnésias são geralmente ligadas à memória declarativa (fatos, eventos, coisas) e não à que rege os procedimentos?
Izquierdo: Porque as áreas lesadas nas amnésias humanas, como na doença de Alzheimer, na derivada do alcoolismo crônico, na resultante de microenfartes cerebrais e na doença de Parkinson, são justamente aquelas responsáveis pelas memórias declarativas: hipocampo, regiões corticais vizinhas, entre outras. A amnésia de Parkinson se deve a lesões dessas áreas, não a lesões de áreas envolvidas com tônus muscular e com movimento. As lesões amnésicas das regiões da memória de procedimentos são muito raras.

Estado: Um homem sem memória perderia também seus conceitos de ética?
Izquierdo: Certamente perderia. Veja o que acontece na rua no dia-a-dia do Brasil, país sem memória. A fidelidade às pessoas, às idéias, aos princípios, não existe. Roubar, é bom se não te descobrem, mata-se por matar. Pergunte a qualquer um sobre o deputado em quem votou na última eleição: você se importa se seu deputado rouba? você não gostaria de roubar também, se fosse possível?

Estado: Há situações em que lesões cerebrais impedem uma pessoa de se emocionar?
Izquierdo: Sim. Há síndromes cerebrais (lesão bilateral do núcleo amigdalino, entre outras) em que o indivíduo não reage nem quando se lembra de situações ligadas à emoção.

Estado: Qual a esperança para pessoas afetadas por doenças que afetam a memória, como Parkinson?
Izquierdo: A esperança para o Parkinson, o Alzheimer, e todas as demais doenças degenerativas cerebrais com morte neuronal está, hoje, na possibilidade de desenvolvimento dos tratamentos preventivos. Para poder desenvolvê-lo, é preciso avançar mais no conhecimento básico dos mecanismos moleculares dessas patologias. Por enquanto, existem poucas drogas preventivas dessas doenças que sejam realmente úteis. A nicotina é uma, mas seus efeitos secundários são grandes.
Os agentes que diminuem os radicais livres talvez tenham algum efeito, mas faltam conhecimentos básicos sobre seu mecanismo de ação e estudos epistemológicos sobre seu uso. Não há, no momento, tratamento algum que consiga recuperar a função de áreas cerebrais em que morrem neurônios: estes são células que não se reproduzem e quando morrem levam toda a informação que continham.
Existem drogas, o tacrinal, por exemplo, com efeito paliativo sobre o quadro amnésico dos pacientes com doenças degenerativas cerebrais. No caso do Parkinson, evidentemente, a terapêutica de base da doença (como ocorre na depressão) corrige em parte o quadro amnésico que a acompanha. Não há, de momento, nenhuma droga que “melhore a memória”, somente algumas que estimulam a atenção, melhoram o sono ou diminuem a sensação de fadiga. Nenhuma delas, no entanto, traz benefícios efetivos à memória, e todas possuem efeitos secundários potencialmente graves.
 

 


Capítulo IV

 

A fabulosa biblioteca da vida
A memória é concebida hoje como uma das mais importantes funções cerebrais e está intimamente ligada ao aprendizado e à capacidade de repetir os acertos e evitar os erros já cometidos. No caso da memória visual, por exemplo, tudo tem início com os sinais luminosos captados pela retina. Os impulsos elétricos migram para o nervo óptico e, daí, para o córtex cerebral, a matéria cinza que concentra as funções cerebrais mais evoluídas. O impulso morre, mas a passagem do impulso por um determinado caminho estabelece conexões entre neurônios e possibilita ao cérebro recriar futuramente a imagem.

As sensações vividas podem ser reproduzidas, sempre que se julgar necessário. Os neurônios se incumbem de enviar impulsos elétricos pelo caminho já trilhado. Sons, imagens ou a combinação de estímulos permitem ao indivíduo ativar novamente esses padrões de conexão. A formação e o armazenamento inicial das memórias de fatos e eventos se fazem na região do hipocampo e suas conexões. A amigdala guarda impressões de medo e alerta. O gânglio basal estoca informações de hábitos e habilidades físicas. O cerebelo guarda memória de procedimentos.

A memória rápida ocorre no córtex prefrontal e em suas conexões. A natureza fragmentada dos arquivos de memória permite ao indivíduo refinar suas impressões do passado. Ao mesmo tempo, habilita o homem a selecionar, pela via das emoções e processos químicos a elas relacionados, as memórias que pretende guardar e aquelas que jamais gostaria de restabelecer. Como em uma imensa biblioteca parcialmente incendiada, o cérebro lesado pode guardar coleções de livros absolutamente intactos.
 

 


Capítulo V

O neurologista que virou filme e seus pacientes
O neurologista inglês Olivers Sacks, de 64 anos, é hoje um dos mais respeitados exploradores dos segredos do cérebro. Para quem tem boa memória, Sacks é o médico vivido pelo ator Robin Williams no filme Tempo de Despertar (1990), em que contracena com Robert DeNiro, um paciente que acorda depois de anos de sono profundo.

