Por: George Leonard
“Você não pode saber o que é estar vivo até ser um ladrão dentro de um quarto escuro onde alguém está dormindo. Não há como lhe explicar o quanto você está desperto, o quanto você pode ouvir (você pode ouvir com a sua pele), o quanto você sabe. Há um carro de polícia a três quarteirões. Você sabe que ele está lá. Você percebe a sua presença. Você sente o seu movimento.— “
Meu amigo é um romancista de sucesso, jornalista e crítico. Quando adolescente, porém, fez parte de uma gangue de ladrões. Agora, ele estava me dizendo o que todos nós continuamos deixando de reconhecer; que a nossa condição civilizada, apesar de nos nutrir, nos rouba a chance de sermos tudo o que poderíamos vir a ser. O fascínio que sentimos por todo malandro, por todo aventureiro andarilho, de Ulisses a Tom Jones, Jesse James, James Bond, revela o impulso que temos, voltado para a ausência da lei.
As canções da civilização, seus contos e crônicas, estão repletos de malandros. Talvez este fato seja mais do que mero entretenimento.
Tomem-se as histórias de fadas e os contos infantis. Na obra de Kenneth Grahame, The Wind in the Willavs (escrito no início do século), há um momento no qual o irrepreensível Mr. Toad se vê na presença da coisa que mais lhe é proibida, um automóvel.
“Será”, disse a si mesmo, sem demora, “será que essa espécie de carro dá partida com facilidade?”
No instante seguinte, quase sem saber como isso aconteceu, viu-se segurando a manivela e girando-a. Quando o conhecido ruído se fez ouvir, a velha paixão tomou conta de Toad e dominou-o por completo, corpo e alma. Como em um sonho, de alguma forma viu-se sentado no assento do motorista; como em um sonho, soltou o freio e fez o carro rodar pelo quintal e atravessar a passagem em arco; e, como em um sonho, todo o seu senso do que era certo e errado, todo o temor pelas óbvias conseqüências de seus atos pareciam temporariamente suspensos. Aumentou a velocidade e, à medida que o carro devorava a rua e transpunha obstáculos em direção à estrada, em meio ao espaço aberto, tinha consciência apenas de que era Toad novamente, Toad o maior e o melhor, Toad o terrível, o que parava o tráfego, o senhor das trilhas solitárias, diante de quem todos devem abrir caminho ou ser castigados com o nada e a noite eterna. Voando, cantava e o carro respondia, com seu sonoro ronco; as milhas desapareciam, à medida que aumentava a velocidade, sem saber para onde ia, atendendo a seus instintos, vivendo o seu momento, sem se preocupar com o que poderia lhe acontecer.
O momento mais exultante experimentado por Toad, bem como sua punição, nos falam de um atril proibido – como o faz também o Satã de Milton, glorioso e não arrependido, o penúltimo homem a cruzar fronteiras, eterno inimigo do sistema:
“… Adeus, alegres campos onde para sempre reside a alegria; salve, horrores, salve mundo infernal, e tu Inferno mais profundo.
Recebe teu novo proprietário; aquele que traz uma mente imune às mudanças de tempo ou espaço.
É ela o seu próprio lar e em si mesma,
Pode fazer do Céu o Inferno e do Inferno, o Céu.
O que importa onde, se eu continuar o mesmo,
E o que eu deveria ser, senão menor do que ele,
A quem o trovão tornou maior? Aqui, ao menos
Seremos livres… “
Não é culpa apenas de Milton o fato de Satã fazer o sangue correr mais rápido em nossas veias, ou o fato de Deus ser um ente insuportavelmente aborrecido, pomposo e gordo. Não deveríamos nos surpreender com o fato de o homem com saldo credor com freqüência ganhar o nosso apoio; da causa perdida parecer a melhor; de os curiosos aplaudirem os ladrões do Grande Trem Inglês quando estes entraram no tribunal; de a visão da orgia persa habitar o interior de cada santuário. Não pense que tudo isso reflete alguma forma incurável de perversidade humana, ou que nos diga qualquer coisa sobre a “natureza” do homem; mas, sim, que tudo isso pode nos dar informações sobre a educação. Porque eu gostaria de sugerir que foram precisamente essas pessoas que, seja pela razão que for, operaram do lado de fora das restrições impostas pela civilização, as que levantaram para nós a tocha do aprendizado no decorrer dos séculos.
