Aimé Michel é um dos maiores especialistas da Europa em assuntos espirituais. 

Neste artigo, analisa uma questão bastante simples:  
porque nós todos elegemos certos lugares como “sagrados”. 

Ele mostra como determinados sítios possuem um magnetismo especial,  
estão como que imantados, impregnados de uma atmosfera  
que nos acompanha por toda a vida.

sacred place

        Lamentais por acaso o tempo em que Vênus Astatéia, filha dos mares, inspirava aos jovens as suas primeiras preces e aos poetas os seus primeiros versos; tempo em que cada lareira tinha o seu deus lar, cada riacho sua ninfa ou seu gênio, cada terra seu “Korrigan” e cada lagoa a sua fada? Esse tempo foi ontem, foi esta manhã mesmo. Toda essa gente invisível está ainda entre nós. Ali onde nossos pais inventaram seres à sua imagem, nós nos interrogamos. As leis da eletricidade estática exorcizaram Zeus e Táranos; Marte não é mais um deus, mas o objetivo de nossos telescópios e de nossas sondas espaciais; Mercúrio é um metal, e Vênus, um hormônio. 

       Uma multidão de deuses morreu cedo demais, abandonando nos indefesos, cara a cara com as forças desconhecidas que eles personificaram. O que é Cronos? O que é Belona? Quem é Caronte, o funesto navegante? O que é, perguntamos, o Tempo? Que loucura, que molas secretas impelem, desde sempre, os homens a matarem se uns aos outros? E sabemos nós o que é a morte? A lucidez dos tempos modernos, do após Renascimento, recusa se a dar a estas questões uma resposta correta. Para liquidá las mais depressa alguns se recusam a admitir que existam. E como, no fundo de nós mesmos, sentimos que as questões persistem, o absurdo da negação leva muitos de nossos contemporâneos a duvidar da razão invocada para negá las, e que é a própria razão. De nossa parte, preferimos admitir, quando necessário, a realidade do mistério. Olhá lo de frente e, já, conhecê lo um pouco. É, pelo menos, tentar elevar nossa razão até o nível dele (que pode ser esmagador), na esperança de que o domine um dia.

        E, de todos os mistérios, o mais esmagador me parece o que envolve certos lugares. Cada qual tem os seus. Peço licença para evocar os que mais me impressionaram. A primeira vez em que vi erguer se diante de meus olhos a silhueta de Notre Dame foi numa tarde, ao cair da noite, durante a guerra. O adro estava bastante deserto. Eu tinha vinte anos, uma cabeça bastante vaidosa de suas leituras, e toda a reserva que um tolo, convencido de ter visto todas as coisas, pode impor aos movimentos impensados do coração e da imaginação. Lentamente eu me dirigia para a protuberância do quilômetro zero (que, como se sabe, marca o ponto de partida de todas as estradas da França), e a fachada, de onde não tirava os olhos, lentamente crescia diante de mim. 
Como se, rompendo um dique, a maré arrasasse com um movimento irresistível tudo o que lhe estivesse à frente, eu me senti de repente, sem aviso, erguido, transportado, submerso na vaga das coisas que há 2 mil anos tinham acontecido ali, sobre aquele chão que eu pisava, e que se comprimiam desordenadamente em minha cabeça, libertada de todos os seus pequenos mecanismos protetores.   

 

Por que chorei no adro de Notre Dame. 

        Os reis, os mártires, os guerreiros normandos, Camulogeno e Juliano, o Apóstata, Tomás de Aquino e Jacques Coeur, Luis IX e François Villon, e a multidão infinita e anônima dos pés gauleses, latinos, romanos e franceses, pés nus dos camponeses e dos servos, botas dos cavaleiros, sandálias de monges, tamancos das cavalgadas religiosas, burguesas ou militares   tudo isso eu ouvia, eu via, no adro deserto do tempo da ocupação, e se não cai de joelhos foi porque, até que essa legião de mortos se perdesse ao longe e a noite me chamasse a mim mesmo, tudo aconteceu como se nenhuma lembrança, por mais leve que fosse, restasse em mim do camponesinho pedante e bárbaro que eu era.

