imageSFLJoão Ambrósio morreu. Nada daquelas mortes cheias de adrenalina ou de dor. Não, simplesmente fechou os olhos, suspirou e se foi.

 Quando despertou no outro mundo viu diante de si a linda Antophima, o anjo da morte, de cabelos negros como a noite e pele branca de puro mármore, que sorridente viera lhe receber e guiar até o grande tribunal da alma.

 

 João estava tranqüilo, afinal sempre foi um bom sujeito, cumpridor de seus deveres, pai amoroso, marido fiel, católico como todo mundo, funcionário exemplar. Na vida toda não se lembrava de uma só vez em que tivesse agredido ou mesmo ofendido alguém. “Um camarada de boa paz” – como diziam.

 

 Assim, já ante-gozava as delícias do paraíso. Queria muito conhecer aqueles prados verdejantes por onde corriam arroios de leite e mel, onde se podia ouvir o canto divino dos querubins e se extasiar diante do eterno sorriso do Deus… coisa que o Padre Domênico tanto anunciava em seus sermões dominicais.

 

 Foi assim que, confiante, sentou-se no “banco da justiça”, bem diante do grande livro onde todas as verdades estavam registradas e no qual Alfomaronn, o julgador, baseava suas sentenças.

 

 Calculem o espanto de João quando ouviu: “Ambrósio, por este tribunal celestial, você é considerado culpado. Deve descer imediatamente para o purgatório, zona ‘C’, cavernáculo 3.980.781b, onde ficará retido até resgatar todos os erros de sua vida …

 

 “Mas senhor, que erros são esses? Sempre fui um bom sujeito. Dei esmolas aos pobres, comprei as rifas da igreja, muitas vezes nem tinha o que confessar.

 

 “Seu principal crime, João, foi o de roubo.” – prosseguiu Alfomaronn.

 

 “Como roubo? Nunca tirei nada de ninguém, nem invejoso eu era…”

 

 “Ah, João… Você se esqueceu de quantas vezes marcou consulta no médico, no dentista, no podólogo, no barbeiro e simplesmente faltou?… Pois é, roubou o tempo deles…

 

 “…E as promessas que não cumpriu? Foram tantas… Aqui no livro diz que por 347 vezes você prometeu visitar sua tia Epifânia e nunca  foi. Só para o seu conhecimento, em todas estas ocasiões ela preparou bolinhos de chuva e chocolate quente para lhe receber e ficou lá, sozinha, rezando para que você estivesse bem.

 

 “Com seus filhos a coisa foi pior, são 5.784 registros de promessas não cumpridas. Pois é João, você roubou a expectativa deles…

 

 Alfomaronn, continuava correndo seus dedos longos e nodosos pelas folhas envelhecidas do livro. 

 

 “Ih, mas tem muito mais aqui. Aquela viagem ao Lago de Tucumaré, que você reservou lugar para você e sua senhora e na última hora resolveu não ir… O bolo do casamento de sua filha que você encomendou com dona Sinhá e que não foi buscar porque a prima Filó fez outro de graça… O terno de camurça verde que, num impulso impensado mandou seu Genaro, o alfaiate, fazer e que, como se arrependeu, nunca foi buscá-lo… Desta forma, o ônibus partiu com os dois lugares vazios, o bolo dois dias depois estragou e o terno de camurça espantada está ainda lá esperando por você…

 

 “Pois é João, todos tiveram prejuízos com suas atitudes. Você roubou deles dinheiro, tempo e tranquilidade…” 

 

“Desce João que o purgatório lhe espera…”

 

imageE6JArsenio Hypollito Junior
Fundador do Imagick
Criador do sistema Imagick de Magia
M.I. da Irmandade das Estrelas