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Apesar de condenada, 
a mentira é um traço inevitável 
da comunicarão entre humanos. Todo mundo mente,
seja para obter um emprego, 
seja para mudar o destino de uma nação…
 

POR STEFAN GAN 

 

Koko é uma celebridade.
Desde que foi acolhida pela psicóloga Francine Patterson quando ainda era um bebê, em 1972, essa graciosa gorila se tomou o representante animal mais famoso na comunidade científica. A macaca aprendeu a “falar” com humanos e hoje, aos 33 anos, domina mais de mil sinais de comunicação gestual. Como efeito colateral do aprendizado, surgiu a primeira gorila a mentir na linguagem dos homens. 

 

Dra. Francine e Koko

Com apenas 1 ano de idade, Koko começou a empregar os sinais para fingir e dissimular. Quando quebrou seu brinquedo preferido, um gatinho de plástico, ela prontamente apontou uma assistente de Patterson como culpada. Usando de seus artifícios mais dissimulados para escapar da pena, abaixou a cabeça como se não soubesse de nada, indicando apenas que estava lá para mostrar quem tinha feito a
arruaça com o boneco.

A gorila mentiu para escapar de uma punição – como também fazem as pessoas – estratégia que funciona se a lorota for contada com perfeição. O problema e que para nos, humanos, a mentira é um assunto constrangedor. Ela envolve questões éticas e por isso é angustiante assumirmos que, deliberadamente, mentimos aqui e acolá.

Apesar de condenações morais, a mentira é um comportamento mais frequente do que se imagina. Segundo um estudo realizado por Robert Feldman, psicólogo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, 60% das pessoas mentem em conversas do dia-a-dia.  

 

Dr. Robert Feldman

Feldman descobriu que, muitas vezes, a mentira é pronunciada sem nenhum motivo óbvio. Em sua pesquisa, ele observou 121 pares de pessoas que não se conheciam durante uma conversa casual de dez minutos. “Orientamos os participantes a se apresentar bem para o parceiro, parecer competentes e tentar conhecer a outra pessoa”, diz Feldman. 

Os bate-papos foram filmados e, mais tarde, os voluntários se apresentaram para comentar o que haviam dito. Duas ou três mentiras foram identificadas em cada sessão – havia desde pessoas que fingiam concordar com o outro para ser simpáticas – até um cidadão que disse ser astro de rock. “Foi um resultado surpreendente porque quem participou do estudo não imaginava que mentisse tanto quanto se viu mentindo no vídeo”, diz o pesquisador. 

 

POR QUE MENTIMOS

Às vezes nem notamos, mas toda mentira tem uni porquê e é instintivamente pensada. E, apesar de condenarmos os mentirosos ao fogo do inferno, é possível extrair benefícios tanto para quem mente quanto para quem ouve a mentira.

Um dos exemplos mais básicos da mentira do dia-a-dia é a relação entre homem e mulher no quesito galanteio. Quando um rapaz cordialmente elogia a garota por sua boa forma – mesmo que o elogio não condiga com a realidade – ambos tiram proveitos da situação. Além de fazer a moça se sentir bem com uma “pequena” mentira, ele faz com que ela o considere o mais cavalheiro dos príncipes encantados.

Muitas vezes, a mentira serve unicamente a finalidades pessoais. E por isso que sempre que podemos damos um “upgrade” em nosso perfil. Afinal, todos nós queremos ficar bem na fita. E não é à toa que muita gente exagera na hora de redigir o currículo e aquele
“inglês avançado” não passa de um semestre básico de cursinho.

Tudo isso acontece por uma pressão inevitável pelo sucesso profissional e social, segundo Leonard Saxe, professor de psicologia da Universidade Brandeis, também em Massachusetts.  

 

Leonard Saxe

“Precisamos diminuir essa pressão e encontrar formas de reforçar a honestidade”, diz Saxe. 

“Hoje há uma epidemia de enchimentos de currículo, como incluir o doutorado que gostaríamos de ter concluído, mas não conseguimos”, afirma Ralph Keyes, autor do livro “The Post-Truth Era” (“A Era Pós-Verdade”, inédito no Brasil.

A mentira, no entanto, nem sempre se resume apenas a uma leve maquiagem da realidade. Em alguns casos, ela pode se tornar uma compulsão mórbida. E o caso da mitomania – quadro em que uma pessoa vive, literalmente, uma vida de mentiras. Inventa um passado, conta histórias fantásticas e usa a imaginação o tempo todo – e tem consciência de que tudo isso é falso.

Um exemplo é o personagem interpretado por Leonardo di Caprio em ‘Prenda-me se For Capaz’. O filme narra a história verídica de Frank Abagnale Jr., que enganou uma companhia aérea fingindo ser um piloto profissional e se passou por medico e advogado.  

 

Sua carreira de mentiroso terminou quando foi finalmente capturado pela polícia. Esse é geralmente o destino de muitos pacientes com mitomania:- antes de chegar ao divã, são confrontados por policiais e juízes. Talvez por isso a mitomania não seja oficialmente reconhecida pela psiquiatria. Mas os médicos já estão acostumados com um tipo de paciente que adora mentir: são os portadores da síndrome de Munchausen. Como forma de chamar a atenção médica, a pessoa inventa sintomas e, às vezes, até se submete a dolorosos tratamentos, como cirurgias. O nome da doença e uma “homenagem” ao barão de Münchausen, famoso pelas histórias mirabolantes sobre suas experiências militares ele dizia, por exemplo, ter cavalgado uma bala de canhão. 