Em seu último best-seller, Um Antropólogo em Marte, Sacks narra sete impressionantes histórias de casos clínicos em que predominam deficiências e distúrbios neurológicos. Em todos os episódios, é surpreendente a excentricidade dos processos de adaptação do indivíduo aos novos conceitos de realidade. Há um pintor que passa a ver o mundo em preto e branco aos 65 anos de idade. Há o caso de um jovem que perde a visão e a capacidade de armazenar dados além de poucos minutos.

Nessa dramática história, cujo título é O Último Hippie, Sacks trata de Greg F., um rapaz vítima de um tumor sofre sérias lesões no cérebro. A glândula pituitária e a região do quiasma óptico adjacente são destruídas, em um processo de devastação que atinge ambos os lados do lobo frontal, os lobos posteriores e temporais, além do diencéfalo e o prosencéfalo. Greg perde a noção do que significa “ver” e não admite estar cego. Ao mesmo tempo, perde a capacidade de estocar novas memórias. Intactas permanecem as lembranças do período anterior à doença, especialmente os anos 60, em que o jovem se deliciou com o rock de protesto e seguiu a doutrina de vida do hippies.

Greg tem uma memória que parece funcionar com pilhas cuja energia se esgota rapidamente. Ele se emociona ao receber a notícia da morte do pai. Minutos depois, no entanto, se esquece por completo da informação. Não se trata, evidentemente de um benefício da memória. A cada vez que é confrontado com a perda tudo se repete como se fosse a primeira vez: o choque da notícia, a tristeza aguda e a prostração. Apesar de todas as lesões irreversíveis, Greg parece muitas vezes viver feliz. Faz piadas, canta e brinca com os colegas. Preso em seu mundo de curtas emoções e escuridão, o último hippie criou sua própria realidade, suas formas de perceber o mundo exterior e lidar com ele.
 

 


Capítulo VI

O homem que perdeu o caráter
 

Na história da neurologia, nenhum outro personagem merece tantos estudos e citações quanto o trabalhador braçal Phineas Gage. Em 1848, Gage atuava como contramestre de um grupo de operários que construía uma linha de trem no Estado norte-americano de Vermont.

Uma explosão acidental fez com que um barra de ferro acabasse trespassasse sua cabeça, caindo a trinta metros de distância, envolta em sangue e pedaços de carne. Para espanto de todos, não morreu. Levantou-se atordoado e foi procurar um médico. Gage teve um abscesso no lobo frontal e reclamou de um certo mal estar nas semanas seguintes. Mesmo assim, o processo de recuperação pareceu milagroso. Em poucos meses, foi dado como curado.

A princípio, os resultados do tratamento reforçaram a crença de que largas porções do cérebro não tinham função alguma. Entretanto, com o passar do tempo, os amigos passaram a notar uma mudança radical no comportamento de Gage. Tornou-se inquieto, irreverente, dado a brincadeiras grosseiras. Antes do acidente, era tido como um trabalhador atento e diligente, um homem de negócios sério e competente. Essas características se perderam.

Passou a se dedicar a inúmeros projetos que eram logo abandonados em favor de outros. A lesão do lobo frontal parecia ter criado um outro homem, infantil, inconseqüente, escravo de seus instintos animais. Mudara em Gage não as habilidades, a destreza em lidar com as ferramentas de trabalho, mas o espírito. Os colegas logo perceberam a transfiguração e admitiram estar diante de outra pessoa.

Os estudos sobre Gage, que morreu 13 anos depois do acidente, ajudaram a traçar um mapa mais aprimorado das funções cerebrais. Uma das particularidades dignas de nota do cérebro humano é justamente o desenvolvimento dos lobos frontais, muito menos evoluídos nos macacos e insignificantes em outros mamíferos. Trata-se da parte do cérebro que mais se desenvolve depois do nascimento. As partes superiores do cérebro são hoje tidas como centros reguladores das características mais elevadas do comportamento, como o senso de ética, a capacidade de antecipar o futuro e a responsabilidade.
 

 


Capítulo VIIVer e a ilusão de ver
 

A visão mobiliza alguns dos mecanismos cerebrais mais complexos. Para que possamos desfrutar do deleite estético oferecido por um quadro de Rafael ou pelas fantasias multicoloridas do Salgueiro, milhões de conexões neuronais são acionadas.

Ao mesmo tempo, vários centros, extremamente especializados, entram em ação para responder aos estímulos captados pela retina. Cada neurônio está ligado a 15 mil outros e as conexões possíveis chegam à casa dos trilhões, com complicadas operações que se realizam em milésimos de segundo. Todo esse sofisticado sistema ainda não está pronto quando do nascimento do bebê. É preciso que ele aprenda a ver e exercite as conexões internas do cérebro.