São pessoas variadas. São os malandros. O criminoso comum não faz parte desse grupo. Muitos criminosos, depois do seu rompimento inicial com os padrões, adotam formas repetitivas e estereotipadas de comportamento, que imitam a própria sociedade. Os criminologistas procuram pelo “MO” (modus operandi) revelador do criminoso. O do verdadeiro malandro não é óbvio. Faça ele parte da ficção ou da história, ele é o homem dos muitos instrumentos, que constantemente explora, examina o ambiente: aprende.
O fato de esse mestre aprendiz, ao qual oferecemos nossa secreta admiração, ser com tanta frequência associado ao crime e à violência pode indicar, simplesmente, que, sob as condições da nossa civilização, em geral é difícil continuar aprendendo por muito tempo sem violar a lei. “Em Bimini o crime não existe”, observou um repórter, “porque lá nada é ilegal”. Bimini pode não ser um oásis de aprendizado, mas não é também a Aprazível Inglaterra. A questão não é a de que o educador voltado para o futuro deva encorajar a violência ou a ruptura, mas que ele reconheça os vários e novos meios, que agora se mostram claros no horizonte, de tornar legal e possível o aprendizado permanente, para que o homem, nas palavras do poeta Herrick, seja “nobremente selvagem, não louco”.
Os malandros se apresentam de muitas e variadas formas. Para os nossos objetivos, nos prenderemos a quatro delas, misturando fato e ficção e tendo-os como nossos tutores:
1) o malandro comum, ou tratante, ou aventureiro, o pícaro;
2) o tecnólogo radical;
3) o místico;
4) o artista.
Na primeira dessas figuras precisaremos nos deter apenas por um instante. Sua tradição está assegurada e o fascínio que exerce é universal.
“As condições do viver civilizado muito fazem no sentido de eliminar a aventura e o risco de nossas vidas”, escreve J. Bronowski em seu livro The Face of Violence. “Nossa vingança é equipararmos o espírito à ilegalidade e a aventura ao crime”.
A guerra, as conquistas e a política podem ser vistas como meios de sancionar a malandragem. Nesses esforços, os homens, algumas vezes, são liberados para romper as barreiras restritivas do viver civilizado e
para se tornarem, novamente, caçadores andarilhos, “ultrapassando a si mesmos”, realizando feitos de resistência, habilidade e perspicácia que não tinham motivo para antecipar. As sociedades estáveis têm sido simplesmente incapazes, até hoje, de prover ás oportunidades, as contingências de reforço que nos possibilitariam ir além de nós mesmos, nos planos mais alegres e muito menos limitastes da fraternidade, do amor, da comunhão e da descoberta.
O que talvez tenha passado despercebido é o fato de os malandros, por toda a história, geralmente estarem intimamente ligados à mais avançada tecnologia de sua época.
E, acima de tudo, a tecnologia reina, suprema. Nos filmes de Bond, nosso riso diante da violência de natureza mecânica, eletrônica e química é um riso de reconhecimento, não de zombaria.
Bond é o primeiro caçador andarilho na nova floresta global, de tecnologia interligada. Seu código de designação, o duplo zero, o identifica como alguém quê tem licença para matar. Portanto, a lei sanciona o criminoso. Mas o que esse malandro pode nos ensinar – no absurdo triunfo da impessoalidade é que a vítima final é, na verdade, a sociedade como a conhecemos. A própria civilização.
O tecnólogo radical, o segundo de nossos malandros, figura em alguns dos mais persistentes mitos da civilização. Estes mitos – que, em grande escala, são contos de advertência – mostram os introdutores ou pesquisadores de novas tecnologias sendo momentaneamente bem-sucedidos para, em seguida, se submeter às medonhas sobremesas que os mitos lhe reservam. Prometeu é seu arquétipo e pode-se afirmar que o fogo representa todas as novas formas de tecnologia. O sofrimento de seu introdutor serve de advertência a todos os que se intrometerem na estrutura tecnológica básica de qualquer sociedade e enfatizam uma verdade essencial. Qualquer modificação radical na tecnologia existente em qualquer ordem estabelecida seguramente contribuirá para derrubar esta ordem.
De fato, aqueles que conservariam e perpetuariam qualquer entidade social estão absolutamente corretos de temer novos conhecimentos e se opor a todos os inovadores que ultrapassem as linhas que restringem todo movimento do homem civilizado. As advertências do sistema contra qualquer nova tecnologia nos são transmitidas há eras. “Par abençoado”, escreve Milton sobre Adão e Eva; e “Oh! ainda mais afortunado pois não buscam estado de maior felicidade e sabem não saber mais”.