 

A MENTIRA NA HISTÓRIA
 
Se para alguns a mentira não passa de um mundo de fantasia e ficção, para outros ela serve como artifício capaz de mudar o rumo da história. Afinal, a mentira acompanha a humanidade desde os primórdios — muitas vezes em benefício de grandes líderes.

Já no Egito antigo, a mentira foi um instrumento importante para a manutenção do poder do faraó Ramsés II. Em meados do século 13 a.C., as tropas egípcias lideradas pelo faraó lutaram contra outra potência da época, o Império Hitita, na batalha de Qadesh.  

 

Ramsés II

O maior confronto envolvendo carruagens da história — cerca de 5 mil — terminou sem vencedor. Mas não para Ramsés II. Ao voltar para casa, ele cravou nas paredes de seus cinco grandes templos o relato de sua suposta vitória contra o inimigo. “Ramsés II afirmou ter vencido os hititas com a ajuda dos deuses”, diz o historiador Julio Gralha, da UFRJ. “A mentira foi usada como propaganda política e religiosa.”

Outro que soube manipular muito bem os fatos foi Napoleão Bonaparte.
Nos idos de 1799, tudo parecia conspirar contra o general francês. O sonho de conquistar o Oriente Médio desvanecia com a humilhante derrota às margens do rio Nilo para o almirante inglês Horátio Nelson e com o fracasso na Síria. Mas o que parecia ser o sepultamento político e bélico de Bonaparte tornou-se a maior mentira política a favor de um grande líder. Habilmente, o general utilizou-se da imprensa da época para soprar aos quatro ventos suas ‘fantásticas vitorias’ no Oriente. Ao retornar à França, Napoleão foi recebido como vitorioso e, em meio às convulsões sociais que atingiam o pais, tomou o poder. 

 

Napoleão Bonaparte

MENTIR OU NÃO MENTIR?

É provável que esses grandes líderes mentirosos tenham lido a “cartilha da mentira” do filósofo grego Platão. Em sua obra ‘A República’, ele defende o uso da mentira na política e afirma que os governantes têm o direito de não dizer a verdade para os cidadãos. “Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade, em virtude dos inimigos ou dos cidadãos”, escreveu o filósofo grego, com uma ressalva: “A todas as demais pessoas não é lícito esse recurso”.

Para a sorte de nós, mentirosos, o homem vem tentando justificar ao longo dos séculos nossa tendência de escorregar em declarações falsas no dia-a-dia. Afinal, quem já não encontrou um amigo depois de acordar atrasado para o trabalho, bater o dedinho no pé da cama e perder o ônibus e ainda dizer que “está tudo bem”? Relaxe: isso não passa de uma dissimulação honesta e aceitável. Pelo menos é o que dizia o filósofo italiano Torquato Accetto. 

 

Torquato Accetto

Em 1641, Accetto afirmava que muitas vezes a verdade é mais prejudicial que a mentira – desde que se trate de uma mentira honesta. Na sua visão, não é adequado um indivíduo que vive sob uma ditadura  ir à praça pública e gritar que o governo está entregue a um tirano. Ele pode dissimular sua critica e sua mentira será honesta, segundo o italiano. “Essa idéia está ligada à noção de decoro, ou seja, aquilo que pode ou não ser dito em público”, afirma Roberto Romano, professor de ética e filosofia política da Unicamp. 

Essa também era a opinião do pensador francês Benjamin Constam, que acabou travando um verdadeiro duelo na ponta da pena com seu companheiro alemão Immanuel Kant sobre um suposto “direito de mentir”. Constant defendeu o uso da mentira em situações “filantrópicas”. Ora, imagine se, um dia, um assassino o questionasse sobre a presença em sua casa de um amigo que lá tivesse buscado refúgio. É provável que você mentisse. E, para o filósofo francês, com todo o direito, pois protegeria a vida de seu amigo.  

 

Immanuel Kant

O argumento não o convenceu Kant, para quem a mentira era inadmissível em qualquer circunstância. Segundo ele, a verdade está na base do direito, que assegura a liberdade de todos os indivíduos. Kant afirmava que a mentira sempre prejudica, se não a uma pessoa ou um grupo de pessoas, certamente à humanidade como um todo.

Mais tarde, no século 19, o alemão Friedrich Nietzsche deixaria o homem ainda mais confuso não apenas em relação à mentira, mas também em relação a sua própria existência. Segundo ele, nos precisamos da mentira para viver nesse mundo “falso, cruel, contraditório, persistente e absurdo; mundo esse que é o mundo verdadeiro”. Ou seja, na penosa tarefa de viver essa realidade, o homem precisa da mentira. O mundo que vemos é ilusão e o conhecimento – a filosofia e a ciência – e uma invenção do homem para tentar explicar o mistério do Universo.

Uma vez que a filosofia e a ciência ainda não desvendaram todas as facetas da falsidade humana, nós seguimos mentindo – provavelmente nunca vamos parar.  

 

Que o diga a gorila Koko, que, integrada à nossa sociedade, aprendeu a arte da dissimulação. 
 

Extraído de Super Interessante
Edição 210 de fevereiro de 2005

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