A criança que nasce vítima de catarata ou outra obstrução ocular terá sérios problemas visuais no futuro caso não seja tratada de imediato. Se não tiver removido o obstáculo até os seis meses de idade, ficará cega pelo resto da vida. Ao contrário, um homem de 60 anos que tiver passado cinco anos com a visão obstruída voltará a enxergar normalmente depois de uma cirurgia corretiva. Na verdade, boa parte da visão depende de convenções compreendidas internamente pelo cérebro por meio do exercício constante.

A cada estímulo, os neurônios se comunicam por pequenos impulsos elétricos em uma fantástica malha de intrincadas conexões. Se essas conexões não são repetidamente estimuladas nos primeiros meses de vida, quando o cérebro está na fase de formação, acabam se atrofiando e morrem.

Vários subsistemas se unem para dar ao homem, internamente, a ilusão de que pode captar toda a realidade com seus olhos. Entre os pré-socráticos, Empédocles se dedicou a estudar o mistério dos olhos e, assim, escreve: “O fogo primitivo escondeu-se em membranas finas e tecidos, atrás das redondas meninas dos olhos, varadas de passagens maravilhosas. Afastam as águas profundas que as cercam e deixam passar o fogo, por ser mais fino e sutil.”

Segundo o grego, o interior do olho é de fogo e seu exterior é feito de água e terra. O olho seria como uma lanterna à noite, o fogo protegido da água por uma película ou vidro. Por meio do fogo, veríamos os objetos brilhantes. Por meio da água, enxergaríamos o que fosse opaco e sombrio. O semelhante vê o semelhante.

O que surpreende nos estudos de Empédocles é que já imaginava a existência de subsistemas da visão. O fogo que vê as coisas brilhantes e a água que decodifica as imagens opacas e sombrias. Os modernos estudos em pacientes com lesões cerebrais, mostra que há áreas dedicadas a aspectos específicos da visão. Alguns setores, por exemplo, ocupam-se exclusivamente de detectar os movimentos dos objetos. Problemas nessas áreas impedem o indivíduo de perceber a aproximação dos carros quando atravessa a rua.

A estrutura parece ser tão complexa que guarda até um arquivo específico para o conceito de visão. Pessoas vítimas da Síndrome de Anton tornam-se cegas mas não se queixam ou fazem relatos de seus problemas. Simplesmente, não sabem que estão cegas. No momento da lesão, toda a estrutura da consciência é remodelada.
 

 


Capítulo VIIIOs neurônios fabricantes de cores
 

O mistério da percepção das cores tem chamado a atenção de filósofos, físicos, biólogos e escritores há séculos. Não por acaso, o assunto mereceu especial atenção de sábios e pesquisadores influenciados pelo Iluminismo. O alemão Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) escreveu seu tratado sobre as cores impressionado com a incompatibilidade entre as teorias clássicas e a realidade. Goethe reconheceu e analisou, no final do século 18, alguns fenômenos que seriam identificados quase duzentos anos depois.

O escritor cientista notava a persistência mágica de imagens na retina e as ilusões produzidas pela cor e por outros estímulos visuais. Goethe estava preocupado com a maneira como vemos a realidade, como a transformamos em registros particulares do mundo externo. Segundo ele, esses fenômenos não são explicados pela física de Newton, mas pelo funcionamento interno do cérebro. Para o escritor, “a ilusão de óptica é a verdade óptica”.

O escrito de Goethe foi muito criticado na época, tido como uma espécie de exercício pseudocientífico. Outro alemão, Hermann von Helmholtz (1821-1894), entretanto, daria novos subsídios aos adeptos da teoria da ilusão das cores. O cientista demonstrou que, no processo de percepção, as cores dos objetos são preservadas mesmo com grandes e significativas alterações no comprimento de onda que os iluminam.

O comprimento de onda da luz que ilumina uma banana, por exemplo, varia de acordo com a fonte de luz e a posição do observador. No entanto, a fruta permanece sempre amarela. Esse fenômeno não poderia ser uma simples transformação dos dados do comprimento da onda em cor. Helmholtz concluiu que deveria haver uma “inferência consciente”, um processo de correção automática dos dados recebidos, uma maneira interna de organizar o caos de estímulos e dar-lhes um significado.

Em 1957, Edwin Land (1909-1991), o inventor da Polaroid, realizou uma formidável demonstração teórica da ilusão das cores. Fez duas imagens em preto e branco da mesma cena, usando dois filtros: um vermelho e outro verde. Depois projetou a primeira imagem com filtro vermelho e, sobre ela, a segunda, com luz branca comum. Esperava-se uma imagem em tons caóticos de rosa. Mas, para surpresa geral, brotou na tela uma moça com cabelos loiros, casaco vermelho e perfeitos tons naturais de pele.

O teatro das células cerebrais – A experiência não pôde ser satisfatoriamente explicada na ocasião e não rendeu novos conceitos científicos. Para muitos, no entanto, provava a teoria de Goethe, da ilusão das cores. O azul e o vermelho não estão lá, de fato, mas são impressões criadas pelo cérebro.

