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Na Idade Média, as camadas mais pobres da população buscavam nas seitas cristãs a saída para suas vidas miseráveis. Nesse cenário, a figura do líder religioso — que acreditava piamente ser um mensageiro divino — era de suma importância: ele representava esperança, virtude e poder. 

Neste artigo, com base num estudo do inglês Norman Cohn, o tema é bordado por Marco Antonio de Carvalho, que identifica o problema também nos dias atuais.

 

a38e216697eb3ca9979b3f760718ba09--the-nativity-nativity-scenesSe os judeus não aceitam Jesus como o Messias, os cristãos não aceitaram o fato de o seu tão esperado Salvador ter se afastado tão depressa do convívio com os fiéis: praticamente desde a sua morte surgiram lendas que falam do retorno rápido, na chamada Segunda Vinda.

 

   Essas lendas se confundem com doutrinas que falam sobre os “últimos tempos”, crença em geral baseada no Apocalipse de João Evangelista, o qual afirma que após esse retorno, Cristo iria estabelecer entre os cristãos um reino de paz, concórdia, justiça, felicidade e fartura. Ali reinaria pessoalmente por mil anos, até o Juízo Final. Antes desse retorno, no entanto, o mundo cristão passaria por uma enorme conturbação, maior do que todas vistas antes: o Anticristo instalaria o tempo do terror e aqueles que esperam pelo Salvador viveriam terríveis dificuldades.

 

the_medieval_demon_by_lepidodendron-d2yynuz     Geração após geração, praticamente desde o desaparecimento de Jesus, os cristãos medievais viveram – e vivem – “no receio constante do demônio que tudo destruiria e cujo reino seria na verdade o caos anárquico, um tempo dedicado ao roubo e à rapina, à tortura e ao massacre, mas que seria também o prelúdio da consumação tanto esperada, a segunda vinda e o reino dos santos”, como escreveu Norman Cohn.

 

 Essa foi a cena de praticamente toda a Idade Média, para milhares e milhares de seres humanos sem direito a nada, abandonados, esquecidos, escravizados a reis, nobres, sacerdotes, guerreiros.

Assim, só podiam mesmo sonhar com um futuro melhor, quando enfim o Salvador viria dar um jeito nas coisas.

cataros23Outra solução, adotada por miseráveis de todas as épocas, era se juntar a um grupo cujo líder – chamado de profeta -, mais próximo e conhecedor da palavra divina, soubesse exatamente o que fazer para apressar o Retorno e confirmar, através de atos, que aquele grupo estava ao lado de Cristo.

 

     Igreja, o Anticristo

 

acts1É importante lembrar que praticamente todos os pesquisadores das seitas medievais confirmam que esses líderes de seitas não eram mentirosos, manipuladores, aproveitadores – ainda que sem dúvida existissem alguns com tais características -, como provavelmente seus congêneres atuais também não o são. Ou seja: tais homens – assim como seus seguidores – acreditavam piamente nos seus poderes e na sua proximidade da divindade, tanto que a maioria foi punida com a morte.

 

Em toda a Europa, a perseguição da Igreja matou dezenas de profetas e milhares de fiéis, mas documentos da época mostram que alguns deles chegaram a crer que, com o apoio divino, não sentiriam qualquer dor quando torturados e o fogo não os queimaria na hora da execução.

 

toaffpic17   Dessa forma, para cada uma dessas seitas era necessário inicialmente entender quem era esse Anticristo tão temido e odiado. Para a maioria delas essa figura era óbvia e estava ali, ao seu lado, a própria Igreja,  com sua ostentação, vaidade, violência, seu ouro e poder.

 

   A partir desse entendimento, o comportamento passava a ser claro para os seguidores das seitas: não se conformar com mais nada que a prostituta da Babilônia propusesse, negar a autoridade, as ordens, palavras, representantes e regras impostas pelo papa – e, até onde fosse possível, destruir tudo que essa mesma Igreja aprovasse.

   Isso não quer dizer, porém, que as centenas de seitas que surgiram na Idade Média fossem exatamente iguais. Pelo contrário: ainda que todas tivessem a mesma conformação – um líder intocável, hierarquias duríssimas, contrárias ao poder religioso e econômico da época -, a ideologia desses grupos era muitas vezes oposta.

picoa  Exemplo disso é que surgiram seitas de flagelantes (que pregavam a autoflagelação e dor física para chegar mais rápido à salvação); mendicantes (que atravessavam a Europa pedindo pão e água e se recusando a trabalhar); grupos violentos, cujo caminho para a salvação era matar padres; ou proto-anarquistas que invadiam terras, tomavam e matavam todo aquele que, de alguma forma, representasse os poderes do Anticristo.