        Não cai de joelhos, não, mas chorei. Pela primeira vez na minha vida, eu estive por um instante mergulhado em alguma coisa maior do que eu, maior do que qualquer homem vivo ou morto, em alguma coisa que participava da vida e da dor, do amor e da morte de todos os homens, lembrados por um momento, naquele lugar, pelo sentido misteriosamente sagrado do próprio lugar. Experimentei, muitas vezes mais, essa sensação de ser eclipsado e fundido em algo maior que nós mesmos, no segredo, por assim dizer, de uma multidão humana, reduzida à sua alma incomensurável, às cinzas de seus esqueletos dispersos. Aconteceu, por exemplo, no fundo do dólmen das Pierres Plates, no extremo da península de Locmariaquer, no Morbihan. Era, também, ao cair da tarde. Ouviam se apenas o rumor do oceano e o barulhinho de um rato, nos papéis jogados pelos turistas. Apoiando, entretanto, a testa na rocha, percebi de repente que, assim como a pedra de Notre Dame, aquela também não podia ser tomada como uma simples pedra. Homens tinham vivido ali, uma única vez e para sempre, e uma coisa indestrutível e provavelmente desconhecida deles mesmos se havia encarnado naqueles blocos, enquanto os quatro ventos dispersavam o pó de seu corpo efêmero.  

 

Creio em alguma coisa

        Admito que um fundo de receio indefinido e de reverência religiosa, mais ou menos consciente, possa ser considerado o inspirador de tais cismas da alma. Pelo menos no papel, é fácil e confortador imaginar explicações semelhantes: poderemos assim dizer que Aimé Michel foi educado no respeito ao sofrimento e à morte. E, como, além disso, ele não se sente atraído nem por um nem por outra, cada vez que um lugar carregado de lembranças a convida, sua imaginação se põe em movimento, através de uma inversão inconsciente, mas bem conhecida da mais elementar psicologia, projetando lhe na carne os tormentos do próximo.

        O mais impregnado de sentido humano, entre todos os monumentos da França, oferece lhe, aqui, essa oportunidade. Elevai esta emoção às dimensões da multidão e Notre Dame se tornará um lugar sagrado. Se não fosse Notre Dame, poderia ser, do mesmo modo, um bosque, como por exemplo, o que domina Domrémy, uma fonte como Lourdes ou como a do Sena, uma pedra, um pequeno vale. Eis, então, um lugar promovido pela consagração dos velhos temores e dos antigos mitos à categoria do divino. Sim, são fáceis essas explicações. Apagam qualquer mistério e convidam o espírito a passar adiante. À custa de algumas palavras pedantes, podem até fantasiar se com farrapos científicos, invocando para si qualidades de ciência. Mas, ao lado de quem? Apenas M. Marcel Boll e seus iguais   que jamais descobriram e jamais virão a descobrir coisa alguma   quiseram fazer nos crer que a explicação reside na ciência.  

 

Senti a presença de todos os mortos

        A ciência teve sempre um único objetivo, que consiste em prever os fenômenos, mesmo quando ela nada compreende o que freqüentemente acontece. Toda a explicação que não serve senão para explicar é um soporífero e nada mais: quem compreendeu não faz mais perguntas.

        Seria tempo de ensinar às crianças, desde a escola elementar, que qualquer pessoa que se põe a explicar por explicar é um inimigo do saber.

       Voltemos, entretanto aos lugares sagrados. Admitamos até a explicação inútil e não verificável de um medo difuso da morte. Mais uma lembrança, que, à primeira vista, confirma esta hipótese, me vem à mente. Foi há alguns anos, durante as férias de verão. Em companhia de minha mulher, eu visitava, pela primeira vez, os Vosges. Havíamos rodado a manhã toda pelo caminho das cristas, descendo para o sul, dominando, de colina em colina, o sombrio tosão dos pinheiros, quando uma elevação, visivelmente trabalhada pela mão do homem, apareceu de repente entre as árvores: à esquerda, avançava abruptamente sobre as profundezas azuis da planície da Alsácia, e, de longe, não se podia ver se tratava-se de uma fortaleza, de ruínas ou de uma área de escavações. Perdemo la depois de vista e foi só quando, finalmente, nos aproximamos dela, que percebemos sua verdadeira natureza.

       Era o Hartmannswillerkopf, o famosíssimo velho Armando da Primeira Guerra Mundial. Velho Armando: este nome representava para mim, aliás, alguma coisa mais que uma aborrecida lembrança escolar. Mas, o quê? Compreendi quando, ao visitar o cemitério, deparei com as sepulturas ali deixadas pelo batalhão de caçadores alpinos, no qual combatera o sargento Jules Michel, meu pai. Nada é mais monótono que o horrível absurdo dos cemitérios militares e eu, que só não descansarei em um deles por ter sido poupado do alistamento militar, graças à paradoxal proteção de uma enfermidade, creio senti la mais que os outros.   