Um dos mais respeitados neurocientistas do mundo, o doutor Rodolfo Llinás, da Escola Médica da Universidade Nova York, acredita que a consciência é mero resultado de sinais elétricos coordenados. Usando um magnetoencefalógrafo, que mede correntes elétricas dentro do cérebro, Llinás mediu a resposta a estímulos musicais. Segundo ele, vários grupos de células saltam para cima e para baixo, ao mesmo tempo, de acordo com a especificidade do estímulo externo.

São padrões simultâneos e também coordenados de funcionamento da estrutura cerebral. Llinás afirma que a máquina de pensar funciona 24 horas por dia na construção de modelos de percepção do mundo e de recriação da realidade captada. As cores não existem fora de nosso cérebro. O som nada mais é que a relação entre determinadas vibrações externas e o cérebro.

“Acordados ou durante o sono, vivemos em um estado de sonho”, costuma afirmar. Embora nossas impressões sejam bastante semelhantes a determinados aspectos da realidade externa, nada podemos falar sobre uma realidade objetiva. Criamos nossas cidades com o trabalho das mãos, mas as vemos segundo os caprichos do cérebro. No grande teatro da vida, vemos apenas as peças que as células do cérebro decidem representar.
 

 


Capítulo IXMicroscópicas redes de informação
 

Os neurônios são a base de toda a estrutura de processamento de informações e procedimentos do cérebro. São cerca de 100 bilhões em cerca de 1,4 quilo de massa orgânica. De suas conexões depende a percepção do mundo, o aprendizado, o desenvolvimento das paixões, a raiva e o altruísmo. Uma vez estimulado, um neurônio repassa a informação a outro neurônio por meio de um processo eletroquímico. Os sinais elétricos se propagam como ondas pelos axônios, algo como longos tentáculos do neurônio. Esses impulsos são transformados em sinais químicos nas sinapses, o ponto de contato entre neurônios.

Quando em descanso, a membrana externa do neurônio é mais permeável aos íons de potássio que aos íons de sódio. No momento em que a célula é estimulada, entretanto, a permeabilidade ao sódio aumenta, determinando um influxo de cargas positivas. Esse evento desencadeia um impulso, iniciado na junção entre o corpo da célula e o axônio.

Quando o impulso encontra o terminal pré-sináptico, provoca a liberação de moléculas neurotransmissoras. Esses transmissores se espalham por uma pequena fenda, de um milhonésimo de polegada, e se engatam aos receptores da membrana pós-sináptica. Os engates permitem a abertura de canais iônicos e, em seguida, a geração de impulsos no neurônio pós-sináptico.

A diversidade nos mecanismos de neurotransmissão permite ao cérebro atender a várias demandas. Algumas ações requerem rápidas respostas, como pisar com o pé no freio, desviar a bola para o gol ou tirar a mão de uma chapa quente. Para processar e enviar a informação necessária, existem grandes fibras nervosas que conduzem os impulsos a cerca de 100 metros por segundo. Outras atividades, como algumas ligadas ao aprendizado, carregam a informação mais lentamente, a 20 ou 30 metros por segundo.

A transferência de informação entre as sinapses é um processo complexo e cheio de diversidades. Nem todos os sinais repassados de neurônio a neurônio têm como mensagem a estimulação. Em alguns casos, o neurotransmissor liberado tem justamente a missão de “tranquilizar” e inibir a célula vizinha. Sem esse efeito modulador, o cérebro entraria em colapso. A estimulação simultânea e desordenada de células resulta em manifestações desastrosas, como as crises epiléticas.
 

 


Capítulo XUm chaveiro de neurônios
 

O jovem cientista alemão Andreas Draguhn, de 35 anos, tem se debruçado durante anos sobre o quebra-cabeça dos microscópicos eventos ocorridos nas redes neuronais. Na Universidade Max Planck, seus olhos perscrutam diariamente estruturas moleculares do cérebro humano, o que lhe permite estabelecer padrões de comportamento dessas micro centrais de transmissão de dados.

Células clonadas, artificiais, oferecem a Draguhn a oportunidade de estudar a estrutura e função das moléculas, especialmente nas regiões pós-sinápticas. Ali, registram-se os in-puts de informação no neurônio. Nessa área, tem sido importante o estudo dos receptores, como que pontos de engate que se sensibilizam ao contato com os neurotransmissores.

“Temos uma enorme gama de eventos que se produzem durante esse processo de comunicação entre os neurônios”, afirma Draguhn. “Várias doenças e disfunções apresentam como causa alterações nesse processo”, diz. Conhecidos problemas neuropsicológicos têm, de fato, origem em distúrbios no funcionamento dos receptores. Nesse caso, de nada adiantariam doses suplementares de substâncias neurotransmissoras, como a serotonina e a dopamina.

