A persistência e as estratégias de representação da figura diabólica

devilO historiador Luiz Nazário, ao analisar discursos demonstrando certa
ideologia de fundo irracionalista no corpo da Ciência positiva em seu artigo
“Catástrofes Cósmicas” – em seu enclave mais sistemático, a Física – narra
uma história bastante significativa. Vale reproduzir o trecho por inteiro:

Em 1993, na Alemanha, um panfleto noticiou que geólogos russos, chefiados
por um certo Dr. Azzacov, e noruegueses, comandados por Bjarne Nummedal,
haviam descoberto um buraco sem fundo na Sibéria. Quando a expedição atingiu
14,4 km de profundidade, foi surpreendida por uma temperatura de 1100 graus
Celsius e milhões de vozes humanas gritando de dor. Na mesma noite, outro
fenômeno: do buraco saiu um gás luminoso e, da brilhante coluna de nuvens
contra o céu escuro, um ser com asas de morcego gritando em russo: Eu venci!
Logo uma ambulância chegou; a equipe foi obrigada a tomar um preparado que
apagou a memória dos acontecimentos recentes; e as autoridades locais
deportaram todos os estrangeiros, ameaçando de morte quem se atrevesse a
divulgar o ocorrido.

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Nessa alucinante fantasia, vemos o predomínio de uma certa mentalidade
paranóide, popularizada na série de televisão Arquivo X. Mas também é
possível perceber um pouco mais: a persistência da figura do diabo (e também
do inferno), uma persistência curiosa. Todas as associações ideológicas
contemporâneas (a estigmatização da Rússia ou a visão paranoica de um
governo do mundo” controlado por potências invisíveis) tem, em sua
formulação, um intervalo nesse imaginário milenar, cuja distante origem são
as apocalípticas imagens de juízo final das igrejas românicas (o abismo sem
fundo, as almas sofredoras e um certo aparato teatral cercando o maligno –
incluindo luzes, enxofre e asas de morcego). Apesar das inúmeras diferenças,
as semelhancas, indicam, ao menos a correspondência de uma forma. Portanto:
quais os poderes que a representação do diabo teve e como tais poderes se
preservaram até hoje? Trata-se de uma pergunta bastante válida. Embora fuja
ao escopo deste trabalho traçar uma história comparativa do diabo nos meios
literários da cultura escrita e nos meios visuais da arte, traçaremos certos
paralelos necessários e esclarecedores.

Nosso ponto de partida está
localizado em certa iconografia comum em toda a Idade Média: os juízos
finais. Utilizaremos as imagens de algumas catedrais e igrejas românicas e
góticas. O ponto de chegada são algumas obras de literatura de terror
fantástico do escritor americano Howard Phillips Lovecraft, já em plena
décaca de 20/30 do século XX. Claro que, ao propormos essa ponte de séculos,
não queremos propor uma mera estruturação a partir de analogias claras ou
conjecturais; o escopo de nosso trabalho é a tentativa de precisar a função
do diabo em duas formas de expressão diferentes, as modificações e escolhas
ideológicas que nortearam essa “apropriação” da figura diabólica em tão
diferentes momentos e meios. Uma perspectiva vertiginosa, no tempo e no
espaço, que descarta uma possível história linear do diabo no Ocidente, de
suas representações ou de seus desdobramentos. Nosso material não são os
objetos, mas suas relações: Roland Barthes captou e sintetizou esse espírito
em seu ensaio-“apostila” sobre retórica, ao afirmar que “vamos contentar-nos
em isolar alguns momentos significativos (…) parando em algumas etapas, que
serão como as jornadas de nossa longa viagem”. Assim, a partir das análises
de fontes literárias e pictóricas, situadas em momentos específicos –
escolhidos, claro, arbitrariamente, mas que guardam certa semelhança e
espelhamento estrutural entre si, como as “jornadas” mencionadas por Barthes
– e algumas anotações de percurso, faremos um levantamento de certas
questões colocadas pela existência do objeto diabo, sejam elas estéticas ou
políticas.