 

Hartmannswillerkopf

Cada vez que vejo o túmulo de um soldado, não posso impedir me de pensar e por que o faria? que esse pobre cadáver repousa naquele lugar unicamente porque foi o corpo de um homem sadio, admirável produto de 3 mil anos de meditação da natureza, e destinado a uma vida triunfante e fecunda: e que, se ele tivesse sido menos adequado à sobrevivência, teria, como eu, sobrevivido, pois a guerra pratica a seleção às avessas, isto é, através do extermínio dos melhores. Quando, porém, ali, descemos à cripta escavada em homenagem aos mortos, estes pensamentos e muitos outros, que fazem da visita a um cemitério militar uma experiência angustiosa e salutar cederam lugar a um sentimento muito diferente, muito mais difícil de expressar e do qual, juro, o medo da morte estava totalmente ausente. 

        Nenhum temor existia em mim quando li, na pedra do monumento, à direita, o admirável versículo de Ezequiel, 37:9 “Espírito de Deus, sopra os quatro ventos sobre estes cadáveres, para que vivam”

       Senti à minha volta a presença de todos aqueles mortos inúteis e a espantosa massa psíquica de sua coragem, de seu esquecimento de si mesmos, de seu sofrimento aceito e superado até a prova suprema. Nenhum medo, mas, sim, uma ternura e uma piedade maiores do que pode conter o coração de um homem e do que sua linguagem pode expressar, ao mesmo tempo que um orgulho estranho de ser filho de um planeta capaz de criar tais virtudes.

       Esquecia me então de que o crime que ali sepultara tantos jovens franceses e alemães era, também, alguma coisa de terreno, e de que me cabia, talvez, maior parte do crime de uns de que do heroísmo de outros. Mas o homem que não perdeu sua infância espontaneamente, se identifica com o herói, principalmente quando vencido, mais do que com o assassino. Fora o que eu vira, ao observar as reações da multidão, na vigília do campo de extermínio de Struthof, no outro extremo dos Vosgues. E se tentar chegar ao fundo da fascinação que sobre mim e minha mulher exercia esse lugar, todo feito de dor e sangue, lá encontrarei a sensação de algo sobre humano, invisível, mas presente, a sensação da única coisa sobre humana que nenhum orgulho ousa desafiar: a grandeza moral. Cem vezes meu pai me contara, com a voz enrouquecida pelo gás iperite, o suplício daqueles homens que ali estavam, esperando sob a terra a promessa de Ezequiel. Todos odiavam a guerra. A piedade que sentiam por si mesmos, eles a estendiam a todos os que morriam do outro lado, no mesmo lamaçal. 

 

Estamos adormecidos, à espera do despertar

        Numa noite de Natal, quando entre duas cargas de fuzil os companheiros de meu pai cantavam antigas canções provençais que haviam aprendido na infância, tão próxima e, no entanto, para eles, tão longínqua, alguma coisa, vinda de outra trincheira, inacessível, a 25 metros, caiu entre eles, com um barulho leve, diferente daquele que lhes era familiar, da granada. De fato, era fumo. Fumo turco, enviado talvez pela sua mulher, da Prússia ou da Baviera, ao anônimo soldado alemão, tomado também do mesmo sentimento de piedade. Sim, horrorizava os o sangue derramado, a tal ponto que, ao voltar da guerra, coberto de honrarias, meu pai jamais quis voltar a tocar em um fuzil nem sequer a torcer o pescoço de uma galinha ele, que fora outrora apaixonado caçador de camurças. Chegavam a ser antimilitarista heróis, como Peguy, como Pergaud, morto este, se não me engano, na floresta de Woëvre; a frente de seus homens, em um ataque de trincheira para trincheira. Os diários de viagem de meu pai, encontrados após sua morte, não traduzem senão um longo protesto contra o assassínio transformado em dever e, ao mesmo tempo, uma prece dirigi da às forças incompreensíveis que conduziam, talvez, os homens, dando lhes coragem para cumprir até o sacrifício de si mesmos, aquele dever odioso. Malditas sejam as cabeças porventura responsáveis por essa imbecil e colossal dissipação de virtudes humanas, atiradas de povo contra povo, para a sua destruição. De tantas virtudes imoladas em vão, em alguma coisa, porém, subsiste na terra em que o sangue secou. Nunca mais será possível alguém percorrer os calvários do velho Armando, do Cheminn des Dames ou de Verdun, sem descobrir se e calar se, na atitude e no recolhimento do homem subjugado por aquilo que traz de maior dentro de si, e que a visão de certos lugares lhe desvela diante dos olhos, através de sua alma dilacerada. 