Seria como se houvesse um grande estoque de chaves de boa qualidade, tornadas inúteis pela mudança nos segredos das fechaduras em que se conectavam. Somente a serotonina tem mais de uma dezena de diferentes receptores. Equívocos na hora de se abrir a “caixa do correio” neuronal podem ser responsáveis por diversas patologias, como o distúrbio obsessivo compulsivo, a esquizofrênia e a síndrome de pânico.

“O conhecimento desses elaborados sistemas de conexão pode resultar, no futuro, no desenvolvimento de novas drogas ou em eventuais práticas de prevenção de doenças”, afirma o cientista. O desafio hoje é conhecer melhor os padrões das múltiplas conexões entre as células, reconhecer suas especificidades e catalogar o repertório de funções dos neurotransmissores. Por último, entram em ação os chaveiros moleculares, como Draguhn, cuja especialidade é desvendar o segredo das fechaduras dos receptores. Encontrar a chave para a solução de mais um mistério na grande aventura do conhecimento do cérebro.
 

 


Capítulo XICrianças: na gênese da consciência
 

Na espessa e intrincada teia de neurônios, tudo está perfeitamente organizado, dividido, catalogado e indexado. Complicadas conexões nos permitem ver, ouvir, memorizar, vibrar e, ao contrário dos outros animais, planejar o futuro. O mais espantoso é que tudo se faz mediante um projeto meticuloso da natureza, nada se desenvolve ao acaso. As malhas de neurônios são geradas no lugar certo e na proporção exata. Todas as informações necessárias à estruturação dos mecanismos cerebrais já estão demarcadas no “guia de montagem e instalação” oferecido pelo DNA.

Logo depois do nascimento da criança, no entanto, vários processos são desencadeados no desenvolvimento das funções cerebrais. Um recém-nascido apresenta cerca de um quarto da massa cerebral de um indivíduo adulto, mas já tem quase todos os neurônios dos quais se valerá pelo resto de seus dias. Isso porque os neurônios e suas conexões crescem em tamanho, expandem-se, organizam-se em grandes linhas de processamento.

Para que o cérebro desenvolva todo seu potencial, é preciso que seja estimulado, provocado, trabalhado em suas centrais de comunicação. Nos primeiros anos de vida, o exercício de “musculação” mental garante o desenvolvimento das fibras nervosas capazes de ativar o cérebro e dotá-lo de habilidades.

Os primeiros quatro anos da criança são particularmente fundamentais para a estruturação das funções cerebrais. Um bebê que passe deitado, sem estimulação física, a maior parte do primeiro ano de vida certamente apresentará sérias anomalias em sua evolução. Muitos não conseguem se sentar antes de 21 meses e 85% deles não conseguem andar antes de três anos de idade. O mesmo ocorre com a visão. É fundamental o estímulo e peso da experiência no processo de aprender a ver.

No início da vida, as células nervosas são pequenas e esparsas. Não há uma malha fechada de conexões. Os neurônios processam sensações e informações somente quando estão agrupados em redes de especialização. A ginástica cerebral ajuda a estabelecer essas refinadas conexões e a sofisticá-las. A falta de uso condena os neurônios à morte.
 

 


Capítulo XIIAs habilidades eletivas
 

As mais recentes pesquisas mostram que cada habilidade depende de um tipo específico de conexão, cada uma delas com um tempo de maturação determinado pela natureza. No caso da linguagem, em algum momento do período que vai dos sete aos dez meses, a criança já identifica e imita os fonemas da língua materna. Ao chegar aos dois anos, os circuitos neurais estão em uma fase importante da evolução e estabelecimento de ligações. Nesse momento, é fundamental conversar com a criança para enriquecer-lhe o vocabulário.

É justamente nessa fase que o indivíduo começa a traduzir o pensamento em frases e a misturar as palavras, seguindo um projeto mental lógico. Os especialistas recomendam ensinar uma segunda língua antes dos dez anos de idade. Há grandes chances de que o novo idioma seja falado sem sotaque. No caso da música, a chamada porta da oportunidade está aberta entre 3 e 10 anos de idade. E, de fato, a maioria dos grandes músicos começou a desenvolver suas habilidades exatamente nessa idade.
 

Também as emoções e o equilíbrio psicológico dependem de exercícios cerebrais.
O processo tem início no primeiro minuto de existência e se estende até a adolescência. O sistema límbico é o principal centro ativado para essas funções. Essa maravilhosa usina das emoções funciona bem ou mal de acordo com o combustível que recebe e com a diligência dos operários que lhe dão manutenção. Um agrado ao menino que acertou um charada, por exemplo, estimula e fortalece as conexões do sistema límbico.
Dar parabéns ao garoto por ajudar um colega que se machucou tem o mesmo efeito. É como se programar a máquina do pensar para que no futuro o indivíduo seja sociável e solidário. Essa é a gênese física do bom cidadão, daquele que poderá, na maturidade, desprezar o “jeitinho”. O que não quer dizer que doses de exercícios desse tipo possam transformar o pequeno em um Ghandi, ou em um Luther King. Para que surja um fora-de-série desse tipo é necessária uma complexa combinação de fatores genéticos, educacionais e ambientais.