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É sabido que a bibliografia sobre o diabo é extensa – provavelmente, um
recenseamento extremamente superficial do tema já ocuparia todo este ensaio
– e não poderemos consultá-la em sua totalidade. Portanto, concentraremo-nos
em alguns estudos que dialogam diretamente com nossa temática: a questão da
representação e do significado estrutural dessa representação nas sociedade
nas quais elas foram criadas e para a nossa sociedade atual, que lê
constantemente essas máscaras do passado. É o caso do trabalho de
historiadores como Jean Delumeau e Phillipe Àries e do crítico de literatura
Luther Link, além da volumes dedicados à vasta iconografia sobre o tema e
ensaios plenos de insights, mesmo que vindos de áreas bem distintas. De
qualquer forma, evitaremos seguir algumas conclusões demasiado canônicas e,
em alguns momentos, poderemos debater diretamente com nossas fontes e seus
intérpretes.

Feitas essas explanações iniciais, podemos começar a abordagem de nosso
objeto através de uma pergunta aparentemente óbvia ou, eventualmente,
inócua: qual a função do diabo? A conhecida teoria do Inconsciente Coletivo,
sempre aventada para a uma explicação geral de certos fenômenos irracionais
na Cultura, parece insuficiente neste caso: nem todos os povos possuem
figuras equivalentes, ou mesmo analogicamente próximas, do diabo e do
inferno como concebidos dentro do cristianismo: no qual uma cisão na
dualidade Mal/Bem faz com que o representante do Mal, sua mais perfeita
encarnação, o diabo, seja, ao mesmo tempo, um agente de Deus. Essa curiosa
esquizofrenia, que garante ao grande inimigo de Deus um papel – e, logo,
funções correspondentes – duplo: por um lado, Satã é o grande tentador,
aquele que, através de suas “decepções” – ou seja, ilusões – coloca toda a
humanidade próxima da perdição; por outro lado, Satã também é um agente de
Deus, aquele que aplica as penas do inferno. Trata-se, evidentemente, de uma
contradição, muito bem resumida por Borges num trecho de sua Historia de la
eternidad: “Imaginada de um golpe, sua (da Trindade) concepção de um pai, de
um filho e de um espectro, articulados em um só organismo, parece um caso de
teratologia intelectual, uma deformação que só o horror de um pesadelo pode
parir. O inferno é uma mera violência física, mas as três inextrincáveis
pessoas importam um horror intelectual, uma infinidade postergada, especiosa
como de contrários espelhos”.

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Essa contradição surgiu do problema de se
criar um adversário real para um Deus onipotente e único, levando-se em
conta que o dogma do monoteísmo deve ser mantido acima de tudo. O risco que
os teólogos corriam – dos padres da Igreja até os escolásticos e desses aos
teólogos do século XVI, católicos ou protestantes e, mesmo, depois – eram
muitos: recair nas crenças dualistas dos persas ou dos discípulos de Mani;
renegar a idéia de livre arbítrio, garantido por Deus às criaturas por ele
criadas; destruir a noção de monoteísmo, ao criar um oponente poderoso
demais para Deus, cuja existência escapasse dos ditames da divindade suprema
negar a necessidade repressiva das leis e dogmas cristãos, negando a
existência de um lugar “negativo” e paralelo ao paraíso dos eleitos, esse
espelho invertido que é o inferno. A resolução desses espinhosos problemas
escapou da esfera de discussões teológicas e atingiu o universo político e
artístico do Ocidente.

Mais adiante, veremos que essa dupla função – que condiciona um
desdobramento de psicologia e de estrutura – do diabo é crucial para o
entendimento dos vários desenvolvimentos das figuras malignas na arte e na
literatura, além de determinar um corte ideológico decisivo. Por ora,
podemos, através de rápidas comparaçcões esquemáticas, perceber como esse
conceito não é usual nas crenças mais próximas ao cristianismo em seus
primórdios: o paganismo greco-romano, esquema religioso, no início,
concorrente ao cristianismo, não possui a figura do diabo e seu lugar e
complemento, o inferno. A doutrina persa de Zoroastro apregoa uma dualidade
que supõem certa igualdade de forças: embora o “lado” de Ormuz (a divindade
positiva e eufórica) esteja com a vitória mais ou menos garantida sobre o
lado” de Arimã (a divindade negativa e disfórica), é uma luta de iguais. Se
essas duas concepções religiosas, anteriores e paralelas, tiveram, certa
influência na constituição do cristianismo, a influência decisiva é do
judaísmo. Fonte direta do cristianismo, o judaísmo forneceu ao cristianismo
metade de seu livro sagrado, o monoteísmo e uma série de concepções de mundo
essenciais. Era de se imaginar, por analogia, que o diabo, no Antigo
Testamento, seja uma personagem importante. Mas o espantoso é que não é:
Luther Link, ao discutir o nome do diabo diz que no “cânone do Antigo
Testamento, exceto em Jó, raramente encontramos o Satã (ou Satã); quando
encontramos, ele não é importante”.

