Se me tivesse nascido mais uma filha, ela teria se chamado
Lídice, dentro da tradição judáica que manda perpetuar o nome
daqueles que amamos.
Lídice não é o nome de uma pessoa em particular, mas o
de uma aldeia tcheca, de 450 habitantes, que os nazistas
arrasaram em junho de 1942, matando todos os homens (191)
e deportando as mulheres para os campos de concentração.
Das crianças só escaparam as que possuíam as supostas
características arianas (olhos azuis, cabelos louros, crânio
dolicocéfalo). Foram entregues a famílias alemãs, para
serem criadas como verdadeiros alemães.
A pequena aldeia não tinha nenhum pecado a pagar. Situada
na bacia carbonífera de Kladno, os dias ali rolavam como
se estivessem pregados em uma roda: eram absolutamente
iguais uns aos outros e se repetiam a cada semana. Os
homens trabalhavam nas minas. Quando voltavam para casa,
tinham a esperá-los as suas mulheres de aventais bordados e
os filhos pequenos.
Por que, então, Lídice? Apenas porque os nazistas precisavam
mostrar a crueldade de que eram capazes para intimidar
recalcitrantes.
Não era o caso de Lídice, que mal tomava conhecimento do que
se passava além dos seus estreitos limites. Porém, uns dias
antes, em 29 de maio, Reinhard Heydrich, chefe de Segurança
do III Reich, que pessoalmente assumira o protetorado da
Boêmia e da Morávia, para acabar com a resistência por parte
dos tchecos, sofreu atentado a bomba. Morreu cinco dias
depois, em 4 de junho. Apesar de nada ter a ver com o atentado,
Lídice foi escolhida como exemplo.
Heydrich era uma figura macabra. Oficial da Marinha alemã,
expulso por conduta imoral, ingressou na Gestapo e se tornou o
segundo homem da organização, logo abaixo de Himmler.
Odiado e temido pelos próprios nazistas, deles recebeu o
apelido de Heydrich, o Verdugo.
Os tchecos, traídos pelos ingleses e pelos franceses em 1938,
perderam o seu território, mas nunca se submeteram aos
alemães. Em 1941, quando Konstantin von Neurath revelou-se
incapaz de reprimir as manifestações dos patriotas tchecos,
Heydrich manobrou os cordéis e conseguiu substituí-lo no
Protetorado da Boêmia e da Morávia. Os horrores que ali
cometeu e o terror que infundiu às pessoas lhe valeram novo
apelido: o Carniceiro de Praga.
Sua crueldade foi vã, como de resto todas as crueldades. A
resistência tcheca recrudesceu e dois patriotas, Jan Kubis e
Josef Gabeik, refugiados na Grã-Bretanha, desceram de
pára-quedas perto de Praga, naquele dia, para cometer o
atentado. Equipados pelos britânicos, conseguiram fugir sob a
proteção de uma cortina de fumaça e se esconderam na Igreja
de São Carlos Borromeu em Praga, cujos padres davam refúgio
a todos os perseguidos pelo nazismo.
A Gestapo, para vingar a morte de Heydrich, excedeu-se na
selvageria. Segundo um dos relatórios da organização,
apreendido pelos aliados ao término da guerra, 1331 tchecos,
que nada tinham a ver com o atentado, foram imediatamente
fuzilados. A Igreja de São Carlos Borromeu foi cercada, e as 120
pessoas que lá haviam se refugiado, foram massacradas. A
Gestapo, por trágica ironia, ignorava que os dois matadores de
Heydrich estavam entre elas.
As represálias da Gestapo não cessaram aí. Mas de tudo o que
aconteceu naqueles dias, a civilização guarda com horror a
violência praticada contra Lídice. Mal rompera o dia, em 9 de
junho, Lídice foi cercada por um contingente comandado pelo
capitão Max Rostock. Todos os habitantes – homens, mulheres
e crianças – foram trancados nos celeiros de uma pequena
fazenda. Ninguém podia deixar a aldeia, mas foi permitido o
retorno dos que já tinham saído naquela manhã. Quando os
nazistas chegaram, um menino assustou-se e correu. Uma
velha desesperada tentou escapar pelos campos. Os dois
foram abatidos com tiros nas costas.