        Como acreditar que a terra onde homens aceitaram tal agonia possa voltar, como antes, ao ciclo das estações, que o canto dos pássaros nas árvores, e as flores dos caminhos sejam, ali, de novo, apenas flores e cantos de pássaros? Como acreditar que não escondam alguma coisa enorme e sagrada, que escapa aos nossos olhos porque estamos dormindo, esperando que despertem?

        De mãos dadas; minha mulher e eu permanecemos imóveis e silenciosos no meio da cripta. Atentos àquela presença que nos dominava, nosso pensamento influenciado pela força daquele lugar, obstinadamente se voltava para a criança que ela trazia em seu seio e cujos movimentos já sentia   vida nascente, no meio de tantas vidas destruídas. “Nada é mais misterioso de que o começo”, dizia Teilhard de Chardin. Ao surpreender, às vezes, no olhar de meu filho, uma nuvem de apreensão, não posso evitar o pensamento de que um pedaço de sua alma, pelo menos, nasceu na cripta do velho Armando, num dia de agosto, em que o sol, refletido na brancura dos túmulos, nos ofuscava a vista.  

 

        Parece me que as fontes participam do mesmo caráter sagrado dos campos de batalha. O homem da cidade que, pela manhã, gira uma torneira para encher sua banheira com água morta e clorada, não pode mais saber o que é uma fonte, ao mesmo tempo pranto, ferida e seio. Existem entretanto algumas, bem perto de Paris, como a da pequena aldeia de Souzy, entre Dourdan e Arpajon, que se conservaram rústicas como antigamente. As crianças, mais sensíveis de que nós aos grandes ritos da natureza, não se cansam de contemplar as fontes e de brincar com elas, como se ali encontrassem a bem-aventurança (falo dos pequenos camponeses, que não tomam a fonte como um furo na canalização). E, em todos os países do mundo, a criança que se tornou adulto volta à fonte em que brincou, para reencontrar nela a sua infância.

         Por que exerce o jorrar da água subterrânea tal fascinação? Se, para descobrir a resposta, eu tentar buscar em mim a criança que fui, encontrarei, logo, a primeira pergunta: “De onde vem ela?” A água das fontes é, ao mesmo tempo, límpida e sombria. Mesmo quando o sol brinca na fonte, adivinhamos sob o brilho da água o poder infinito e oculto do impulso que eternamente cria os insetos, as florestas, as estrelas e o nosso espírito indagador. Porque nada pode conter uma fonte. Ela empurra todas as calafetagens contorna todos os vedantes. Ela é a própria imagem do tempo, que nenhuma força pode impedir de criar e de devorar todas as coisas, com a mesma imparcialidade. Terá alguém observado, entretanto, que o culto das fontes está geralmente ligado ao dos antepassados?

       Pranto, ferida e seio, a fonte é, de fato, também semente, e duas vezes: pelo simbolismo de sua imagem e pela fecundidade que leva aos campos, aos prados e aos jardins. “De onde vem ela?”   perguntava me eu, olhando a fonte de minha terra natal. E logo depois: “eu mesmo, de que fonte saí?” Sem conseguir formular o pensamento, ou melhor, desprendido das malhas da linguagem, eu imaginava o tempo fabuloso em que não existia, como o caminhar infalível da gota, na rocha. No egocentrismo natural das crianças, rejeitava aqueles tempos misteriosos, nas trevas, reservando para mim, ao final de uma linhagem interminável de antepassados subterrâneos, a eclosão alegre da água. Somente eu era uma criança: todos os outros estavam mortos. O ‘acontecimento único e milagroso da fonte era eu. E agora, apenas mais esta observação: nunca, naquela época, me ocorreu que aquela água, uma vez brotada da terra, passava a correr, irremediavelmente, para todas as espécies de acaso. Talvez as crianças nascidas na embocadura de um rio, habituadas a ver aonde chegam as fontes, tenham outra idéia do movimento eterno da água. 

 

O olhar de seu primeiro habitante 

        E assim, como o inconsciente coletivo dos homens é inicialmente, a nostalgia de uma infância imortal, talvez o estudo dos mais antigos mitos da água permitisse dizer se um povo vem da montanha e outro do mar, se vem das fontes ou das embocaduras. Para o homem da montanha, a água é o universo inesgotável e criador, o cosmo insondável e límpido. Terá sido por acaso que o gênio de Einstein e o de Spinoza nasceram à sombra do Sinai? Será por outro acaso que a observação desesperada, a respeito dos rios em que alguém se banha uma vez apenas, é de Heráclito, cidadão de Êfeso e homem do mar?