Moldando o caráter da criança – Segundo o consagrado neurologista norte-americano Antônio Damasio, emoção e razão estão intimamente ligadas e “acertar” na vida depende muito da qualidade dessa mistura. Um abraço e palavras de estímulo à criança que caiu do escorregador podem produzir importante diferença na conformação dos microscópicos circuitos de entrelaçamento das emoções e da razão. Uma sucessão de experiências desse tipo pode conferir à criança a capacidade de controlar as emoções e, anos depois, sair-se bem de situações embaraçosas ou de risco.

As experiências ligadas ao medo também são importantes nesse aprendizado. A amígadala (uma região destinada a tocar a sineta do alarme e da inibição) é responsável pelo grito de horror da criança acuada por um gato enraivecido. A experiência fica gravada de acordo com a intensidade da emoção. A memória desses fatos funciona como um guia de conduta futura para o indivíduo, auto-instruído a não enfiar a mão na jaula do leões quando levar os próprios filhos ao zoológico.

O esportista e a dançarina – Por volta dos cinco anos de idade, a criança desenvolve o senso de lateralidade e de direcionalidade. Completa a estrutura mental que lhe permite reconhecer conceitos como o de em cima e embaixo. Enfim, aprende a se localizar no espaço. É o momento indicado para iniciar atividades como a dança e o esporte.

Depois de várias fases de desenvolvimento, a criança ultrapassa os dez anos e passa a cultivar o pensamento abstrato. É o primeiro passo para o amadurecimento final. O cérebro do adolescente já formula hipóteses e tira conclusões a partir dos fatos observados. Nesse momento, o indivíduo passa a conhecer as próprias habilidades e pode definir, por si próprio, de que maneira pode ajudar o próprio cérebro a completar o ciclo de evolução.
 

 


Capítulo XIIIO tortuoso caminho do conhecimento
 

Conhecer as complexas relações entre a cognição (aquisição de conhecimento, percepção), o comportamento humano e as atividades do sistema nervoso sempre foi um desafio para a ciência. Em anos recentes, a tarefa de desvendar esses mistérios vem sendo realizada metodicamente pelos especialistas em neuropsicologia. Nesse campo, reúnem-se estudos de anatomia, fisiologia, neurologia, psicologia, psiquiatria e etologia. Uma das metas perseguidas há séculos tem sido reconhecer a causa de distúrbios da cognição e da especificidade de determinados comportamentos humanos.

A importância dessa pesquisa já era conhecida na Grécia antiga. Era uma época em que o homem passava a ser o centro das atenções da atividade intelectual. Não por acaso, um filósofo foi o introdutor do estudo das relações entre cérebro e comportamento. Alcmaeon, habitante de Crotona, uma cidade grega do sul da atual Itália, dissecou cadáveres e buscou no cérebro o segredo para as atitudes humanas. Na mesma época, a função do cérebro na manutenção da consciência e como controlador dos movimentos já era conhecida por Hipócrates, um dos fundadores da medicina.

No século 18, Franz Joseph Gall (1758-1828), concluiu que as funções mentais seriam localizadas em regiões específicas do córtex cerebral. O anatomista descreve as distinções entre a substância cinzenta e a substância branca do cérebro. Segundo ele, a primeira seria matéria fundamental para as atividades da mente. A comprovação de que áreas específicas do cérebro estavam relacionadas à cognição só ocorreu no século passado. Até então, as idéias localizacionistas eram repudiadas por médicos e psicólogos. Não se acreditava que funções complexas pudessem se concentrar em áreas restritas.

Em 1861, Pierre Paul Broca (1824-1880) descobriu que uma grave lesão na base do terceiro giro frontal esquerdo provocava sérios distúrbios da expressão verbal. O cientista chegou à conclusão, tempos depois, de que essa área era o centro da imagem motora das palavras.

“Foram descobertas que estimularam a abertura de um enorme campo de estudos, capaz de iluminar o porão escuro onde se ocultam alguns dos maiores segredos humanos”, afirma o professor Ricardo Nitrini, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um dos mais conhecidos e conceituados neurologistas do País. “Esses estudos evoluíram a ponto de hoje investigarmos as mais finas estruturas cerebrais, como a composição molecular das redes neuronais”, diz.

Na verdade, o estudo da neurologia reúne hoje a observação cuidadosa de comportamentos, do funcionamento de macro-regiões do cérebro e, por último, de eventos microscópicos que ocorrem nas células. O avanço nessas pesquisas mostrou que o mapeamento das funções cerebrais é mais complexo do que se imaginava.