No dia seguinte, começaram os fuzilamentos. Todos os
homens, maiores de 18 anos – no total de 172 – foram
executados. Dezenove, que estavam trabalhando nas minas de
Kladno, e sete mulheres que estavam fora da aldeia na ocasião,
foram depois conduzidos a Praga, para serem mortos.
Havia quatro mulheres grávidas em Lídice. Levadas para uma
maternidade em Praga, os bebês foram mortos ao nascer e
elas, encaminhadas para o campo de extermínio de
Ravensbrueck, para onde já tinham sido enviadas as outras
mulheres da aldeia.
Liquidada a população, os nazistas incendiaram a aldeia e
depois dinamitaram as ruínas para que não restasse pedra
sobre pedra. Terminada a guerra, o governo tcheco reconstruiu
Lídice como monumento nacional. Mineiros de todo mundo
contribuíram para um memorial, cuja parte maior é constituída
por um canteiro de rosas vermelhas.
Dezessete crianças, das que foram levadas pelos alemães,
puderam ser localizadas depois da guerra. Elas e mais as
mulheres que conseguiram sobreviver ao extermínio nos
campos de concentração voltaram para a nova Lídice, onde
permaneceram como testemunhas da bestialidade nazista.
———————-
Se me perguntarem porque escrevi estas linhas, fora de data e
aparentemente fora de propósito, só tenho uma resposta: as
rosas. Olhava para rosas, quando me lembrei de Lídice. Eram
rosas vermelhas e elas me levaram às rosas rubras brotadas
do sangue, da dor e da paixão dos inocentes, que um dia
alguém tingiu com o branco dos sepulcros.
Então me lembrei de uma filha que não me nasceu, de Lídice,
dos bebês de Lídice, que nasceram e não sobreviveram,
lembrei-me dos sonhos assassinados em cada dia que
deixamos de viver.
Por isso, escrevi.
Se me perguntarem porque eu, não sendo judeu, não sendo nazista,
não tendo nem mesmo nascido na época de tão terríveis acontecimentos históricos e que, ainda por cima, vivo hoje num país envolvido por tantos problemas imediatos, fui escolher este artigo para colocá-lo num site preocupado com a valorização do ser humano, responderia que também só tenho uma resposta, as Rosas…
As Rosas tem cores, exalam perfume, marcam a nossa alma com a sua sensibilidade. Gostaria de poder mostrar este texto para cada cidadão do mundo.
Para que todos pudessemos pensar juntos, de forma aberta e fraterna.
Gostaria de poder levá-lo até a vocês árabes fundamentalistas, a vocês cristãos dogmáticos, a você que é o dono da verdade. Radicalismos levam ao preconceito, ao obscurecimento da alma e a morte dos sentimentos.
Hoje, à beira de um precipício que não posso adivinhar o fundo, vendo o mundo dividido em facções impermeáveis, temo que esta história se repita.
Nós, mulheres e homens envolvidos com o espiritualismo, temos que elevar as nossas vozes, temos que gritar bem alto nosso brado de alerta, para acordar os ouvidos adormecidos daqueles que, por acomodação ou covardia, se escondem na fantasia da ignorância e no otimismo do hipócrita.
Como não posso, hoje, em prece, envio uma rosa ao coração de cada ser humano vivo na superfície do planeta, imaginando que o seu perfume manterá seu espírito e sua alma vigilante, para que nunca mais textos como este venham a ser escritos…
Envie você também a sua, mas antes, coloque uma rosa bem vermelha no centro de seu próprio coração…
por Jayme Copstein