No período medieval, o temor à novidade alcançou um elevado estágio e se refletiu até na linguagem. A palavra árabe “bid’a” significa “novidade” mas também “heresia”. A palavra espanhola “novedad” carrega também insinuações semelhantes.
A visão renascentista de quem realmente era o diabo está clara na lenda de Fausto: o diabo não era outro senão o próprio mestre tecnólogo, o mesmo que arrancou Adão e Eva de sua feliz ignorância. Buscar o seu conhecimento proibido, como fez Fausto, era perder a alma. Essa advertência surgiu em uma época em que, por toda a Europa, a nova tecnologia estava destruindo todas as formas habituais de existência. Segundo a lenda, a tecnologia ameaçadora se apresentava sob a forma da antiga magia medieval. Nada de surpreendente nisso: como McLuhan repetidas vezes salientou, o conteúdo de cada novo ambiente é, invariavelmente, o próprio antigo ambiente; o homem se dirige para o futuro com os olhos fixos no espelho retrovisor.
A questão, aqui, é saber se as pessoas se aglomeravam para ver a peça sobre Fausto para ser advertidas sobre os perigos de buscar o conhecimento satânico ou, simplesmente, por se sentirem fascinadas por aquele maravilhoso malandro. Porque Fausto cruza incansavelmente as mais rígidas barreiras da civilização, inspirado, ao que parece, por nada mais do que um espírito de curiosidade.
“Possuído pela mágica onipotente”, escreve Richard G. Moulton. “Fausto não utiliza o seu poder para se entregar a especulações profundas ou esquemas de auto-engrandecimento; mas, tal como uma abelha, faz vôos rápidos de flor em flor, de uma sugestão casual a outra; está pronto para ir até o inferno por uma nova sensação.” Em resumo; é um aprendiz.
Uma jovem de 19 anos chamada Mary Wollstonecraft, logo após seu casamento com o poeta Shelley, escreveu o conto arquetípico moderno do tecnólogo malandro. Deu à sua obra o título de “Frankenstein, or The Modern Prometheus”. Frankenstein foi publicado pela primeira vez em Londres, em 1818, e logo virou um best-seller.
Sua primeira versão dramática foi levada ao palco em 1823. No panfleto em que se fazia a propaganda da peça lia-se; “A surpreendente lição de moral demonstrada nesta história são as fatais conseqüências acarretadas pela presunção de se tentar penetrar nos mistérios da natureza, além das profundezas estabelecidas.” Frankensteín, o criador, ainda vive entre nós; continuamente, sofre as consequências fatais de sua presunção. Sua infelicidade, invariavelmente, ultrapassa a capacidade humana de resistência; em geral, é vítima de morte violenta, ao lado do monstro que criou. Várias adaptações teatrais mostram o monstro sendo presa de uma avalanche, atingido por um raio, caindo do Monte Etna, afogando-se em uma tempestade no Ártico e saltando de um alto penhasco. A isso, o cinema acrescentou a morte em um moinho em chamas, numa explosão e num caldeirão de ácido sulfúrico fervendo. Sic semper, tecnólogos.
O que nos interessa aqui não é a qualidade literária da figura de Frankenstein, nem sua interminável progênie de cientistas loucos, que nos encaram através de seus óculos de lentes grossas e por trás de toda a intrincada tubulação de seus laboratórios, que vemos nas histórias em quadrinhos e nos filmes de horror, – mas o fascínio universal que elas exercem sobre nós. Esses malandros têm algo poderoso a nos ensinar; a mudança radical da tecnologia mudará a vida humana de uma forma que Marx nunca teria imaginado. Esse processo de mudança, em si, se dá a partir do que já é conhecido e caminha em direção ao desconhecido. Temendo-a, tememos os tecnólogos. E com razão; a bomba H é a derradeira ferramenta faustiana.
Mas talvez o engajamento alegre e inteligente – não o medo que paralisa, ou a resistência teimosa – seja a resposta adequada a esse medo. O monstro bem pode ser tratável – não apenas a bomba, que pode servir como supersimplificação das coisas, mas todo o conjunto da rede difusa da nova tecnologia. No começo do século 19, os luditas percorreram todo o interior da Inglaterra destruindo os maquinários têxteis, com medo de que estes dessem origem a um desastre econômico. Mas esse desastre não ocorreu; os tumultos cessaram. Recentemente, um professor de história da Universidade da Califórnia me informou que a tecnologia não mudaria a condição humana porque, em suas palavras, “existem muitas pessoas como eu, que destruirão os computadores, antes que isso possa acontecer”.