Hoje, o conceito mais aceito é o de que as funções superiores se engendrem mediante complicados sistemas funcionais. Uma função complexa não depende unicamente de um “centro”, mas da ação sincronizada de diversas regiões conectadas entre si. Cada área é, de fato, responsável por uma ou mais atividades elementares, que contribuem de modo específico para um função particular.
Há, portanto, uma intercomunicação entre os diversos “departamentos” do cérebro. Trata-se de um espécie de fábrica, com setores encarregados de funções específicas, mas interdependentes. Um atraso na linha de montagem final de geladeiras pode não ser provocado por um problema com as máquinas ou operários do setor. Pode, na verdade, ter como causa uma falha na área encarregada de abastecer a linha de produção com as portinholas do congelador.
 
 

 


Capítulo XIVUm passeio guiado pela cidade cerebral
 

O cérebro humano é uma enorme megalópole eletrificada, em funcionamento 24 horas por dia, residência de bilhões de diferentes “etnias” de neurônios. Nessa grande urbe, cada um tem sua “profissão”. Visto como indivíduo, um neurônio pode parecer pouco importante. Se concebido como parte de uma fantástica teia de trabalho e produção, no entanto, consistem em uma das mais perfeitas e misteriosas criações da natureza. É solidário e dado a um certo tipo de socialismo: costuma repassar aos irmãos tudo o que recebe, em organizados processos de troca e interação.

Emocionalmente, é um camarada desinibido e afetuoso. Toca a parceira com seus longos axônios (braços de comunicação) e promove processos eletroquímicos extremamente sensuais nas sinapses. Adoram a vida em família. No córtex cerebral, convivem pacificamente em clãs, como os estrelados e os piramidais. Quando o neurônio “pensa” – em um exercício de metalinguagem – tem clara sua missão de movimentar o complexo mecanismo que permite ao homem raciocinar, tomar decisões e se apaixonar.

A cidade cerebral tem cruzadas e entrelaçadas vias expressas, tem avenidas, ruas e becos. São feixes de nervos que permitem ao eventual visitante deslocar-se rapidamente por seus “bairros” e conhecer as modernas usinas processadoras de informações. O conjunto “urbano” é formado por quatro estruturas interligadas: a medula espinhal, a soma do tronco cerebral e do cerebelo, o diencéfalo e os hemisférios cerebrais.

A medula espinhal tem funções apenas indiretamente ligadas às atividades nervosas superiores. É como um município autônomo, porta de entrada para o interior do “país”, o corpo humano. O tronco cerebral (bulbo, ponte e mesencéfalo) é o pólo fabril dedicado a exercer efeito modulador sobre os neurônios corticais. Humor e concentração, por exemplo, dependem dessa função. O cerebelo é um núcleo dedicado a múltiplas atividades, entre elas o equilíbrio e a coordenação.

O diencéfalo é um importante centro coordenador de funções, formado pelo tálamo e o hipotálamo. O primeiro consiste em uma massa cinzenta que processa a maior parte das informações destinadas aos hemisférios cerebrais. É uma grande estação de elaboração dos sentidos. O hipotálamo mistura as funções de um posto de gasolina e de um complexo CPD. Regula a função de abastecimento do sistema endócrino e processa inúmeras informações necessárias à constância do meio-interno corporal. Coordena, por exemplo, a pressão arterial, a sensação de fome e o desejo sexual.

O hipocampo é um grande banco de dados. Nele, milhares de “neurônios” bibliotecários armazenam registros de fatos e eventos. As informações ali guardadas servem para regular a atividade de várias outras áreas do cérebro. A região conhecida como amígdala também trabalha na seleção de dados e ainda dispara sinais de alerta quando reconhece um perigo ou situação de ameaça.

Na grande cidade do pensamento, os hemisférios cerebrais são o que há de mais moderno. Todo neurônio gostaria de trabalhar ali. Seja nos gânglios basais, na substância branca ou no córtex cerebral. São essas centrais que comandam as atividades mais evoluídas do cérebro e distingüem o homem dos outros animais. O hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo, enquanto o hemisfério direito controla o lado esquerdo.

De muitas formas, cada hemisfério é um espelho do outro, mas há especializações no trabalho. Em muitos indivíduos, as principais áreas que controlam o desenvolvimento e uso da linguagem estão do lado esquerdo. Ao mesmo tempo em que o hemisfério direito concentra áreas dedicadas ao processamento da visão tridimensional.

O córtex ocupa o andar mais alto dos “prédios”dos hemisférios. São uma capa de substância cinzenta de 0,3 centímetros de espessura. Seus sulcos e fissuras definem as regiões do lobo frontal, temporal, parietal e occipital. O lobo frontal é um lugar para trabalhadores altamente especializados, cultos e íntegros. Concentra-se ali uma enorme variedade de importantes funções, incluindo o controle de movimentos e de comportamentos necessários à vida social humana, como a compreensão dos padrões éticos e morais e a capacidade de prever as consequências de uma atitude.