        Ao mesmo tempo que, outrora, o berço das fontes conseguia apenas divinizá las, e, através delas, a Terra Mãe, um motivo bem mais palpável associava espontaneamente, no espírito de seus habitantes, a idéia da água nascente com a de seus antepassados: se o trabalho milenar do camponês sobre a terra é visivelmente em qualquer lugar, se a marca dos mortos de outro modo completamente esquecidos é ali, mais de que em qualquer outro lugar, evidente, é por causa da força que as coisas têm nas proximidades da fonte. É ao lado dela que se constrói a casa, que floresce o jardim.

        A fonte de minha terra, que jorrava certamente há alguns milhares de anos, no meio de uma floresta de declividade regular, sai agora ao pé de um colossal muro de pedras, por cima do qual a terra do campo, situado rio acima, está prestes a transbordar, e aquilo (segundo meu pai, que já ouvira do seu), desde “sempre”. Sob a fonte, um talude de altura sensivelmente igual acrescenta seu desnível ao do muro de pedras, embora o trabalho do homem, desde que a região passou a ser habitada, deva ter modificado de cerca de 8 metros o nível do solo, em uma extensão que não posso avaliar precisamente, mas que ultrapassa, com certeza, 1 hectare. Os bulldozers (tratores)fizeram melhor, depois: é claro, e precisamos respeitar os bulldozers, em consideração àqueles que dispuseram apenas de seus braços para transformar a natureza.

       Como poderia deixar de inspirar veneração igual à que despertam os campos de batalha um lugar assim, onde o trabalho dos homens chega quase a igualar se ao da natureza, onde a grandeza desmedida daqueles torna tão palpável o acúmulo dos séculos e a paciência das gerações, comparável à do mar, que sempre recomeça? Como deixaria de tornar se sagrado? São incontáveis as peregrinações que tiveram como destino uma fonte. É antigo o rito do equinócio de outono, na fonte de Carnaque, na Bretanha.  

 

        Os arqueólogos descobriram uma espécie de Lourdes gaulesa, nas fontes do Sena, com inúmeros ex votos como testemunha do mesmo fervor que cercava a gruta de Massabielle, e as mesmas curas milagrosas. A própria maneira de agradecer à divindade pelos benefícios recebidos não mudou. 

         Quando Plutarco nos fala do santuário onde era sacerdote, temos a impressão de estarmos lendo um moderno boletim paroquial. É preciso reconhecer, entretanto, que os ancestrais e a Terra Mãe não explicam tudo. Talvez não expliquem sequer o essencial. Existem, de fato, lugares que nenhuma fonte, nenhum trabalho humano, nenhuma lembrança histórica jamais santificaram e onde, no entanto, até o visitante inadvertido sente crescer dentro de si o silêncio, a prece ou o pavor. A Bretanha é rica de lugares assim, nos quais a vista não distingue nada de especial e onde, no entanto, o primeiro passo desperta no homem os ecos de cavernas insuspeitadas. É verdade que na Bretanha cada um desses lugares tem sua lenda e podemos, a rigor, imaginar que, criada a partir de um fato esquecido, a lenda se nutre da narração que dela se faz, ampliando a e precisando a. As narrativas reunidas por Lê Braz podem sugerir esta interpretação.

        Aqueles cuja curiosidade se aplacou com esta primeira explicação verossímil não leiam adiante: aborrecer se ão, certamente, com o que me resta dizer. Pois conheço nos Alpes alguns lugares que nada têm que chame a atenção, aos quais nenhum folclore, nenhuma estória, nenhuma lembrança ilustre empresta qualquer colorido e que, no entanto, se impõe ao homem e talvez até aos animais, como se ali se tivesse perdido a chave de um mistério colossal, de cuja existência a emoção de nosso sexto sentido nos viesse advertir. Todos os alpinistas solitários sabem o que quero dizer.

        Claire Eliane Engel assinala alguns desses lugares em uma região dos Alpes que não conheço: o Oberland bernense e o maciço de Cervin. Esta magnífica historiadora do alpinismo observa que freqüentemente se trata de velhas cabanas, “onde alguma coisa acontece”. Desta vez, não sou da mesma opinião. Creio, ao contrário, que foi nesses lugares que os pastores e os caçadores de camurças construíram outrora suas cabanas exatamente porque sentiam uma vontade irresistível de demorar se ali, de ali sentar se diante do fogo e de ali dormir.