Esta última é tida como liberal, possuidora de mentalidade aberta e inovadora – mas não além de determinados limites. Na verdade, muito da energia acadêmica e intelectual está voltada para a construção e reparo das cercas perceptivas dentro das quais os especialistas estabelecidos sentem que suas disciplinas devem operar. São precisamente essas cercas que o malandro-tecnólogo ultrapassaria.
O terceiro malandro, o místico, pode ser o mais perigoso de todos, uma vez que é um tecnólogo do ser interior. O seu trabalho nem sempre abala as tradições. Pela hierarquia, a revelação tem estado ancorada à Civilização de forma mais rígida do que tudo que se conheça. Na índia, as práticas de natureza mística têm contribuído para perpetuar sociedades estruturadas. Mas, cuidado: a qualquer momento, o impulso místico pode derrubar a estrutura. Porque o misticismo não admite qualquer espécie de fronteiras, nem mesmo a menor interface entre o eu e o outro. Lógica, conhecimento, proporção – tudo isso pode cair.
Os Upanixades afirmam que a iluminação reside além do Orbe Dourado, isto é, do melhor da sabedoria convencional.
Para nós, ocidentais, não existe exemplo melhor de aventureiro místico do que Jesus. Ele realmente seguiu a sua visão, embora as mudanças que preconizava tivessem descolado toda a estrutura de reforço da civilização, substituindo a lei pelo amor. Formulou o preceito educacional mais revolucionário jamais conhecido: “Quem não receber o reino do céu como uma criancinha, nele não entrará” (Lucas, 18:13). Qualquer cidadão respeitável teria de estar muito longe do Calvário, tempo e lugar, para não considerar Jesus outra coisa a não ser um malandro. Pode ser uma denúncia de nossa época o fato de Ele, entre nós, já não ser considerado como tal.
O artista, o último dos malandros aqui considerados, nos ensina de maneira mais explícita que os demais. Diferente do tratante, do tecnólogo radical e do místico, com frequência ele desfruta da sanção de sua própria sociedade para suas trapaças. Tal como o Agente 007, tem licença para matar. Mas não se engane, o grande artista deve destruir as formas e as percepções de sua época. Deve buscar a ordem que confunde a ordem. Cabe-lhe a jornada que transcende a consciência de sua raça.
Quanto mais altamente especializada e reprimida se torna a sociedade, mais necessita da arte como categoria em separado, local seguro para a totalidade, para os sentimentos, para o aprendizado. O homem primitivo não via a arte ocupando um espaço em separado da vida. Ele parece ter sido indiferente às suas pinturas rupestres ou esculturas, uma vez finalizadas; observou-se que a mesma parede, da mesma caverna, era pintada várias vezes. O importante não era finalizar o trabalho em si, mas o ato de realizá-lo. Mesmo em épocas tão recentes como no Renascimento, os artistas poderiam ser, de certa forma, vistos nos mesmos termos que os artesãos. E Bach revelou sua opinião sobre a permanência de seu trabalho utilizando, às vezes, manuscritos para embrulhar seu almoço.
Tentaram aprisioná-las em edificações pesadas e apáticas, que denominaram “museus de arte”, ou em outras que chamaram de “salões sinfônicos” e “teatro lírico”. Mas o artista é um malandro e não pode ser nem aprisionado nem classificado. Sempre um passo à frente do tecnólogo, o artista, em tempos recentes, tem tentado cruzar todas as fronteiras da civilização. Hoje, em meio aos happenings e eventos totalmente ambientalizados dos jovens, podemos ver a última barreira – aquela que existe entre artista e platéia – sendo demolida, tijolo por tijolo. Pode acontecer de o artista contemporâneo se vir engajado na atividade de conclusão da arte – e assim nos ajudar a criar um meio ambiente no qual cada vida individual possa ser vivida como uma obra de arte.
Enquanto isso, o malandro-artista nos oferece um dos melhores programas de aprendizado que se pode encontrar nessa escola, caindo aos pedaços, chamada civilização. Ele nos demonstra a interação entre disciplina e liberdade, enfrentando as limitações das suas ferramentas, sem deixar, contudo, de descobrir (se for um verdadeiro artista) que essas ferramentas são menos limitantes do que em princípio julgara.
Pela sua maneira de trabalhar, ele nos revela aquilo que o místico indiano Sri Aurobindo denominou desconfiança da alma frente a todas as regras absolutas. O artista se vê compelido para o particular, o lugar, o momento. “A arte não generaliza nem classifica”, escreve Suzanne Langer; “ela expõe a individualidade das formas, a qual o discurso, genérico em sua essência, tem de suprimir. O sentido da vida é sempre novo, infinitamente complexo e, portanto, infinitamente variável em todas as suas possíveis expressões”.
