– A psicologia de Branca de Neve

imageS2E“Uma vez, no auge do inverno, quando flocos de neve caem como plumas das nuvens, uma rainha estava sentada à janela de seu palácio, costurando as camisas de seu marido.

Nisto, levantou os olhos, espetou um dedo e caíram gotas de sangue na neve.

E vendo o vermelho tão bonito sobre o branco, a rainha pensou:– Queria ter uma filha tão alva quanto a neve, tão vermelha como este sangue e tão negra como o ébano desta janela.

Pouco tempo depois lhe nasceu uma filha que era branca como a neve, vermelha como o sangue e com uns cabelos negros como ébano.

Por isso lhe puseram o nome de Branca de Neve. Mas, quando ela nasceu, a mãe morreu…” (1)
 

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Logo de saída a história de Branca de Neve nos indica que o ponto de vista a ser tomado para entendê-la, mais profundamente, é o iniciático. Chama atenção que o personagem central, Branca de Neve, sintetize em si as três cores que simbolizam, no Hermetismo (2), as três etapas da prática espiritual estabelecida por aquela doutrina: o negro, o branco e o vermelho que correspondem, respectivamente, ao nigredo, albedo e rubedo dos alquimistas. Além disso, os sete anões, que trabalham numa mina buscando ouro, são uma clara alusão a outro aspecto do simbolismo alquímico, que nos informa ser a meta do alquimista a transformação dos metais impuros em ouro. 

 Não é também por acaso que a história se divide claramente em três partes. Na primeira, Branca de Neve vive no castelo comandado pela rainha má desde o nascimento até quando foge do caçador pela floresta; na segunda, vive na casa dos sete anões até se engasgar com a maçã envenenada; na terceira, vive no castelo do príncipe unida com ele, “felizes para sempre”. É evidente aqui a aplicação do simbolismo do número três aos graus do conhecimento e, por extensão, às três fases da realização na via espiritual. 

A essência e o objetivo da via espiritual iniciática é a união com Deus. Essa união só é possível porque ser homem é sê-lo à imagem e semelhança de Deus. O mito de Adão e Eva nos ensina que depois da queda, este aspecto essencial do humano tornou-se ineficiente. Por isso, toda e qualquer tentativa de reintegração da forma humana no seu Arquétipo infinito e divino, (a volta ao paraíso), só é possível se antes for regenerada à pureza do estado original humano. Tomado em sua significação espiritual, a transmutação do chumbo em ouro é nada mais nada menos do que a reintegração da natureza humana na sua nobreza original. (3) 

De modo análogo ao relato do Gênesis, o conto nos informa que no princípio viviam em harmonia complementar um par de opostos, o Rei e a Rainha-Mãe boa.  Com a morte da Rainha-Mãe e após o nascimento de Branca de Neve instaura-se um desequilíbrio, uma espécie de afastamento da unidade, que é representado pela chegada da rainha má. 

Assim, depois da morte da mãe, Branca de Neve perde sua dignidade de princesa no castelo do pai e se torna uma serva da madrasta má. Na linguagem da história, isso corresponde a uma queda similar àquela descrita pelo Gênesis no mito de Adão e Eva. Agora, filha de um viúvo, Branca de Neve, apesar de ter a marca das três cores, que a qualifica como um ser especial, cai numa função subalterna dentro do mundo profano, marcado pela dualidade, pela dispersão, pelas paixões e dominado pela rainha má. O conto nos mostra que é necessário reunir em si o disperso, reintegrar-se em retiro além da floresta e nas montanhas, para depois se unir ao Espírito, que aqui é, sem dúvida, figurado pelo Príncipe. 

A rainha madrasta descobre que Branca de Neve é a mais bela quando esta última faz sete anos. A rainha má é obcecada com a comparação quantitativa do aspecto estético e, portanto, apenas sensorial da realidade. Ela é incapaz de perceber qualquer beleza interior. A unidade do belo, do bem e da verdade que todas as tradições religiosas e filosóficas proclamam da maneira mais veemente inexiste na rainha má, por causa de uma concentração exagerada da inteligência dela no aspecto mais externo da realidade material. 

No íntimo do ser humano, o bem é bonito e o belo é verdadeiro (4). Significativamente, e por compensação, a rainha má manda um caçador matar Branca de Neve e trazer-lhe, exatamente, o coração para que ela o coma.

O coração, que no simbolismo astrológico é representado pelo Sol e no alquímico pelo ouro, é considerado, nas mais diversas tradições, a morada do espírito, o centro (anatômico e simbólico) do ser onde habita o divino. No entanto, o coração que a rainha come (ou que ela pode comer) é o de um animal (5), que o caçador compadecido sacrifica no lugar de Branca de Neve. 

Consciente, daí por diante da enorme ameaça de destruição existente no mundo da rainha, e insatisfeita com ele, a alma qualificada foge correndo pela floresta. Sua vida acaba num mundo e se inicia em outro. Mas, essa iniciação não acontece antes que ela passe por uma provação que se revela, no fundo, uma purificação.

NOTAS:

1. Grimm, Os mais belos contos de fada de Grimm, tradução de Maria Lúcia Pessoa de Barros, Editora Vecchi, Rio de Janeiro, p.p. 27.

2. René Guénon, Aperçus sur l’Initiation, Éditions Traditionnelles, 1953, pp. 265.

3. A Ars Regia, outro nome da alquimia, faz parte dos chamados pequenos mistérios.

4. Vale lembrar aqui que uma das características mais marcantes da época atual, assinalada tanto por sociólogos quanto por filósofos, é a perda da unidade dos valores estéticos, éticos-religiosos e cognitivos.

5. Uma corça ou um javali, dependendo da versão da história. É bom lembrar que o javali é um símbolo tradicional da casta sacerdotal e da autoridade espiritual, especialmente no ciclo de histórias da Távola Redonda.

Cid de Oliveira é astrólogo

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