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Joseph Turmel, em Histoire du Diable,
dedica a primeira parte de seu livro à origem e queda do Maligno: para tanto
cita textos autoritativos que, naturalmente, justifiquem a crença de que
Satã não era, em princípio, um ser de pura maldade, tornando-se assim, por
opção e escolha, posteriormente. Os autores citados são do rol de padres da
Igreja: Tertuliano, Lactâncio, Gregório de Nissa, Suarez. Uma das primeiras
citações de algum dos livros da Bíblia é, na verdade, de um trecho saido de
um volume considerado apócrifo mesmo para a Igreja Católica: O Livro de
Enoque.

Passemos, agora, à análise de algumas obras; antes, contudo, devemos
assinalar alguns aspectos das relações entre a “teoria” e a “prática” no que
diz respeito ao nosso tema. Luther Link, por exemplo, destaca que, por
exemplo o simbolismo escolástico em quatro níveis e sua aplicação às obras
de arte medievais é limitado devido ao pesado aparato conceitual, de difícil
compreensão, que o caracteriza. Portanto, um artesão ou escultor românico –
e mesmo gótico ou renascentista – trabalharia dentro do seu próprio campo
imaginário, pois não seria viável vê-lo consultar grossos volumes de
teologia como referência para suas criações. É uma observação perspicaz e
até algo óbvia, mas, acreditamos, acaba ocultando alguns aspectos mais sutis
que têm a ver com a configuração da cultura em um determinado período.
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O cineasta soviético Eisenstein elaborou, ao
longo de sua carreira, uma série de teorias cinematográficas barrocas e
pseudo-cientificistas: para o diretor, essas teorias eram marcadamente
materialistas”, opondo-se a idéias teóricas como a do “cine-olho” de Dziga
Vertov, que Eisenstein desqualificava como “contemplativa”. Ora, analisando
as concepções deste último sobre a analogias e justaposição de planos, vemos
uma dialética forçada, imaginativa, que pouco tem a ver com a dialética
marxista. Para Eisenstein, contudo, essa “teoria” estética funcionava, era
autenticamente marxista pois, afinal, o esforço desse artista russo era se
enquadrar dentro dos esquemas, das regras e dos preceitos do partido
comunista, nos quais acreditava com sinceridade. Ou seja: as influências
ideológicas de um artista não se resumem ao fato mais brutal da influência
de seus financiadores e mecenas imediatos – justamente lembrado por Link –
mas alcançam a escola na qual esse artista estudou, os contatos e amizades
que contraiu durante sua existência, os livros que leu, em suma, toda uma
visão de mundo que o moldou. Assim, muitas das discussões teológicas da
Idade Média e da Idade Moderna estavam completamente desconectadas das
preocupações usuais da maioria da população. Mas isso não quer dizer que
essas querelas, através dos diversos mecanismos de vulgarização e em
diferentes níveis, não alcançavam artesãos obscuros e comunidades isoladas.

Feita essa ressalva, passemos para a análise de algumas das primeiras
figurações do diabo na arte Ocidental. No estudo de Luther Link, por exemplo
podemos ver a reprodução de uma tentação de cristo, feita em marfim, como a
capa de um livro. Essa obra, datada entre 830 e 850, é extraordinária não
apenas pela qualidade da composição e pelo apuro técnico das figuras e da
estrutura narrativa representada. Ela é extraordinária por apresentar um
Satã humano: a única diferença perceptível entre Jesus e seu adversário está
no vestuário (Satã veste trajes romanos); o conflito, como sublinha Link, é
psicológico: é uma narrativa teatral expressa em vigorosos e expressivos
gestos. Os dois antagonistas ocupam campos opostos, simetricamente divididos
por uma árvore. Satã, munido de um cajado, ordena a Cristo que transforme as
pedras em pães para, assim, aplacar a própria fome; o gesto do ser diabólico
é tão significativo quanto uma frase inteira gritada. Cristo, por sua vez,
responde com um aceno de negação: a mão espalmada, firme e levantada. A
tentação, aqui figurada, vai muito além das tentações de Santo Antão que se
propagaram  desde fins da Idade Média.