O artista faz reviver em nós sensações, sentimentos e aspectos do ser que a civilização ocidental (em sua confusa busca do puramente verbal-simbólicoconceitual) levou muitos de nós a negligenciar no ambiente educacional. Ele nos mostra como explorar o universo sensorial, e traça para nós os mapas das estradas para o prazer.
Jogar, divertir-se, saltar – são esses os verdadeiros modelos de criação. A história nos grita sua lição nós nos recusamos a ouvi-la. Esquecemos que, nas palavras de Eric Hoffer:
“[…] os esforços mais vigorosos e espetaculares do homem não foram realizados em busca de coisas essenciais mas, sim, do supérfluo… É mais provável que o equipamento utilitário, mesmo quando se trata de um elemento essencial à nossa vida diária, tenha sua origem no não-utilitário. Os sepulcros, templos e palácios precederam a casa utilitária; o ornamento precedeu o vestuário; o trabalho, principalmente o que se faz em equipe, deriva do jogo. Dizem que o arco era um instrumento musical antes de se tornar uma arma e algumas autoridades acreditam que a arte sutil da pescaria teve sua origem num período no qual o jogo era abundante – e a pesca era resultado não tanto de uma enorme necessidade mas, sim, da curiosidade, da especulação e da diversão. Sabemos que a poesia precedeu a prosa e é possível que o canto tenha vindo antes da fala […] No conjunto, parece ser verdade que os períodos criativos na história foram alegres e até mesmo frívolos. […] É de se suspeitar que grande parte do elogio à seriedade nos vem daqueles que vitalmente necessitam de uma fachada de importância e dignidade. La Rochefoucauld afirmou que a solenidade é ‘um mistério que o corpo inventou para ocultar os defeitos da mente’.”
O artista, como todos os malandros, zomba da solenidade. E nos mostra como sermos nobremente selvagens, não loucos. O psicólogo Frank Barron, da Universidade da Califórnia, e seus colegas conduziram estudos intensivos sobre pessoas altamente criativas e que alcançaram reconhecimento em seus campos de atuação: escrita, pintura, escultura, música, arquitetura. É particularmente interessante notar que, no teste de personalidade mais amplamente utilizado (o Minnesota Multiplasic Personality Inventory), na escala de esquizofrenia os criadores bem-sucedidos alcançam a mesma classificação que os esquizofrênicos internados em instituições. No entanto, na escala de força do ego alcançam índices altos e os esquizofrênicos, baixos.
Essas descobertas podem ser tomadas como prova da utilidade da loucura controlada. As percepções, a vigilância sensorial aguçada e as inesperadas visões dos loucos talvez existam, até certo ponto, em cada gênio que ultrapassa os limites de sua época. Os criadores “bem-sucedidos” diferem dos infelizes internados, uma vez que eles podem dar forma a suas visões – e também por terem assimilado os disfarces e dissimulações exigidos pelo mundo-como-ele-é. Algumas das sociedades xamânicas que ainda subsistem (os bantos, da África do Sul; os tanalas, de Madagascar; e os mojaves, do sudoeste dos Estados Unidos, por exemplo) encontraram meios de obter valor social das formas extremadas de “esquizofrenia”. E, de fato, psicólogos e psiquiatras da atualidade, em número crescente, estão começando a pensar que é bem possível criar um mundo mais seguro para os impulsos erráticos humanos, um mundo capaz de nos oferecer mais cores, riqueza e êxtase, sem repressão, violência e guerra.
O malandro, nobremente selvagem, nos ensina a primeira lição sobre uma vida na qual o indivíduo não precisa violar a lei ou os costumes para se tornar plenamente desperto; uma vida na qual a nova tecnologia – interna ou externa ao organismo humano – não será temida nem repelida, mas canalizada para o uso humano; em que toda a ordem estabelecida terá como primeira tarefa tornar a si mesma obsoleta; em que a principal função da sociedade será a de evoluir para novas sociedades em constante evolução.
Essa lição pode parecer radical. Mas pode vir a tornar-se um simples treino em eventos correntes. As algemas do passado estão se soltando. E o mundo está cheio, como sempre esteve, de malandros. De fato, hoje existem centenas de milhões deles. São os tratantes, os tecnólogos radicais, os místicos e os artistas. São originais, liberais, têm clareza de visão, sensibilidade, são entusiastas adaptáveis, alegres e encantadores.
São tudo, menos pessoas fragmentadas, e aprender é seu principal prazer na vida.
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