O lobo parietal recebe e processa informações dos sentidos, enviadas pelo lado oposto do corpo. O lobo temporal é um moderno estúdio que acolhe desde grandes orquestras até grupos de Axé Music: está permanentemente envolvido em processos ligados a audição e memorização. O lobo occipital é uma espécie de central cinematográfica, o centro que analisa as informações captadas pelos olhos e as interpreta mediante um intrincado processo de comparação, seleção e integração.

Na superfície medial do hemisfério cerebral, encontra-se o corpo caloso, um feixe de 200 milhões de fibras nervosas que une os dois hemisférios. Uma espécie de ponte entre os dois arranha-céus da mente. Mesmo apresentando regiões extremamente especializadas, uma boa área do córtex não é utilizada em funções sensórias ou motoras, atuando em complicadas atividades mentais. É uma área secreta, de segurança, onde não são permitidas visitas públicas.
 
 

 


Capítulo XVA inútil palavra
 

Como bom cientista, o professor Izquierdo gosta de desconfiar. Na mira, especialmente os testes para medição de coeficiente intelectual. Na verdade, o professor identifica o cérebro como uma enorme área de matas intocadas, onde ainda se escondem pequenas usinas de processamento de informações. O funcionamento desses sistemas constitui-se em um enigma incapaz de ser decifrado pela trilha dos questionários. Izquierdo afirma que a palavra inteligência talvez já não seja útil, por não designar nenhuma função ou capacidade específica do cérebro. As habilidades de cada um seriam o imprevisível resultado do cruzamento de características hereditárias e de todos os fatores culturais e ambientais.

Estado: Em sua opinião, quais foram, nos últimos anos, os maiores avanços no estudo do cérebro?
Izquierdo: Posso dizer que são vários. Em primeiro lugar, a descoberta da estrutura e função da maioria dos receptores sinápticos importantes. Em segundo, o conhecimento detalhado da função sináptica, inclusive das alterações causadas pela experiência.
Em seguida, o conhecimento funcional de várias vias nervosas importantes, principalmente as das percepções. Temos de destacar também a determinação de genes ligados a várias funções fisiológicas e em diferentes estados patológicos. Há também o desenvolvimento de várias drogas úteis e com poucos efeitos secundários para o tratamento de depressão, ansiedade, esquizofrenia e várias formas de epilepsia.
Ainda temos de sublinhar o desenvolvimento, em psiquiatria e neurologia, de métodos de diagnóstico precisos para a localização de lesões ou disfunções cerebrais. Em nosso campo, demonstrou-se que existem vários tipos de memória, cada um com mecanismos neurais próprios.

Estado: Quais foram, nos últimos anos, os grandes avanços nas pesquisas sobre a inteligência humana e as habilidades específicas?
Izquierdo: Houve poucos avanços reais nesse campo. Acontece que, na verdade, é bem possível que a palavra inteligência já não seja mais útil: não designa nenhuma função ou capacidade específica do cérebro. O termo abrange um conjunto difuso de funções cognitivas, que incluem percepção, memória e várias outras. Essa expressão omite o condicionamento por fatores ambientais, culturais e emocionais.

Estado: Afirma-se hoje que a “inteligência emocional” é fator fundamental na avaliação de capacidades e habilidades humanas. Testes de aptidão são utilizados por escolas e empresas, em adição aos exames que verificam habilidades lógico-matemáticas. Pode-se acreditar na criação de um teste confiável, que de fato avalie as potencialidades do indivíduo?
Izquierdo – O termo inteligência emocional é pior ainda que o termo inteligência. Implica na adjetivação de um substantivo cujo significado não conhecemos. Os pesquisadores sérios nessa área não usam essa expressão. Ela provém do título de um “best seller” que é divertido e às vezes interessante de ler, mas não é um livro científico e está cheio de conjecturas e suposições apresentadas como se fossem coisas demonstradas.
O que sim é importante, motivo de estudo e objeto de diversas formas de avaliação, é a participação das emoções na cognição, na memória ou no desempenho de uma forma geral. Há vários testes para medir isso, cujos resultados se expressam, às vezes, em termos de “coeficiente emocional”.
Esse coeficiente fornece uma melhor estimativa de desempenho futuro que o famigerado Q.I.. De pouco adianta contratar, numa empresa ou num time de futebol, um grande especialista em determinada área se a pessoa é agressiva e pouco sociável.

Estado: Herança genética ou educação. O que define a mente humana em termos de desempenho?
Izquierdo: Tanto a herança genética quanto a educação são importantes para o comportamento humano. É impossível saber em que proporção ambas influem na mente humana ou no desempenho. Deve variar muito de pessoa para pessoa. Veja o caso de Stephen Hanking, com mente 100 e desempenho zero. Ou o de Garrincha, quase o oposto. Em ambos os casos, tudo depende do que queiramos chamar mente e do que queiramos chamar desempenho.
 

 

Maiores informações:
http://www.estado.estadao.com.br/edicao/especial/ciencia/cerebro/cere15.html

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