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O aspecto grotesco e
brutal da tentação, seu sensualismo – em todos os sentidos – forjaram um
bestiário alucinado de monstros nas obras de autores como Bosch, Mandin,
Brueghel etc. O conflito entre o anacoreta do deserto e as tentações
diabólicas é físico; mesmo nas extraordinárias tentações de Savoldo ou de
Jan Gossaert, ainda que privilegiando a tensão psicológica, apelam para
signos físicos estruturadores do conflito. No caso da composição de Savoldo,
esses sinais surgem em um pertubardor monstro, entre vivo e morto, carregado
às costas de um homem careca de aparência tranqüila. Já Gossaert é ainda
mais sutil: em um ambiente de geométrica limpidez, Antão recua diante de uma
bela mulher, quase hierática, que lhe oferece uma taça ornada; quase não
percebemos o motivo do medo do ancião, representado nos pés de ave de rapina
(sinal do Diabo) da jovem, sutilmente desvelados pelo planejamento diáfano de
sua roupa.

De qualquer forma, é um belo exemplo de que houve mutações na representação
medieval do diabo: mutações profundas, determinadas por mudanças políticas e
pelas crises sociais. Link, comentando essa magnífica capa em marfim,
afirma: “Não obstante, a dimensão psicológica dessa obra específica é
atípica. Em geral, o confronto entre esses adversários é bastante
inexpressivo, pois eles se encaram sem a menor interação em qualquer nível
pictórico”, citando, ato contínuo, um saltério de quase 300 anos depois para
exemplificação de sua tese.

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Curiosamente, Link não cita obras mais antigas,
centrando fogo na arte românica, gótica ou renascentista e desprezando
alguns séculos dos primórdios da Idade Média. Já Jean Delumeau, ao contrário
no capítulo sobre Satã em sua história do medo no Ocidente, enfatiza – com
exemplos: as pinturas nas paredes da igreja de Baouït, no Egito (século VI);
as páginas iluminadas da Bíblia de São Gregório de Nazianzeno; algumas
decorações de igrejas orientais dessa mesma época; etc. – que as
pouquíssimas representações iniciais do diabo na arte cristã dos séculos VI
ao IX não o mostravam como uma criatura repulsiva. A tentação em marfim,
portanto, seria coerente com um contexto de época, marcado por maior
estabilidade política, não sendo nenhuma obra “incomum” ou “inclassificável”

Essa estabilidade política foi representada pela cristalização de códigos
medievais na base daquilo que Novalis chamava de Cristandade: uma Europa
unida em torno da fé cristã e uma economia, após a queda do Império Romano,
reerguida em novas bases que, aparentemente, eram mais adaptadas ao novo
momento histórico. Isso não quer dizer, contudo, que se vivia no jardim das
delícias terrenas: o surgimento e perseguição de heresias – bem como dos
paganismos remanescentes – era uma constante, e a ameaça de invasões
externas não deixava de estar presente. Mas, ainda assim, todas essas
dificuldades e problemas pareciam estar mais distantes, preferindo-se à
obsessão por Satã e seus acólitos a alegria de Cristo e seus eleitos.
O tom muda sensivelmente nos séculos XI e XII: estamos diante daquilo que
Jacques Le Goff – citado por Delumeau – chamou de primeira “explosão
diabólica”: é na arte românica que vemos surgir com grande intensidade uma
multidão de diabos e criaturas diabólicas. Nas palavras de Delumeau:
Assimilado pelo código feudal a um vassalo desleal, Satã faz então sua
grande entrada em nossa civilização. Anteriormente abstrato e teológico,
ei-lo que se concretiza e reveste nas paredes e nos capitéis das igrejas
toda espécie de formas humanas e animais.