        “Qual é a montanha mais bela?” –  perguntava eu um dia ao meu companheiro de infância Jules Bréchu, guia em Oisans. 
  
         “A mais bela. . .” –  disse o sonhador – “a mais bela, espere . . . Parece tola, mas . . .”

         Jules Bréchu nasceu no México, viu o Orizaba e o Popocatepetl. Faz parte da pequena elite dos escaladores, daquele clube ultra selecionado dos trepadores, que se podem vangloriar de ter escalado a face norte das Grandes Jorasses.

         “Sim, parece tolo, e não consigo explicar-lhe, mas a mais bela montanha não é uma montanha. É uma cabana. E, nem isso. Não é aquilo que se vê, é… Mas, de que adianta explicar? Você conhece bem essa cabana.”

         E, de fato, ele citou a cabana mais familiar, mais querida ao meu coração, aquela à qual se dirige meu pensamento cada vez que sou invadido pelo mistério de tudo o que este mundo sem limites traz em si de beleza, de juventude e de amor. Estava estupefato. Acreditara, até ali, que o segredo daquele lugar se revelara unicamente para mim e para os meus conhecidos em cuja companhia eu descobrira, ali, simples como um reflexo na água, a inexprimível maravilha de ser.  

 

         Eu conheço um lugar sagrado Renan explica em algum lugar por que não conseguiu jamais se decidir a publicar as cartas de sua irmã. “Teria sido”, disse ele, “a mesma coisa que colocar o retrato dela em leilão”. Um sentimento parecido inspirou me a mesma descrição. Desejo que minha velha cabana e a paisagem que a cerca continuem desconhecidas e anônimas, até a destruição do último cume alpino.

        Cremos, pois esse é o móvel de toda a ciência desde o despertar da razão, que o essencial fica sempre por descobrir. Esta é uma das regras morais que temos maior dificuldade em explicar àqueles que, com um pavor sagrado, se recusam a avançar para o futuro senão aos recuos, e que, de olhos postos na estrada já aberta por outros, perdem, condenando os novos desbravadores, um tempo que melhor empregariam se se dedicassem a rivalizar com eles. Acreditamos, como dizia ainda Pascal, que o espírito do homem ocupa, na ordem da inteligência, a mesma posição que seu corpo ocupa na ordem das coisas. Mas(esta será, supomos, a contribuição do século XX para o XXI), a esta justa visão do lugar modesto que presentemente o homem ocupa no universo, acrescentamos a ambição de um futuro sem limites, que o levará para além de si mesmo, em direção a um conhecimento cada vez mais elevado e a um domínio, cada vez maior, da natureza. 
Poderia eu, de minha parte, dizer que creio que este vasto abismo de inteligência e de amor, onde o homem é invencivelmente guiado pelas mais profundas leis do seu ser, existe no próprio coração das coisas; que nada mais fazemos senão reviver, à nossa maneira, uma eterna aventura; que as conquistas remotas e desconhecidas da humanidade foram já alcançadas por um número infinito de outras humanidades; que mergulhamos desde agora em um além do homem invisível e presente e que, às vezes, durante o tempo que dura uma porta aberta ou um raio de luz sobre um túmulo, um reflexo desse invisível atravessa nossa vida?

         Ah, queridos mestres, por que será preciso que esqueçais as lições daquele que criticais, sem as terdes lido? Voltaire, no seu ‘Dictionnaire Philosophique’, Diderot, na sua ‘Lettre sur Les Aveugles’, Renan em seus ‘Souvenirs d’Enfance’, disseram tudo isto, melhor do que eu. Estes homens adquiriram, pela razão, o direito de raciocinar sobre todas as coisas. 

       Dignai-vos perdoar-nos, por termos a impressão de aquelas grandes vozes abafarem um pouco a vossa. O mistério nos cerca. E talvez nos libertemos de nossa última cadeia quando tivermos compreendido que o objetivo final da razão é o de preparar a vitória sobre a própria razão, a superação da própria razão, o caminho para além da razão.

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(1919 – 1992) 
Ufólogo e pesquisador frances 
Texto da Revista Planeta -Número 49 – Outubro de 1986

 

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Aimé Michel 
(1919 – 1992) 
Ufólogo e pesquisador frances 
Texto da Revista Planeta -Número 49 – Outubro de 1986