   Também em nível de comportamento as diferenças entre essas seitas eram visíveis: tanto existiam as que praticavam a abstinência total, quanto surgiram grupos que praticavam o chamado “amor livre”, onde homens e mulheres comportavam-se sexualmente sem qualquer tipo de freio moral.

OS GNÓSTICOS   Nunca houve, portanto, uma unanimidade entre as seitas e pode-se mesmo dizer que o único inimigo comum a todas elas era a Igreja, ainda que todos os envolvidos nessa trágica história – seitas e papas, profetas e guerreiros, miseráveis e nobres – lutassem, proibissem, torturassem e matassem sempre em nome de Deus. Isso não impediu, é claro, que cada uma das diferentes facções acusasse a outra de “demoníaca”.

 

   Submissão ao Salvador

 

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Todos os grupos, portanto, acreditavam falar e agir pela divindade. Como escreveu Norman Cohn, “aqueles que se ligavam a um tal salvador consideravam-se a si mesmos como um povo santo – e santo justamente por causa da sua submissão sem reservas ao salvador”. A partir dessa submissão total ao salvador – na verdade, ao profeta e líder da seita -, passavam a ter esperança, virtude e poder: dessa forma seriam “absolvidos de todos os seus pecados e assegurados no Céu, mas também receberiam o poder de expulsar os demônios, curar os doentes e até ressuscitar os mortos”, lembra Cohn.

 

z13a   Todas as seitas surgidas na Idade Média desapareceram depois das perseguições movidas pelos católicos, ainda que alguma coisa dessas crenças tenha permanecido no protestantismo de Calvino e Lutero. Eles próprios se tornaram grandes censores e perseguidores das seitas que, de alguma forma, não concordassem nem com o catolicismo ou o protestantismo.

 

   O processo, dessa forma, não teve e parece não ter fim próximo: o imaginário milenarista é a resposta dos miseráveis ao mundo organizado e aparentemente racional dos poderosos, daqueles que estão no topo da chamada pirâmide sócio- econômica e, pelo menos em tese, têm seus direitos respeitados.

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  Curioso é que, exatamente como nos dias atuais, as seitas medievais eram formadas por seres humanos analfabetos e desinformados – já que, para esses crentes, o mundo milenarista seria apenas dos iletrados.

800-Year-Old-Medieval-Books-Containing-Fascinating-Doodles--Cartoons- Explica-se: o simples acesso à leitura, aos livros, dá um certo poder às pessoas – poder que era e permanece negado à maioria dos miseráveis.

Mais ainda: livros e documentos foram usados desde a Idade Média para retirar todo e qualquer direito daquele que não lê. Assim, para as seitas, os intelectuais são também seus inimigos e, já que não podem destruí-los, mantêm-se a distância.

images   Ainda que, hoje, a Igreja não tenha o poder de prender e matar os líderes das seitas contemporâneas, o preconceito permanece: o status quo religioso e político do nosso tempo não ouve, não debate, não se interessa pelo fenômeno – tanto que é possível encontrar pessoas afirmando que “as seitas são coisa passageira, coisa desse fim de século”. Mas não é verdade: as seitas e o milenarismo existem no mundo cristão desde o início do cristianismo, especialmente a partir das profecias de João Evangelista. João, portanto, é um dos responsáveis por milhões de mortes, pelo medo, ignorância e sectarismo – tão comuns à religiosidade ocidental, medieval ou moderna.

 photomania-2f8d29d537739bcb011d6ccf3a52fb5a (1)  E não basta dizer simploriamente que os líderes dessas seitas são homens egoístas, vaidosos e megalômanos: são tudo isso, mas acreditam no que dizem e estão certos que têm um papel histórico a cumprir diante dos seus fiéis.

   A questão das seitas não é simples, de forma alguma: para discutir a existência desses grupos é preciso tocar em alguns dos pilares do cristianismo – mas isso as atuais seitas ditas cristãs não tem coragem de fazer. E os meios de comunicação – que poderiam trazer um pouco de luz a esse tema – permanecem preconceituosamente no seu posto de zeladores do templo da ignorância.

 

Marco Antonio de Carvalho

Revista Planeta, número 223 – abril de 1991

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