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Luther Link aponta os motivos dessa ampliação da temática apocalíptica e da
aparição mais sistemática de um Satã codificado: olhos vermelhos, pele
estriada, cabelos em fogo, corpo peludo etc. A perseguição às heresias tomou
corpo justamente entre os séculos XI e XII: a expansão das heresias a partir
de 1070, ampliando suas bases locais e tornando-se um fenômeno amplo. Já em
1022, o rei Roberto, o Piedoso, queimou hereges em Orléans, naquela que foi
a primeira execução por heresia da Idade Média. As igrejas românicas foram,
portanto, criadas dentro de um universo de perseguição, no qual Satã ganha
materialidade: por um lado, é o grande juiz que deve punir hereges e
recalcitrantes; por outro, seu corpo disforme, grotesco ou assustador não
deixa de se identificar com corpos reais e os demônios, então, tornam-se
seres vivos, na pedra, na tapeçaria ou no pergaminho, com os quais é
possível estabelecer analogia. Algumas reproduções, que figuram no estudo de
Link, dão bem a dimensão dessa nova função: as esculturas de La Madeleine,
em Vézelay, por exemplo. Como anota Luther Link, “é curioso que uma igreja
dedicada consagrada a Maria Madalena não tenha uma única cena a ela dedicada
e que um painel tão magnífico como esse do nártex seja o portão que se abre
para cerca de um centena de capitéis, quase todos ornados com episódios do
Antigo Testamento, dos quais mais da metade mostra cenas de terrível
violência, inclusive muitas representações medonhas do Diabo”.

Observemos, portanto, alguns dos capitéis de La Madeleine, em Vézelay. Um
capitel apresenta, por exemplo um ser diabólico acossando uma mulher. Esta,
de costas para o demônio, tenta, aparentemente, proteger seu seio de uma
serpente que se enrosca em suas pernas. Seria uma representação mais ou
menos comum da luxúria, se a serpente já estivesse grudada ao seio da mulher
Acompanhada de outra agarrada ao outro seio. O detalhe e original da
composição é essa construção de uma figura híbrida, nem totalmente
codificada (transformada na alegoria da luxúria), nem totalmente não
codificada (apresentando uma mulher sofrendo um suplício infernal, por
exemplo). O demônio, no outro extremo do capitel – a imagem, como ocorre em
outros capitéis de Vézelay, apresenta-se dividida em duas metades simétricas
separadas por uma luxuriante e fantástica vegetação – mostra-se temível:
boca escancarada, olhos esbugalhados, cabelos em chamas, movimento absurdo
do corpo e língua para fora. Esse último detalhe chama a atenção: algumas
conhecidas figuras orientais, como a figura de Kali, apresentam-se
igualmente com a língua a mostra. Em outro capitel, analisado por Luther
Link, vemos uma cena de música profana, na qual o músico, em um gesto vivo e
dramático, toca seu instrumento, cujo som parece atingir diretamente o rosto
de um demônio disforme. Novamente, a composição é dividida por uma vegetação
fantástica e, como na composição anterior, o destaque vai para a
movimentação extraordinariamente pululante das figuras: tudo parece em
movimento, empurrado por esse ritmo da música profana.

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Nesses dois exemplos,
escolhidos ao acaso da ampla produção de ornamentos da arquitetura românica
– da qual tivemos, por falta de espaço, de excluir algumas imagens
extraordinárias e muito significativas, como essa misteriosa imagem, surgida
de um imaginário mítico talvez celta, de um deus pagão de cuja boca saem
ramos de videira que se enrolam em leões (St. Benedict, Benoît-sur-Loire,
Loiret) – podemos perceber o que os autores chamam de nova posição funcional
do diabo: uma materialidade crescente e envolvente, e uma codificação
definitiva tanto das penas do inferno quanto da forma do Diabo. Se é bem
verdade que estamos diante de um tipo de pedagogia pelo medo – das penas
impostas ao heréticos, em todo caso – ainda estamos diante de uma deidade
maligna mais ou menos familiar: apesar desses capitéis possuírem grande
força imagética, muitas das representações da mesma época – e isso é muito
reforçado por Link, mas também é destacado por Delumeau – são grotescas,
quase engraçadas. A luta contra a heresia ainda se movimentava na esfera do
alto clero e suas ressonâncias afetavam muito pouco o cotidiano das
populações. Delumeau, por exemplo, afirma – citando exemplos como o
testemunho do bretão J. P. Hélias – que o diabo era uma deidade popular
entre camponeses, designado por vários nomes e que podeira ser benfazeja ou
malfazeja. O Mal, portanto, na concepção popular, estaria excluído de sua
essência, pois tal figuração do Diabo se mostra próxima de diversos mitos
pagãos muito vivos até os dias de hoje. Ainda estamos longe dos autos-de-fé
como espetáculos aparatosos, a cuja freqüentação acorriam multidões,
dispotas a ver como triunfava a fé cristã diante do Mal que se fez carne:
judeus, hereges e feiticeiras.
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por
Alcebíades Diniz
em setembro de 2006

filipeta

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temeroso